Jeremias foi um dos primeiros personagens criados por Maurício de Souza, lá nos anos de 1960, logo após o Franjinha e o Bidu, e foi o primeiro personagem negro da turminha. Uma curiosidade da época, é que os desenhos tinham um estilo chamado de blackface, cuja origem veio do teatro, onde atores brancos pintavam o rosto de preto para representarem pessoas negras. Aos poucos, essa técnica foi abandonada, uma vez que era exagerada e racista. Abaixo, podem ver como o personagem evoluiu com o passar dos anos.

Apesar de ser um dos personagens mais antigos de Maurício de Souza, Jeremias nunca recebeu o destaque merecido. Felizmente isso mudou com a publicação de  JEREMIAS – PELE, e a edição entrega o esperado: uma história sobre racismo, preconceito, segregação, marginalização, injustiça, hostilidade, mas também sobre integração, reconhecimento, paternidade, amizade, aprendizado, superação, amor. Tudo de forma bem clara, direta, sem subterfúgios, para que a mensagem possa ser lida e compreendida por leitores de todas as idades, inclusive os mais novos, os bem mais novos.

Essa clareza é perceptível quando Jeremias sente na pele o preconceito e tem uma discussão com o pai, este último diz em letras grandes e em negrito o que precisa ser dito para que as pessoas compreendam de forma absolutamente inequívoca como é custoso e doloroso bater de frente com o preconceito. A sensação que passa, é a de um grito, para que todos ouçam, para que todos aqueles que acham que podem diminuir alguém por causa de sua cor, raça, religião, ou qualquer outro coisa, o quanto estão sendo ineptos como seres humanos.

Para completar essa sequência, no fim da edição, Jeremias lê em sala de aula uma redação que foi pedida pela professora, e no seu texto, ele contradiz o que foi dito pelo pai naquela discussão. E esse é o ponto alto da história, quando essa contradição faz todo o sentido. Não quero reproduzir o teor do texto, para não estragar a experiência de quem for ler, mas, basicamente, ele trata de que alguém que sofre preconceito não precisa ser mais do que é para se provar, porque não precisa provar nada.

Pela expressão dos olhos de Jeremias, em diversas situações a que ele é obrigado a viver, fica claro o seu pensamento e indignação: quem você pensa que é para evitar se sentar ao meu lado no ônibus só por causa da cor de minha pele? Quem você pensa que é para achar que tem o direito de escolher minha profissão só por causa da cor de minha pele? Quem você pensa que é para esconder sua bolsa por achar que será assaltada por mim só por causa da cor de minha pele? Quem você pensa que é para me considerar menos inteligente só por causa da cor de minha pele? Quem você pensa que é para achar que eu sou diferente de você só por causa da cor de minha pele?

Enquanto o enredo é limpo e direto, os desenhos são, por vezes, exagerados. Isso poderia ser um pouco confuso para o leitor, mas eles são exagerados dentro de um contexto específico, com o objetivo de reforçar a emoção dos personagens e a importância dos acontecimentos. Por isso, acaba funcionando e transmitindo o desejado, ou seja, os desenhos conseguem passar, além do que está acontecendo, uma amostra da intensidade do que os personagens estão sentindo.

As cores combinam perfeitamente com o desenho e com a mensagem da HQ: elas são, na sua maioria, escuras e foscas, realçando um traço mais grosso e reto, com curvas arredondadas. Gosto especialmente dos fundos de predominância de uma cor, dando um realce maior aos desenhos principais, mesmo quando são outros personagens que estão na paisagem. De certa forma, isso dá um tom sério a toda a trama, sem parecer dramático.

Por toda a edição, existem referências a vários outros personagens de Maurício de Sousa. Alguns aparecem mais, outros menos. E algumas coisas são melhores explicadas, como por exemplo o motivo de Jeremias usar um boné. Afinal, racismo podia existir até nas pequenas ideias, e nunca é tarde para se retratar do que foi feito de forma um pouco estranha no passado.

JEREMIAS – PELE é uma obra que poderia ter vindo mais cedo, bem mais cedo, mas que nem por isso chegou tarde. A HQ trata de assuntos ainda necessários no mundo em que vivemos, infelizmente. Ela não irá mudar o comportamento de quem é racista, porque esse tipo de pessoa se sente ameaçada pelo que não é igual a ela, e o medo é algo difícil de vencer, ainda mais por quem não enxerga suas próprias deficiências. Entretanto, ela poderá ensinar às pequenas pessoas, que ainda estão em formação de caráter, a compreenderem que não existe diferença na pele; existe diferença, apenas, na mente.


AUTOR: Rafael CALÇA
ILUSTRADOR: Jefferson COSTA
EDITORA: Panini
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 96


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