O que você faria se pudesse ficar invisível? Quem nunca sonhou com a liberdade de fazer tudo, observar sem restrições, desvendar os segredos mais íntimos de qualquer pessoa? Tudo isso sem deixar vestígios, exceto por um fugaz aroma de caramelo…

Lançado originalmente na década de 80, O PERFUME DO INVISÍVEL é uma obra que entrelaça elementos de erotismo com uma história sobre a invisibilidade. A história é centrada em um homem que encontra uma fórmula para tornar-se invisível. Ele utiliza sua invisibilidade para entrar em espaços privados, observando e, em alguns casos, intervindo na vida das pessoas de maneiras que questionam a ética de suas ações. A invisibilidade serve como uma metáfora para a voyeurística natureza humana e os desejos ocultos que muitas vezes permanecem não expressos.

Milo Manara é um autor reconhecido por seu trabalho minucioso e por sua habilidade em capturar a beleza da forma feminina, mesclando realismo e fantasia de um jeito único. O PERFUME DO INVISÍVEL está entre suas criações mais famosas, admirado pela sua qualidade artística e criticado pelo modo como explora temas como o conceito de poder. Artisticamente falando, Manara se destaca pelo detalhe da forma humana, trazendo à tona uma sensualidade que quase se pode sentir. Cada imagem de O PERFUME DO INVISÍVEL é, por si só, uma peça de arte. O jogo de cores intensifica a atmosfera sensual da obra, enquanto as expressões dos personagens nos fazem navegar por um leque de sentimentos, do desejo à inquietação.

No entanto, a trama de O PERFUME DO INVISÍVEL não está à altura da qualidade de seus desenhos. A história do cientista e da fórmula da invisibilidade serve mais como um pretexto para criar cenas de erotismo, com muitas das imagens focando na personagem feminina em posições sensuais, provocativas ou em atos sexuais. O cientista, detentor de um feito inédito para a humanidade, parece ter como única preocupação o uso desta descoberta para observar secretamente a mulher por quem é apaixonado, já que lhe falta coragem para se aproximar dela de outra forma. A personagem feminina principal, por sua vez, passa a maior parte do tempo seduzindo e envolvendo-se com o cientista, numa tentativa de desviar sua atenção de sua obsessão inicial. O enredo acaba por se assemelhar aos de filmes pornôs, onde a trama serve principalmente como um meio para encadear cenas de sexo entre os personagens.

A classificação de O PERFUME DO INVISÍVEL como obra pornográfica ou erótica é uma questão de interpretação, que depende em grande parte das expectativas do leitor e dos critérios usados para diferenciar pornografia de erotismo. Penso que a obra de Manara, frequentemente caminha na linha tênue entre o erótico e o pornográfico. Por definição, tradicionalmente, o erotismo nas artes é associado à representação do desejo sexual e da atração de uma forma que pode incluir, mas não é limitada a, elementos explícitos. O objetivo é frequentemente evocar uma apreciação estética ou emocional da sexualidade humana. Já a pornografia, por outro lado, é geralmente definida por seu foco direto na excitação sexual do público, com menos ênfase na qualidade narrativa, desenvolvimento de personagens ou profundidade emocional.

Manara é inegavelmente mestre em criar imagens que provocam e exploram a sexualidade de forma visualmente estimulante. A percepção da obra pode variar significativamente entre os leitores, com alguns vendo-a predominantemente como material pornográfico, enquanto outros apreciam as nuances artísticas e temáticas. O que pode ser considerado pornográfico em um contexto pode ser visto como arte erótica em outro. Reconhecer a complexidade dessa interação entre a intenção do artista, a execução da obra e a recepção do público é fundamental para uma apreciação completa de trabalhos que exploram abertamente temas de sexualidade e desejo. Na minha visão, o que separa uma obra de arte erótica da pornografia é basicamente a presença de uma história consistente que integra o erotismo como um elemento da narrativa e o desenvolvimento dos personagens dentro dessa história. Em contrapartida, quando a maioria das cenas foca em relações eróticas e sexuais, deixando a trama e os personagens sem um desenvolvimento claro, sem continuidade ou uma conclusão satisfatória, aí temos uma grande diferença.

