Perséfone, a jovem Deusa da Primavera, acabou de chegar no Olimpo. Criada no reino mortal pela mãe de pulso firme, Deméter, ela recebe a permissão para viver no mundo dos deuses enquanto se prepara para seguir a vida como uma virgem sagrada.

Quando a amiga Ártemis leva Perséfone para uma festa, sua vida muda completamente: lá ela conhece Hades, e o charmoso e incompreendido líder do Submundo desperta nela uma chama. Agora, Perséfone precisa aprender a lidar com as relações e as políticas confusas que regem o Olimpo, enquanto descobre seu lugar e seu próprio poder.

LORE OLYMPUS” é uma webcomic que reinterpreta a mitologia grega num ambiente contemporâneo. A obra foi iniciada como um projeto pessoal de Rachel Smythe, uma artista e escritora de quadrinhos da Nova Zelândia, em 2018. Smythe desejava abordar questões modernas usando as antigas narrativas mitológicas. Motivada por seu fascínio pela mitologia grega e por seu talento artístico, ela criou um estilo visual único e uma história cativante que logo atraiu muitos leitores.

A webcomic é publicada na plataforma Webtoon, conhecida por oferecer uma ampla variedade de webcomics em diversos estilos. “LORE OLYMPUS” se destacou rapidamente na plataforma, graças à sua arte inovadora e à abordagem contemporânea das lendas clássicas. A plataforma Webtoon, que é acessível gratuitamente, ajudou a aumentar a popularidade e o alcance internacional da série.

Desde o seu lançamento, “LORE OLYMPUS” (a palavra “lore” alude a tradições e saberes específicos, geralmente passados de geração em geração por meio de narrativas e ensinos orais) se tornou uma das webcomics mais populares no Webtoon, com milhões de seguidores ao redor do mundo. A série foi reconhecida com diversos prêmios e indicações, incluindo ao Eisner Award, uma das maiores honrarias no campo dos quadrinhos. A popularidade da série também gerou contratos para publicações impressas e discussões sobre adaptações para outras formas de mídia, como animações.

O sucesso de “LORE OLYMPUS” levou à sua publicação em formato físico. Naturalmente, muitos fãs apreciaram a oportunidade de adicionar a obra às suas coleções, embora a leitura online já satisfizesse plenamente. No entanto, adaptar uma webcomic, originalmente projetada para ser lida em uma interface de rolagem vertical na internet, para um formato de livro impresso apresenta desafios notáveis. A narrativa na web se desenrola através de longos painéis contínuos, onde as cenas fluem sem interrupções. Ao serem transpostas para as páginas de um livro, essas sequências são inevitavelmente interrompidas, uma vez que não cabem integralmente em uma única página. Apesar dessa mudança não diminuir a qualidade da história, ela resulta em experiências de leitura distintas. A versão online permanece como a mais completa e fiel à visão original da autora.

Rachel Smythe desenvolveu um estilo artístico único para sua obra. Sua técnica combina elementos modernos e expressivos, dando vida à mitologia grega de forma vibrante e emocional. Ela emprega linhas claras e simples, que delimitam com precisão as formas de personagens e cenários. O traço de Smythe é fluido e dinâmico, trazendo movimento e vitalidade a cada quadro. A arte possui uma qualidade de cartoon, permitindo expressões exageradas e caricatas, o que facilita a comunicação de emoções complexas e situações dramáticas.

Um dos aspectos mais notáveis de sua arte é o uso intenso de cores vibrantes e saturadas, que não apenas embelezam, mas também servem um propósito funcional, como diferenciar personagens e seus estados emocionais. Cada personagem principal possui uma paleta de cores própria; por exemplo, Hades é frequentemente mostrado em tons de azul escuro, enquanto Perséfone é representada com cores rosas e luminosas. Essa escolha não só fortalece a identidade visual de cada figura, mas também auxilia na transmissão de mudanças emocionais e estados de ânimo.

As expressões faciais são ricamente detalhadas e variadas, capturando uma extensa gama de emoções. Smythe é habilidosa no uso dos olhos, sobrancelhas e bocas para expressar sentimentos complexos, de alegria e amor a tristeza e raiva. A linguagem corporal é igualmente significativa, reforçando as emoções e as interações entre os personagens através de posturas e gestos.

As cenas de ação são vívidas e bem executadas. Smythe utiliza linhas de movimento e uma composição cuidadosa para criar uma sensação de ritmo e intensidade. Além das sequências dinâmicas, ela também sabe valorizar os momentos de calma ou tensão, que são enfatizados por quadros ampliados e ricos em detalhes, permitindo que as emoções das cenas penetrem no leitor.

Os cenários mesclam elementos antigos e modernos, incluindo arranha-céus, festas luxuosas e interiores elegantes. Os diálogos e pensamentos são integrados de maneira harmoniosa com as imagens, assegurando que o texto complemente a ação e as expressões dos personagens sem quebrar o fluxo visual. Smythe também utiliza efeitos visuais como onomatopeias, desfoques e gradientes de cor para acentuar a atmosfera e emoção das cenas.

