
Qual é o ponto de ruptura do sofrimento humano? Existe um? Ou a gente apenas continua cavando, mesmo quando já se está enterrado? Pergunta filosófica, talvez. Mas no meu caso, bem mais prática. Enquanto lia “Amanhecer na Colheita“, foram poucas as páginas que escaparam ilesas das minhas lágrimas. E não pelo saudosismo de voltar ao universo que conheci aos 13 anos. Doeu. Porque é demais. Porque é real demais. Porque é agora.
Suzanne Collins, mais uma vez, entrega uma distopia que de distópica tem pouco. Estamos em um mundo em que a guerra não é mais um evento distante ou um conceito abstrato de aula de história. Ela é o ar. A espetacularização da dor, o uso político da fome, a construção e repetição de discursos esvaziados — tudo isso é tão atual que às vezes a gente esquece que está lendo ficção. E talvez esse seja justamente o ponto: “Amanhecer na Colheita” é um espelho. Um espelho sujo, trincado, mas preciso.
Vi por aí algumas críticas sobre a volta da franquia. Comentários sugerindo que se tratava de oportunismo comercial. E tudo bem. A literatura também é mercado. Mas a pergunta que fica é: qual o problema de lucrar com algo necessário? Porque, sinceramente, me assusta mais gente que se incomoda com livros sobre guerra do que com a própria existência dela.
Ao longo da leitura, fui sendo levada a refletir sobre o que é verdade em tempos como os nossos. Como ela é fabricada. Como ela é vendida. E lembrei de Peirce, com sua doutrina do falibilismo, ao afirmar que nosso conhecimento está sempre em movimento, que a verdade nunca é definitiva. Santaella retoma isso dizendo que “a verdade muda, porque muda a realidade”. E a construção do discurso é o que define o que se “entende” como real. Daí à manipulação midiática é um pulo.
O mesmo pulo que a Capital deu ao dominar completamente a narrativa, transformando memórias em propaganda, dor em entretenimento, e realidade em roteiro.
E, sinceramente, o que a Capital faz senão isso? Criar uma versão. Insistir nela. Repeti-la até virar consenso? O que vemos em Panem, e tantas vezes no nosso mundo, é que a verdade fabricada se torna verdade aceita, porque questionar exige energia, e pensar, às vezes, dói mais que obedecer.
Collins nunca disse que seus livros eram sobre romance. Disse que eram sobre guerra. Trauma. Controle. O que “Amanhecer na Colheita” nos entrega é um aprofundamento brutal disso tudo. E faz isso por meio de um personagem que a gente pensava conhecer: Haymitch Abernathy. O mentor ácido, o alcoólatra, a figura que aparece sempre com um certo desprezo cínico na trilogia original, aqui ganha contorno, profundidade, história. Dor.
Aos 16 anos, Haymitch ganha o azar de ter seu aniversário coincidindo com o dia da colheita. Era pra ser um dia bom. Mas em Panem, otimismo é piada de mau gosto. Ainda mais quando se trata do Massacre Quaternário. O dobro de tributos, o dobro de horror. E é nesse começo seco, direto, sem respiro, que a gente entende que Collins não vai aliviar. E não alivia mesmo.
Mas o que o livro traz de novo não é a violência. É a construção dos silêncios. Os bastidores. Os não-ditos. É entender o que levou Haymitch a ser quem é. O acidente no desfile. A brutalidade do tratamento. A escolha que ele faz dentro da arena. E, acima de tudo, a punição que recebe depois. A morte da família. Por ordem direta do presidente Snow. Não tem justificativa. Não tem explicação. Tem mensagem. Tem demonstração de poder. Tem o aviso: nós decidimos o que você pode lembrar.
E é aqui que a ideia de Peirce encaixa de novo. Porque o que a Capital faz é apagar a possibilidade do questionamento. Eles não querem apenas controlar a narrativa. Eles querem que você não queira mais pensar sobre ela. Porque questionar dói. Pensar dói. E viver anestesiado, mesmo na miséria, às vezes parece mais fácil.
Quando eu tinha uns 16 anos, acho, li um dos ensaios de David Hume. Ou melhor, uns recortes dele, em livro didático. Depois disso, vi o nome dele pipocando aqui e ali. Mas confesso que nunca fui muito a fundo. Não por falta de vontade, talvez por excesso de ansiedade. Mesmo assim, nunca esqueci uma coisa: Hume não confiava em certezas. E por que estou falando de Hume? Porque Collins se apoia em algumas de suas ideias ao longo do livro.
Ele dizia que a gente tende a achar que se uma coisa vem depois da outra, ela foi causada pela anterior. Mas que isso é só hábito. Que a causalidade é uma suposição, não uma prova. E o que é a narrativa da Capital se não exatamente isso? Um emaranhado de causas fabricadas, de certezas simuladas, de discursos costurados para gerar obediência? Haymitch vê isso. E paga o preço por ver.
Collins acerta porque não tem medo de falhar. Não tem medo de repetir o universo, desde que o aprofunde. E aprofunda. Muito. As figuras conhecidas ganham novas formas. Os silêncios ganham vozes. E, mesmo sabendo exatamente onde Haymitch vai parar, a gente sofre como se não soubesse. Ou pior: sofre mais, porque sabe.
E quando a gente finalmente entende isso, quando a gente finalmente enxerga aquele homem quebrado do Distrito 12 como um menino de 16 anos tentando proteger a própria mãe, o próprio irmão, a própria dignidade, a gente não sai ileso.
É claro que o livro é violento. Mas quando não foi? Desde quando Panem foi gentil? A Capital nunca precisou de muito mais que um roteiro bem editado e algumas luzes no lugar certo para transformar uma execução em espetáculo.
Os tributos são muitos. Os personagens, impossível lembrar de todos. Collins, como sempre, não tem espaço para se aprofundar em todos. E nem precisa. Às vezes, uma frase, um olhar, uma ausência, dizem mais do que um capítulo inteiro. E, ainda assim, há personagens que ganham relevo, que emocionam. Que acompanham Haymitch e nos acompanham no processo de olhar para ele com outros olhos.
A guerra é um projeto. A manipulação também. E “Amanhecer na Colheita” sabe disso. E mostra isso. Com coragem. É por isso que, se for pra reabrir um universo, que seja assim. Com dor. Com reflexão. Com polêmica. Com verdade. Mesmo que ela nunca seja absoluta.
E se você ainda duvida da atualidade do enredo, é só pensar um pouco. Guerra? Temos. Fome? Sim. Mentiras vendidas como verdades? Todos os dias. Então me diz… qual é mesmo o problema de escrever sobre isso?
AVALIAÇÃO:
AUTORA: Suzanne Collins TRADUÇÃO: Regiane Winarski EDITORA: Rocco PUBLICAÇÃO: 2025 PÁGINAS: 448 COMPRE: Amazon |