O PERFUME DO INVISÍVEL, como muitas obras de Milo Manara, possui uma maneira problemática de como as mulheres são retratadas. É pertinente questionar a objetificação constante das personagens femininas e a prevalência de uma perspectiva masculina voyeurística. Apesar da alta qualidade da arte, a obra muitas vezes reduz as mulheres a objetos de desejo, ignorando suas complexidades. O tema da invisibilidade, explorado através de uma lente erótica, levanta questões significativas sobre consentimento e ética. O cientista, ao usar sua invisibilidade para observar e interagir com mulheres sem o conhecimento ou consentimento delas, encarna problemas reais de violação de privacidade e consentimento. Essas ações, retratadas de maneira lúdica ou erótica, podem ser interpretadas como problemáticas à luz dos direitos e respeito, existindo uma real preocupação que a popularidade possa perpetuar estereótipos e normas abusivas.

Sob uma percepção adicional, a retratação de mulheres de maneira altamente sensualizada e erótica, muitas vezes em poses sugerindo disponibilidade sexual ou em contextos de voyeurismo, podem ser vistas como um exemplo onde as mulheres são valorizadas principalmente por sua aparência e apelo sexual, ao invés de suas personalidades, intenções ou competências, além de perpetuar padrões inatingíveis de beleza e sexualidade. Em contrapartida, na obra, os homens raramente aparecem nus e são frequentemente retratados de maneira menos atraente, ou até mesmo feios, enquanto as mulheres são quase invariavelmente jovens, atraentes e sexualmente disponíveis. Isso não só reflete, mas também pode reforçar, normas culturais problemáticas sobre a sexualidade masculina e feminina, onde o desejo masculino é centralizado e o feminino é objetificado, reforçando a ideia de que o valor das mulheres reside em sua aparência e apelo sexual aos homens.

A forma como os homens são retratados de maneira menos atraente ou até exagerada pode refletir a ideia de que o valor de um homem está em seu status, poder ou ações, em vez de sua aparência. Isso contrasta com a ênfase dada à beleza física das mulheres. Essa diferença nas representações pode, sem querer, reforçar noções tradicionais sobre os papéis de gênero, onde o que mais importa numa mulher é como ela parece, enquanto para um homem, o que realmente conta são suas conquistas e posição social. Essa abordagem também pode ser uma maneira de compensar ou expressar inseguranças, sugerindo que, mesmo não sendo atraentes fisicamente, os homens podem exercer poder de outras maneiras. Isso reforça a perspectiva masculina sem questionar sua autoimagem, mantendo a ideia de que podem atrair parceiras atraentes independente de sua própria aparência.

A representação contrastante de gêneros em O PERFUME DO INVISÍVEL e obras similares pode, de fato, refletir inseguranças masculinas, desejos de superação e normas culturais sobre atratividade e valor nos relacionamentos. Essa interpretação destaca como a arte e a mídia não apenas refletem, mas também têm o potencial de moldar e questionar as percepções sociais de gênero, desejo e autoestima. Além disso, essas representações podem reforçar papéis de gênero tradicionais, onde se espera que os homens sejam os agentes ativos na perseguição de relacionamentos, enquanto as mulheres são objetificadas e colocadas no papel de serem desejadas. Essa dinâmica perpetua a ideia de que os homens devem buscar alcançar parceiras “perfeitas”, independentemente de sua própria aparência ou realidade.

Embora essas observações não sejam exatamente uma novidade para mim, ao ler O PERFUME DO INVISÍVEL, me deparei com dois aspectos que nunca tinha visto antes em obras desse tipo, e eles me causaram desconforto. O primeiro é a forma como as personagens femininas são constantemente colocadas umas contra as outras, competindo por atenção masculina, sucesso ou poder. Isso passa a ideia de que as mulheres são naturalmente invejosas, propensas a competições destrutivas ou incapazes de criar laços de solidariedade e suporte mútuo. Essa abordagem oferece uma visão negativa e distorcida dessas relações, menosprezando a capacidade de cooperação, empatia e apoio que existe entre mulheres. Quando as personagens femininas são retratadas como rivais, principalmente em situações ligadas à sua sexualidade ou ao desejo dos homens, isso pode reforçar ideias problemáticas sobre o valor das mulheres e de onde vem seu poder na sociedade.