O primeiro volume de “LORE OLYMPUS” apresenta os personagens centrais com a chegada de Perséfone, também conhecida como Kore ou Persé, ao Olimpo. Com apenas 19 anos, ela foi educada no mundo mortal por sua mãe, Deméter, uma mulher de caráter forte. Kore recebe autorização para viver entre os deuses após decidir se preparar para uma vida como virgem sagrada. Em sua primeira festa no Olimpo, ela encontra Hades, o enigmático e frequentemente mal compreendido governante do submundo, que desperta uma atração mútua intensa.

A narrativa de “LORE OLYMPUS” assemelha-se às tramas de séries americanas repletas de intrigas e romances, onde personagens poderosos manipulam situações e uns aos outros, ao mesmo tempo que constroem e desconstroem laços emocionais e se envolvem em relações sexuais com frequência. Dentro deste ambiente repleto de figuras astutas e calculistas, Kore surge como uma figura inocente e inexperiente. Cheia de incertezas sobre seu papel entre os deuses e em meio à descoberta de sua própria sexualidade, ela se destaca. Sua natureza genuína e ainda não corrompida por jogos de poder a torna objeto de fascínio tanto para aqueles que buscam uma conexão autêntica, esquecida por muitos, quanto para os que veem nela uma oportunidade de tirar proveito.

Ao contrário do que eu esperava, depois de ler os quatro primeiros volumes, fiquei surpreso ao ver que Hades é sincero em suas ações, que geralmente mostram muito respeito e carinho por Kore. O amor que surge entre eles é verdadeiro, porém complicado devido às diferenças de idade, experiência e poder. Como acontece em muitos livros de fantasia, temos que entender que Hades é um personagem com séculos de vida que se apaixona por uma jovem de 19 anos. Esse aspecto é mencionado na história e provoca uma discussão entre os personagens. Isso serve para mostrar que a autora está ciente dessa questão, mas nos lembra que estamos lidando com uma fantasia, que deve ser vista como tal e não como realidade. Entender esse ponto é essencial para desfrutar da leitura sem desconforto.

Esse entendimento não se aplica apenas à diferença de idade entre o casal principal, mas também a outras situações na história. Por exemplo, na trama, Kore fica bêbada em uma festa e é levada inconsciente por Hades para a casa dele. Ele cuida dela, mantendo sua privacidade, de acordo com o respeito que a situação e a pessoa merecem. Esse é o primeiro encontro entre eles e serve como ponto inicial para que o leitor comece a gostar dos personagens. No entanto, é importante lembrar que isso é parte de uma fantasia. Os leitores não devem confundir esses eventos com o mundo real, onde as consequências de uma mulher inconsciente sendo levada por um desconhecido, especialmente alguém rico e poderoso, poderiam ser desastrosas.

A autora cuidadosamente incorpora diálogos naturais e sutis entre os personagens para comunicar essa atenção. Ela enfatiza que, embora os eventos descritos façam parte de uma fantasia, eles não devem ser confundidos com a realidade. No primeiro volume, a trama termina com uma situação dramática e difícil para os jovens personagens que estão começando a amadurecer e que não estão acostumados a um mundo cheio de intenções ocultas. Especificamente, isso se refere ao momento em que Kore conhece Apolo. Durante um período de incerteza sobre seu futuro e seus sentimentos, Kore é envolvida por Apolo e acaba sendo estuprada, sem ter plena consciência do que aconteceu.

Meu receio com relação a essa situação, e algumas outras, é se Apolo enfrentará consequências adequadas por suas ações. Há preocupações de que ele possa ser tratado de maneira excessivamente simpática ou que a narrativa possa, eventualmente, tentar redimi-lo de forma inapropriada, o que pode ser problemático para leitores que desejam ver justiça para Perséfone e para leitoras que passaram pela mesma situação. Mas tenho esperanças de que não.

Além do casal principal e de Apolo, mencionado anteriormente, a série conta com vários outros personagens importantes que têm suas próprias histórias. Zeus, por exemplo, é carismático, mas também tem uma tendência a ser egoísta e manipulador, criando frequentemente conflitos e desafios para outros personagens, incluindo seus irmãos e amantes. Hera, por sua vez, é elegante e majestosa, além de forte e autoritária. Apesar disso, ela tem um profundo senso de justiça e lealdade. Como esposa de Zeus, Hera enfrenta a complexidade do seu casamento e as inúmeras infidelidades do marido.

