Ursula K. Le Guin mantém a maioria de suas histórias em um universo próprio, chamado de Hainish, onde alguns eventos são compartilhados ou mencionados de um livro para o outro. Por exemplo, em A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO, um dos personagens principais utiliza um aparelho que permite a comunicação instantânea entre dois pontos, não importa o quanto estejam distantes. É a teoria do tempo contínuo, desenvolvido por Shevek, no livro OS DESPOSSUÍDOS, cuja resenha você pode ler aqui.

Outra constante de suas histórias, é a diversidade e a inclusão. Para uma escritora de livros da década de 1960, era notável como conseguia inserir em suas tramas, temas como diferenças étnicas, feminismo, ideias de gênero, diferentes espécies, além de uma discussão política baseada em integração e integridade. Mas o que está presente, quase sempre, é a relação social, onde o gênero é irrelevante, onde o importante se baseia na lealdade e traição. O tema é uma forte premissa para A CURVA DO SONHO (resenha aqui) e A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO.

Nesta história, Genly Ai é um terráqueo enviado ao planeta Gethen para convencer seus líderes a se unirem ao Ekumen, uma coalizão de 80 mundos humanóides que compartilham tecnologia, conhecimento e comércio. Genly Ai desembarca em Karhide, um estado governado pelo rei Argaven, e recebe o apoio do primeiro-ministro, Estraven, para conseguir avançar nas negociações. Mas um dia antes da audiência com o rei, Estraven é acusado de traição, por manter relações secretas com o estado vizinho e inimigo de Karhide, é banido do reino e ameaçado de morte caso retorne. Genly Ai tem sua audiência assim mesmo, mas não consegue concluir as negociações, o rei se recusa a fazer parte do Ekumen.

Persistente, Genly Ai decide viajar para o tal reino vizinho, Orgoreyn, um estado governado por três regentes, que é bastante diferente de Karhide. Lá, ele volta a ter contato com Estraven, enquanto as negociações parecem correr de forma bem melhor. Nesse ínterim, Genly Ai fica sabendo da existência de uma polícia secreta, cujos membros são os verdadeiros controladores de Orgoreyn. Então, alguns segredos começam a surgir, a vida de Genly Ai fica ameaçada e sua única chance é obter a ajuda de Estravem e retornar a Karhide antes que seja tarde demais.

Genly Ai e Estraven são os protagonistas de A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO, e os capítulos são alternados entre as duas narrativas em primeira pessoa. A maior dificuldade de Genly Ai não é conseguir finalizar as negociações com o povo de Gethen, e nem sequer é o ponto focal da trama, mas, sim, a compreensão do gênero, ou da indefinição de gênero, dos nativos do planeta.

Em Gethen, todos são andróginos, ambissexuais. Eles não possuem um gênero definido na maior parte do tempo, e apenas quando entram no ciclo reprodutivo, desenvolvem órgãos sexuais, que podem mudar de ciclo para ciclo. Ou seja, uma mesma pessoa pode ser feminino ou masculido dependendo da época. E a reprodução e gestação depende do gênero do momento em que ocorre a fecundação. Eles são pais e mães ao mesmo tempo, mudando de acordo com o ciclo.

Genly Ai possui uma grande dificuldade para compreender seres de gênero indefinido, e isso interfere na sua missão. Apenas quando precisa fugir de Orgoreyn e retornar a Karhide, através de um deserto de gelo, com a ajuda de Estraven, que muda sua percepção. Genly Ai e Estraven enfrentam a morte juntos, compartilham pensamentos, aspirações e, por fim, sentimentos e intimidades, mas sem chegar ao físico.

Ao fim, Genly Ai passa a sentir por Estraven, algo mais do que amizade. E compreende a essência de seres que não se prendem a virilidade, machismo, feminismo, sexo frágil ou sexo forte, e demais estereótipos e preconceitos, porque não existem diferenças de gêneros, todos são o mesmo o tempo todo. Obviamente é uma crítica a nossa sociedade. Le Guin defende a abolição da restrição de papéis devido ao gênero.

A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO é uma ficção-científica que trata da aceitação de que não existem diferenças baseadas no gênero entre as pessoas, que todos são capazes de realizar ações de acordo com suas capacidades intelectuais e físicas, não por seu sexo. Uma leitura rica em ensinamentos, em discussões, e cabe a cada um saber absorver, desde que coloque de lado o preconceito, o racismo, ou qualquer outro muro preconceituoso.


AUTORA: Ursula K. LE GUIN
TRADUÇÃO: Susana L. de ALEXANDRIA
EDITORA: Aleph
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 304


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