Memphis, 1939. Rill Foss, de doze anos, e seus quatro irmãos mais novos vivem uma vida mágica com seus pais a bordo de um barco no rio Mississipi. A mãe está grávida do sexto filho e, ao sofrer complicações durante o parto, é levada às pressas para o hospital. Rill é encarregada de tomar conta dos irmãos, até que estranhos invadem o barco que as crianças chamavam de casa, arrancando-as de tudo o que lhes era familiar e jogando-as em um orfanato no Tennessee. À mercê da cruel diretora da instituição, uma mulher sem escrúpulos envolvida em um impiedoso esquema de tráfico de crianças, Rill luta para manter seus irmãos juntos num mundo perigoso e incerto.

Aiken, Carolina do Sul, dias de hoje. Nascida em uma família rica e poderosa, Avery Stafford parecia ter tudo: uma carreira de sucesso como promotora, um noivo bonito e promissor, e uma luxuosa festa de casamento à vista. Quando ela retorna a sua cidade natal para ajudar o pai, um político influente que está às voltas com um escândalo de opinião pública e um grave problema de saúde, um encontro casual com uma senhora durante uma visita oficial a uma clínica geriátrica a faz seguir uma jornada pelo passado de sua família, um caminho que acabará revelando histórias enterradas e fazendo com que Avery repense as suas escolhas e tudo aquilo que considerava como a sua verdade.

Antes de começar a falar sobre “Segredos de Família“, quero destacar duas coisas: a primeira é que essa leitura foi, sem dúvidas, a melhor do ano para mim; a segunda é minha insatisfação com o título em português, que soa genérico e sugere uma simples fofoca familiar, distante do verdadeiro tema do livro. O título original, “Before We Were Yours“, poderia ser traduzido como “Antes de Sermos Seus”, refletindo a noção de posse e pertencimento. A história trata exatamente disso: o sequestro de crianças para serem vendidas para adoção a famílias ricas. O título original encapsula o drama vivido pelos personagens, que pertenciam a uma família e foram forçadamente transferidos para outra.

Before We Were Yours” começa em 1939, com a história de Rill, uma garota de doze anos, e seus quatro irmãos, que são sequestrados e levados para um orfanato. Lá, eles são submetidos ao controle de uma mulher cruel e sem escrúpulos, que visa lucrar com a venda das crianças, organizando adoções forjadas para parecerem legais. Paralelamente, a narrativa nos leva aos dias atuais, onde acompanhamos Aiken, uma jovem que durante uma visita a um asilo, encontra uma idosa que a confunde com alguém do seu passado. Intrigada por essa situação, Aiken inicia uma investigação que não apenas revela segredos obscuros da sua própria família, mas também desvenda uma trágica história de injustiças e crimes contra crianças.

Os capítulos de “Before We Were Yours” que descrevem os eventos vividos pelos cinco irmãos são difíceis de ler. O destino dessas crianças não é amenizado com detalhes românticos. Não espere que eles reencontrem sua família original, que permaneçam juntos ou mesmo que todos sobrevivam ao orfanato. É uma leitura que parte o coração, deixando uma sensação pesada de injustiça e impotência. Às vezes, dá vontade de pedir à autora para ser menos dura, para poupar as crianças, mas a realidade é implacável. E por que isso? Não é simplesmente uma escolha da autora. “Before We Were Yours” é inspirado em fatos reais. Entre 1920 e 1950, durante três décadas, a Sociedade de Orfanatos do Tennessee, em Memphis, sequestrou, vendeu e foi responsável pela morte de inúmeras crianças.

Georgia Tann utilizou a Sociedade de Orfanatos do Tennessee como fachada para um grande esquema de tráfico de crianças. Ela e sua equipe capturaram crianças de famílias pobres e vulneráveis, frequentemente usando de enganação ou ameaças aos pais, alegando que as crianças seriam retiradas por supostos maus-tratos ou negligência. Essas crianças eram então vendidas a famílias ricas, principalmente na Califórnia e em Nova York, sob a aparência de adoções legais.

Ao longo dos anos em que Tann comandou a Sociedade, estima-se que mais de 5.000 crianças foram afetadas por suas práticas. Muitas dessas crianças morreram devido a negligência, maus-tratos e às condições desumanas em que eram mantidas antes de serem entregues para adoção. Eram frequentemente subnutridas, viviam em ambientes insalubres e lhes faltavam cuidados médicos adequados.

Além de sequestrar e vender crianças, Georgia Tann também manipulava documentos para ocultar as verdadeiras origens delas, dificultando enormemente a possibilidade de as famílias biológicas as encontrarem no futuro. Ela destruía registros de nascimento e criava novas identidades para as crianças, eliminando completamente seus passados.

O escândalo só foi descoberto em 1950, após uma investigação que revelou a amplitude dos crimes cometidos pela Sociedade de Orfanatos do Tennessee. Georgia Tann morreu de câncer pouco antes de poder ser processada, evitando assim enfrentar a justiça. A descoberta dos crimes expôs não apenas as atrocidades cometidas por Tann, mas também as falhas no sistema que permitiram que suas atividades criminosas continuassem por tanto tempo. As vítimas, muitas já adultas quando o escândalo foi revelado, lutaram para lidar com as repercussões das adoções ilegais e o trauma que isso causou.

Embora Rill e seus quatro irmãos sejam personagens fictícios, suas experiências refletem fatos reais vividos por crianças que foram realmente sequestradas e separadas, muitas das quais nunca mais reencontraram suas famílias. Aiken funciona como um elo entre o leitor e a história; ela desvenda aos poucos esse passado e descobre sua conexão tanto com ele quanto com a idosa que a reconhece no asilo. A narrativa é profundamente emocionante e, ao mesmo tempo, causa revolta. É quase inevitável não se emocionar profundamente e acabar chorando ao chegar ao final do livro.

Before We Were Yours” é uma daquelas leituras que marcam e incomodam profundamente. É impossível não se envolver com as crianças e com o que elas passam no orfanato. A cada página e a cada novo capítulo, surge a esperança de que as coisas vão melhorar, que os cinco irmãos conseguiram voltar para seus pais. E, de certa forma, alguns deles conseguem, mas só para descobrir que é tarde demais. Esse choque de realidade, de que a vida não para e que algumas pessoas não conseguem suportar a dor da perda, torna a leitura ainda mais impactante. No entanto, acredite, vale a pena ler cada página e cada palavra. O livro não apenas homenageia as crianças reais que sofreram essas violências, mas também serve como um ato de justiça, mantendo suas histórias e memórias vivas.


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AUTORA: Lisa Wingate
TRADUÇÃO: Natalie Gerhardt
EDITORA: Globo Livros
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 364
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