Deméter, a mãe superprotetora de Perséfone, está sempre preocupada com a segurança e a pureza de sua filha. Esse cuidado excessivo leva a conflitos quando Perséfone começa a buscar sua independência e a se aproximar de Hades. Hermes, por outro lado, atua como um mensageiro entre os deuses, frequentemente envolvido em travessuras. Ele é um amigo próximo de Perséfone e proporciona momentos de alívio cômico na narrativa, embora também traga conselhos e sabedoria inesperados. A série é rica em personagens que, em momentos diferentes, tomam a frente da trama.

A título de curiosidade, na mitologia grega, a relação entre Hades e Perséfone é fundamental e aparece em várias histórias. Perséfone, filha de Deméter, a deusa da agricultura e colheita, estava colhendo flores quando foi vista por Hades, o deus do submundo, que se apaixonou por ela. Movido por esse sentimento, Hades a sequestrou e a levou para o submundo para ser sua esposa. Esse mito é muitas vezes visto como uma representação simbólica das mudanças das estações do ano. O sequestro de Perséfone representa o período de esterilidade da terra no inverno, enquanto seu retorno simboliza a renovação e o crescimento da primavera.

Deméter, arrasada com o desaparecimento de sua filha, procurou-a sem descanso. Enquanto isso, ela deixou de cuidar de suas funções como deusa da agricultura, o que causou uma grande fome na terra. Finalmente, Zeus interveio e ordenou que Hades permitisse que Perséfone voltasse. No entanto, antes de liberá-la, Hades a fez comer sementes de romã, o que a vinculou ao submundo para sempre. Foi então estabelecido que Perséfone passaria parte do ano no submundo com Hades e o restante na terra com sua mãe. Geralmente, ela ficava um terço do ano (os meses de outono e inverno) com Hades e dois terços (primavera e verão) com Deméter. Essa divisão do ano é também uma metáfora para as estações, representando o ciclo anual de crescimento, colheita e repouso na natureza.

Hades e Perséfone, dentro da mitologia, são vistos como o casal real do submundo. Apesar de seu relacionamento começar com um sequestro, eles são frequentemente retratados governando juntos de maneira harmoniosa e cooperativa. Perséfone, como rainha do submundo, assume uma posição de poder e respeito. Ela é temida e respeitada pelos mortos, exercendo grande influência e frequentemente participando nas decisões sobre o destino das almas.

Da mesma maneira, na mitologia grega, Apolo é conhecido por ser um dos deuses com comportamentos mais problemáticos. Uma das histórias mais famosas envolve seu amor não correspondido pela ninfa Dafne. Quando Dafne rejeitou Apolo, ele a perseguiu de forma obsessiva. Desesperada para escapar dele, Dafne pediu aos deuses que a ajudassem e foi transformada em uma árvore de louro para evitar Apolo.

Outra narrativa conta que Apolo se apaixonou por Cassandra, a princesa de Troia. Ele ofereceu a ela o dom da profecia esperando ganhar seu amor. Quando Cassandra aceitou o dom, mas recusou o amor de Apolo, ele a amaldiçoou para que ninguém acreditasse em suas previsões. Este mito demonstra o lado vingativo e manipulador de Apolo, punindo Cassandra de forma severa por não corresponder aos seus sentimentos.

Apolo também teve um relacionamento com Coronis, uma mortal. Ao descobrir que ela o traía com outro homem, Apolo, movido por ciúmes e raiva, a matou. No entanto, ele logo se arrependeu e tentou salvar o filho que Coronis esperava, Asclépio.

Rachel Smythe traz esses aspectos mitológicos para a caracterização de Apolo, mostrando-o como um deus que exibe comportamentos tóxicos e abusivos. Na série, Apolo exerce uma obsessão e tenta controlar Perséfone, culminando em um ato de violência contra ela. Smythe explora como Apolo manipula e busca vingança, sendo retratado como alguém que inicialmente não reconhece a seriedade de suas ações, demonstrando uma clara falta de empatia e compreensão do impacto de seu comportamento.

LORE OLYMPUS” combina romance, drama e elementos sobrenaturais, tratando de temas contemporâneos como consentimento, abuso de poder, trauma e relações interpessoais complexas. A abordagem de Smythe é atenta e respeitosa, destacando questões significativas de forma que a história mantenha o encanto e a leveza típicos dos mitos. Os personagens evoluem de maneira gradual e profunda, criando uma conexão emocional forte com os leitores. A trajetória de Perséfone é especialmente comovente, mostrando sua busca por autonomia e identidade em um ambiente que frequentemente tenta dominá-la. Além disso, a série aborda amor, amizade, lealdade e o conflito entre tradições antigas e a vida moderna.

A série foi finalizada pela autora no dia 1 de junho deste ano, 2024. Se não conseguir esperar a publicação dos próximos volumes, você pode fazer a leitura pelo site da autora.


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AUTORA: Rachel Smythe
ILUSTRAÇÕES: Rachel Smythe
TRADUÇÃO: Érico Assis
EDITORA: Suma
PUBLICAÇÃO: 2022
PÁGINAS: 384
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