O segundo ponto, que considero bastante repulsivo, envolve cenas em que Mel, a protagonista feminina, é surrada pelo cientista, com suas roupas rasgadas e escoriações pelo corpo, simplesmente por ter criticado a mulher por quem o cientista é obcecado. Em seguida, de forma perturbadora, Mel aceita o cientista de volta e eles retomam seu relacionamento sexual. Poucas páginas depois, Mel é novamente agredida, desta vez através de um estupro. Representações de violência sexual em mídias têm um impacto significativo na forma como a sociedade compreende e responde ao estupro na vida real. Existem argumentos de que a arte que retrata estupro de maneira irresponsável pode contribuir para a desinformação e perpetuar mitos nocivos sobre o estupro, como a falsa noção de que vítimas podem “desfrutar” da experiência, ou que certos comportamentos justificam a violência sexual. Essas cenas podem reforçar normas sociais danosas, minimizar as experiências reais de violência contra mulheres e evidenciar questões mais amplas na indústria dos quadrinhos e na mídia em geral sobre como gênero e violência são retratados. Quando tais atos são retratados sem consequências significativas para os agressores ou sem uma crítica clara dessa violência, há um risco de que o público possa se tornar dessensibilizado à gravidade desses atos. A preocupação também se estende à maneira como essas cenas de violência interagem com a objetificação geral das mulheres nas obras de Manara. A combinação de erotização e violência pode ser particularmente problemática, pois sugere uma conexão perturbadora entre o desejo sexual e a agressão, perpetuando a ideia de que a violência contra as mulheres é de alguma forma aceitável ou até mesmo desejável.

O PERFUME DO INVISÍVEL, como muitas obras de arte e literatura, é profundamente influenciado pelo contexto cultural e temporal em que foi criado. Milo Manara, trabalhando principalmente durante o final do século 20, produziu uma obra que reflete as normas sociais, os valores estéticos e as atitudes em relação à sexualidade e gênero da época. Desde então, as sensibilidades culturais evoluíram, e o que era considerado aceitável ou normativo pode agora ser visto sob uma luz crítica. Reconhecer que as normas sociais e as atitudes em relação a gênero, sexualidade e consentimento evoluíram significativamente desde a publicação original da obra é crucial para os leitores de hoje em dia, tanto em termos de compreender seu valor histórico quanto em termos de mitigar a influência de seus aspectos mais problemáticos. Isso não isenta a obra de críticas, mas permite uma compreensão mais profunda de suas origens.

É fundamental desenvolver uma capacidade de leitura crítica. Isso envolve questionar as representações de gênero, as dinâmicas de poder e a objetificação presente na obra, considerando como esses elementos se alinham ou divergem das atitudes atuais. Consumir arte com consciência e uma postura questionadora é essencial para não internalizar mensagens prejudiciais. A responsabilidade do leitor ao se debruçar sobre O PERFUME DO INVISÍVEL ou qualquer outra obra com elementos potencialmente problemáticos é dupla: deve-se apreciar a obra em seu contexto histórico e artístico, ao mesmo tempo em que se mantém uma perspectiva crítica sobre os aspectos que não se alinham com os valores éticos e sociais atuais. Essa abordagem equilibrada permite uma apreciação plena da obra, reconhecendo tanto seu valor artístico quanto suas limitações, sem deixar de lado o discernimento crítico essencial em uma sociedade que busca igualdade e respeito mútuo entre os gêneros.

Finalizando, é crucial notar que O PERFUME DO INVISÍVEL pode não ser apropriado para todos os públicos devido ao seu conteúdo explícito e às questões complexas que aborda, incluindo a representação de violência e consentimento. Potenciais leitores devem estar cientes de que a obra contém cenas que podem ser consideradas controversas ou ofensivas para alguns. Portanto, é recomendado para um público maduro, que esteja preparado para engajar com o material de uma maneira crítica e reflexiva.

Hoje em dia, parece que o público mais interessado nesta obra são aqueles que, de certa forma, ainda compartilham da mentalidade da época em que foi criada. No entanto, a esperança é de que a maioria dos leitores seja composta por adultos interessados nas dimensões artísticas do erotismo e na capacidade de Manara de capturar desejo e sensualidade através de seus desenhos. Isso se aplica especialmente aos já admiradores do trabalho de Manara ou àqueles com um interesse particular em quadrinhos europeus. Esses leitores podem ver nesta obra um exemplo marcante do estilo e dos temas que o autor frequentemente explora.

Eu deixo uma nota de atenção e cuidado para as leitoras. Existem preocupações importantes quanto ao efeito que o conteúdo abusivo e violento do quadrinho pode ter, especialmente levando em conta que muitas mulheres já vivenciaram violência e assédio. A representação dessas experiências de uma forma que possa parecer minimizar ou tornar a violência algo sensual pode ser muito alienante e danoso para aquelas que procuram na mídia uma forma de escapismo ou empoderamento.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Milo Manara
TRADUÇÃO: Fernando Paz
EDITORA: Comix Zone
PUBLICAÇÃO: 2024
PÁGINAS: 112
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