A história de “Neon Genesis Evangelion” começa após um evento devastador chamado Segundo Impacto, que destruiu grande parte da humanidade e mudou o curso da civilização. Para enfrentar novos desastres causados por entidades enigmáticas conhecidas como Anjos, surge a organização paramilitar NERV, liderada pelo enigmático Gendō Ikari. É nesse cenário que seu filho, Shinji Ikari, de apenas 14 anos, é convocado para pilotar um mecha gigante chamado Evangelion, encarando ao mesmo tempo a ameaça dos Anjos e seus próprios conflitos internos, especialmente os relacionados à figura paterna ausente e fria que agora precisa ajudá-lo a salvar o mundo.
Enquanto as batalhas contra os Anjos tomam dimensões cada vez maiores, a luta pessoal de Shinji pelo afeto do pai e pelo autoconhecimento se torna o fio condutor da narrativa. Ao lado dele, outros personagens, como a misteriosa Rei Ayanami e a explosiva Asuka Langley Sōryū, também pilotam suas respectivas unidades Evangelion, cada qual carregando motivações, traumas e buscas próprias. É nesse contexto que a história se desenvolve de forma crescente em tensão, misturando ação, drama psicológico e fortes doses de existencialismo.
O mangá de Evangelion foi concebido por Yoshiyuki Sadamoto, que atuou tanto como autor quanto como artista. Embora Hideaki Anno seja o nome frequentemente associado à criação original do anime, Sadamoto trouxe seu traço marcante e uma sensibilidade única para o enredo com liberdade para explorar nuances diferentes em sua versão impressa, construindo uma narrativa que combina o escopo épico da série com toques ainda mais pessoais e introspectivos.
No mangá, a progressão dos eventos é contada de forma mais linear em comparação ao ritmo acelerado e, por vezes, abstrato do anime. Sadamoto usa cada capítulo para evidenciar os conflitos internos dos personagens, fazendo com que as batalhas contra os Anjos sejam, antes de tudo, um reflexo das lutas individuais que cada piloto enfrenta. A NERV se revela não apenas como uma organização militar, mas como uma teia de relacionamentos complexos, onde jogos de poder, segredos e interesses sombrios convergem para um objetivo maior e misterioso.
Essa abordagem narrativa favorece uma leitura mais pausada, em que o leitor tem tempo para absorver detalhes sobre a história, o passado de cada personagem e as implicações filosóficas que cercam a Instrumentalidade Humana — projeto final que pode redefinir o destino da humanidade. O mangá se vale desses momentos de introspecção para pontuar reviravoltas significativas, tornando a experiência equilibrada entre ação mecha e drama existencial, sem nunca perder de vista o cerne humano que sustenta todas as batalhas.
Ao longo dessas páginas, Evangelion também se destaca pelas reflexões que propõe sobre isolamento, solidão e a dificuldade de estabelecer conexões genuínas. Shinji, Rei e Asuka são, em essência, adolescentes que lidam com expectativas sufocantes e traumas familiares — a Eva, nesse contexto, serve tanto como arma de defesa contra os Anjos quanto como metáfora do peso que cada um carrega ao enfrentar suas dores. A saga questiona até que ponto a humanidade pode lutar contra forças externas sem primeiro resolver seus conflitos internos, colocando em xeque a própria definição de identidade.
A simbologia religiosa e o uso recorrente de referências bíblicas reforçam essa atmosfera de busca por respostas universais. Ainda que a narrativa não se proponha a dissecar dogmas específicos, ela aproveita nomes e imagens fortes — como o fruto do conhecimento, Adão, Lilith e os anjos apocalípticos — para intensificar o sentido de urgência e a carga emocional. Tal escolha desperta uma curiosidade natural no leitor, que se vê impelido a decifrar esses elementos e usá-los para compreender melhor o dilema central: o que significa ser humano em um mundo que pode ruir a qualquer instante?
Os personagens de Evangelion são construídos com enorme cuidado, cada um trazendo um tipo de solidão e desajuste que os aproxima de temáticas universais de abandono e auto aceitação. Shinji Ikari, por exemplo, é o retrato de um adolescente inseguro que deseja aprovação, mas foge do contato humano por medo da rejeição. Sua história é a espinha dorsal do enredo, pois conforme ele cresce e enfrenta os Anjos, também enfrenta a sombra de seu pai, Gendō, que se mantém distante e obcecado por objetivos secretos.
