A dedicatória de Neil Gaiman em CORALINE é a seguinte: “Comecei este livro pela Holly. E terminei pela Maddy.”, e isso já é a primeira curiosidade que o leitor encontra. No pequeno texto introdutório que acompanha esta edição especial da Intrínseca, Gaiman relata o início da história, em 1987, quando se mudou para uma casa na Inglaterra que serviu de inspiração para a casa onde os eventos do livro acontecem e logo após o nascimento de sua primeira filha, Holly. Pouco tempo depois, quando o texto ainda estava na metade, ele se mudou para os Estados Unidos. Durante os próximos 6 anos ele não tocou na história, até que sua segunda filha nasceu, Maddy. Essa introdução tem várias outras curiosidades e vale muito a leitura.

Aliás, o que mais existe em CORALINE são curiosidades, detalhes que o leitor se pega pensando no significado por horas. Alguns é possível chegar a algum entendimento, alguma compreensão; já outros ficam apenas na incógnita do que poderia ser, sem nunca se descobrir. E esse equilíbrio entre o que é possível e o que não é possível, é o que torna a leitura ímpar. Inclusive sobre a personagem principal, Coraline. Durante toda a história, e mesmo ao fim dela, você ficará na dúvida se tudo o que aconteceu, realmente aconteceu, ou se não foi apenas a imaginação fértil de uma criança ociosa pelo isolamento e pela indiferença dos pais.

Os pais de Coraline se mudam para um enorme casarão. Ele é tão grande, que o proprietário dividiu em apartamentos, que são ocupados por vizinhos bastante excêntricos. Naquele em que Coraline mora, existe uma sala quase vazia. Nessa sala, uma enorme porta, a maior da casa. E atrás dessa porta, apenas uma parede de tijolos. Mas certa noite, Coraline segue o som de ruídos feitos pelo dono de uma sombra misteriosa. Assim, ela descobre que a tal porta está aberta e que no lugar dos tijolos, existe um corredor. Seguindo o corredor, Coraline entra em um mundo quase igual ao seu, mas mais colorido, com outros pais e outros vizinhos, que se diferenciam dos originais por terem botões no lugar dos olhos e uma pele muito pálida.

Coraline fica fascinada por esse novo mundo, onde seus outros pais são mais atenciosos e carinhosos, onde até mesmo a comida é mais farta e melhor, e onde um estranho gato preto, a única criatura viva que é a mesma do mundo original e que não tem botões no lugar dos olhos, consegue falar com ela. Coraline se sente mais em casa nesse outro mundo, do que no seu original. Mas aos poucos, ela começa a descobrir segredos de sua outra mãe, uma criatura que é perigosa e que pode impedir que Coraline possa voltar para sua verdadeira casa.

A narrativa de CORALINE é obviamente voltada para crianças e pré-adolescentes. A forma como Gaiman escreve, sempre com frases curtas, diretas, com explicações e conclusões entre parêntesis, com ações que são facilmente críveis por crianças, graças à ingenuidade e criatividade da idade, mas que podem ser consideradas um pouco absurdas por adultos que se esqueceram da infância, demonstra a competência do autor em criar mundos mágicos e cheios de perigo, da mesma forma como ele faz nos quadrinhos. Os próprios acontecimentos do livro são quase sempre rápidos, descritos em poucos parágrafos, e dentro de capítulos curtos. Exatamente da forma como se deve fazer literatura para crianças, uma forma de manter o interesse e a atenção delas no que está lendo.

Coraline é uma personagem apaixonante. E praticamente impossível não se apaixonar por ela. Ficamos tristes pela indiferença dos pais, sempre trabalhando e com pouco tempo e paciência para com a filha; ficamos comovidos pelas insistência de Coraline em tentar se aproximar deles e ser notada; ficamos curiosos pela forma como Coraline descobre e inventa coisas para fazer e passar o tempo; ficamos receosos de suas incursões em terrenos perigosos, como uma área onde existe um profundo poço escuro; sorrimos com as conversas que tem com os vizinhos, todos bastante estranhos e donos de um passado nebuloso; suspeitamos, junto com Coraline, das maravilhas do outro mundo e da atenção dos outros pais; tememos pela segurança de Coraline quando ela descobre que caiu em uma armadilha mortal. Ou seja, o leitor é totalmente preso a uma personagem muito bem construída e cheia de camadas de personalidade, de coragem, de iniciativa, de independência.

CORALINE é um livro para ser lido e discutido, tanto que existem centenas de matérias sobre ele. Muitos dos segredos da história não serão revelados, mesmo porque não há uma continuação, e acho que Gaiman não tem qualquer intenção de escrever uma. Mas eu, particularmente, considero isso um ponto positivo, embora reconheça que gostaria de ler um pouco mais sobre a garotinha e outras de suas aventuras.

Existe um filme homônimo feito em stop motion, com direção e roteiro de Henry Selick, o mesmo diretor de O ESTRANHO MUNDO DE JACK e JAMES E O PÊSSEGO GIGANTE. A escolha do diretor e a forma da animação não poderiam ser mais acertadas para compor o clima e a bizarrice de CORALINE. O filme segue de forma fiel tudo o que acontece no livro, com pequenas alterações para deixá-lo mais dinâmico e mais compreensível à mídia visual. Além de atenuar algumas pequenas partes que, se adaptadas literalmente, poderiam causar desconforto em algumas crianças. Mas nenhuma dessas modificações fica pior que as existentes no livro, apenas diferentes. E o resultado na história é o mesmo.

A mudança mais significativa do filme é a inclusão de um personagem que não existe no livro. Um garotinho que mora em uma casa vizinha à mansão de Coraline e que serve de guia para o entendimento de algumas situações. Eu, particularmente, amei o personagem e tenho pena dele não existir na história original. Ele sofre da mesma solidão de Coraline e no filme cria uma amizade que é muito benéfica para a menina. Além de ser muito fofo.

CORALINE é daqueles livros que você irá pegar da sua estante várias vezes durante sua vida. É uma história com tantos pormenores e pequenos segredos, que toda a vez que você ler, descobrirá algo novo e irá se descobrir criando mirabolantes respostas para explicar esses segredos. Livros assim são poucos, não perca este. Ainda mais em uma das edições mais caprichadas e bonitas que existem.


AUTOR: Neil GAIMAN
ILUSTRADOR: Chris RIDDELL
TRADUÇÃO: Bruna BEBER
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 224


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