Rei Ayanami, a Primeira Criança, permanece envolta em uma aura de mistério que Sadamoto explora com sutileza. Sua aparente indiferença e obediência irrestrita à NERV levantam questões sobre sua origem e a natureza de sua existência, ao mesmo tempo que pequenos gestos e diálogos deixam transparecer lampejos de humanidade. Já Asuka Langley Sōryū, a Segunda Criança, contrasta fortemente com Rei: altiva, orgulhosa e emotiva, ela oculta sob sua fachada de confiança uma imensa carência de afeto e medo do fracasso, fruto de um passado doloroso.
Os personagens adultos também reservam camadas de complexidade. Misato Katsuragi, major encarregada dos pilotos, vive um embate entre sua imagem pública — de líder competente e responsável — e as marcas que carrega do Segundo Impacto, além da relação turbulenta com Ryoji Kaji. Já Ritsuko Akagi, cientista à frente do desenvolvimento das Evas, evidencia as contradições de uma mente brilhante que, ao mesmo tempo, se vê presa em uma teia de sentimentos pessoais e familiares, especialmente ligada à memória de sua mãe.
A arte de Sadamoto é um dos grandes atrativos do mangá. Seu traço é limpo e elegante, ressaltando tanto as expressões faciais quanto a atmosfera tensa dos combates. Os Evangelions, gigantes híbridos de robôs e seres biológicos, são desenhados com detalhes suficientes para transmitir o caráter quase orgânico de suas estruturas, ao mesmo tempo que suas formas imponentes se destacam em cada painel de batalha.
Esse cuidado visual não se limita às cenas de ação. Momentos de introspecção e conversas silenciosas são retratados com a mesma atenção, o que reforça o tom dramático e permite que o leitor se aproxime das dores e desejos dos personagens. Pequenos enquadramentos em close-up, assim como o uso de contrastes entre luz e sombra, produzem um clima de suspense que permeia todo o enredo, trazendo à tona a ideia de que há muito mais acontecendo do que se vê na superfície.
O anime de “Neon Genesis Evangelion” dirigido por Hideaki Anno em 1995 é frequentemente lembrado como um marco cultural da animação japonesa, tendo revolucionado o gênero mecha com sua abordagem psicológica e temática adulta. É nele que muitos conheceram pela primeira vez os dramas de Shinji e companhia, sem imaginar que por trás de cada robô gigantesco havia uma profunda discussão sobre identidade, solidão e compaixão.
Já no mangá, a narrativa opta por um caminho ligeiramente diferente, dando um pouco mais de ênfase aos processos internos de cada personagem e diminuindo alguns dos momentos de abstração presentes no anime. Há mudanças pontuais na forma como certos acontecimentos são encadeados, bem como nas relações entre personagens secundários, o que oferece ao leitor a sensação de descobrir elementos novos, mesmo já conhecendo a história pela animação.
Além disso, o final do mangá, publicado em 2013, apresenta uma estrutura narrativa mais clara, evitando em certa medida as interpretações extremamente subjetivas que marcaram os últimos episódios do anime. Sadamoto conduz a conclusão de uma maneira que, embora mantenha o caráter reflexivo, amarra melhor algumas pontas soltas, proporcionando respostas mais concretas — mesmo que ainda restem questões filosóficas abertas à interpretação do leitor.
No conjunto, a versão de “Neon Genesis Evangelion” em mangá se destaca como uma obra indispensável para os fãs que desejam mergulhar ainda mais fundo no universo de Shinji, Rei, Asuka e cia. É uma leitura que conecta ação de alto nível, tensões psicológicas e questionamentos existenciais de forma magistral, oferecendo uma experiência completa tanto para quem já se apaixonou pelo anime quanto para aqueles que buscam uma forma diferente de explorar essa saga icônica.
AVALIAÇÃO:
AUTOR: Yoshiyuki Sadamoto ILUSTRADOR: Yoshiyuki Sadamoto TRADUÇÃO: EDITORA: JBC PUBLICAÇÃO: 2024 PÁGINAS: 336 COMPRE: Amazon |