Guerras mudam e destroem vidas numa incrível velocidade, mas tem alguém que acaba sofrendo mais nesses conflitos, os civis. E dentre a população civil, as mulheres são as mais injustiçadas em praticamente qualquer guerra no mundo, mas se esse conflito for no Oriente Médio, as dificuldades são multiplicadas em dez vezes. O SEGREDO DO MEU TURBANTE vai nos apresentar um relato extraordinário de sobrevivência e perseverança, algo que a gente veria num filme, mas que de fato aconteceu.

As guerras que aconteceram no Afeganistão no final do século 20 e inicio do 21, devastaram o país, que já era pobre, transformando a vida de sua humilde população em um grande inferno na terra. Nossa narradora se chama Nadia, uma menina que teve o seu corpo queimado num ataque a bomba, tal ataque que destruiu a casa onde ela e sua família viviam. Passaram a ter uma vida de nômades, indo de um lugar para outro e aceitando qualquer ajuda que lhe ofereciam. Porém, quando a guerra acabou e o Talibã subiu ao poder no Afeganistão, novas leis foram implementadas, leis islâmicas. Agora as mulheres não tinham mais liberdades, elas não podiam sair na rua sem a companhia de um homem, não podiam trabalhar, não podiam sair de casa sem uma vestimenta que cobria quase todo o seu corpo, não podiam ir ao médico, não podiam sair para fazer qualquer atividade de lazer ou diversão e não podiam ter outra vida a não ser a de dona de casa e esposa. A nova regra era simples, homens tinham que prover tudo para a sua família e as mulheres precisavam ser completamente submissas.

A família de Nadia era composta por ela, duas irmãs pequenas, sua mãe, seu pai e seu irmão. Mas o seu irmão morreu e seu pai, que já foi um importante e respeitável médico, desenvolveu distúrbios mentais com a guerra, perder tudo o que tinha mexeu com sua cabeça, logo ele se tornou instável e violento, ficava totalmente inválido com os remédios fortes que tomava para controlar seus ataques. Resta para Nadia assumir a responsabilidade de sustentar essa grande família, logo ela assume a identidade de seu irmão falecido e vira um menino, podendo sair de casa sempre que quisesse para procurar trabalho num Afeganistão miserável e quase sem oportunidades.

Graças a essas leis religiosas, a menina sacrificou grande parte da sua vida a fingir ser outra pessoa, para trabalhar pesado procurando sustento para a sua família. A narrativa é um choque de realidade, nos mostrando o quanto somos privilegiados. Nadia começa nessa vida mais ou menos aos 11/12 anos e trabalhava com tudo, plantações, animais, construções e também na limpeza de poços artesianos, um dos trabalhos mais difíceis que ela aceitou. O dinheiro era muito pouco e eles ainda passavam fome. São relatos fortes que machucam o leitor de uma forma muito dolorosa, o trabalho infantil, praticamente patrocinado pelo estado, parece coisa da história antiga, mas tudo isso aconteceu no final dos anos 90 e ainda hoje acontece em vários lugares.

Além de serem proibidas de praticamente viver, as mulheres não podiam ter acesso a educação. Elas só precisavam ser submissas e cuidar da casa, pra que saber ler e escrever para fazer isso? A taxa de analfabetismo no Afeganistão era gigante, e entre as mulheres era ainda maior. Nadia logo percebe que só a educação irá salvar a sua vida e da sua família. E mesmo trabalhando em lugares que sugavam suas energias, ela ainda procurava formas de entrar numa escola se passando por um menino, logo ela percebeu que tudo era possível quando você não é mulher.

Uma das passagens mais dolorosas de O SEGREDO DO MEU TURBANTE é quando Nadia começa a chegar na puberdade. Estava na lei que os meninos precisavam ter cabelo grande e barba, mas Nadia não poderia nunca ter barba, então ela pintava o rosto com fuligem para assim tentar enganar as pessoas que desconfiavam dela. E também é na puberdade que o corpo se desenvolve, para as mulheres é aqui em que o seio começa a ganhar forma, e esconder eles se tornou questão de vida ou morte para a menina. Para evitar o seu rápido desenvolvimento, Nadia começou a fazer jejum, literalmente passar fome todos os dias, para assim o seu corpo não ter nutrientes e não se desenvolver. E o pior ainda estava por vir, quando veio a primeira menstruação, a menina pensou que estava morrendo por causa dos jejuns. A vida sexual da mulher era um grande tabu, tanto que Nadia só foi entender porque ela sangra todo o mês quando uma amiga de uma ONG lhe contou como os bebês são formados, isso quando Nadia tinha 21 anos.

Um ponto muito interessante que Nadia se aprofunda em O SEGREDO DO MEU TURBANTE é sobre o papel da mulher na sociedade, o papel em geral. Porque uma hora o talibã saiu do poder e as leis de repressão a mulher perderam seu lugar. Mas é muito difícil arrancar essa divisão social que vive dentro das pessoas, ela pode não existir mais no papel, porém ainda acreditam até o ultimo fio de cabelo que as mulheres são inferiores. Mulheres com recursos até conseguem chegar longe, mas mulheres pobres, praticamente estão fadadas a uma vida de submissão. Então o leitor fica a todo o momento esperando Nadia se revelar uma mulher para todos e ser quem ela realmente é, já que o conflito acabou. Mas como um homem, Nadia conseguiu sair da miséria, como um homem ela conseguiu fazer a sua família sobreviver a duas guerras, como um homem ela era alguém conhecida na cidade e respeitada, se ela revelasse que na verdade é mulher, será que ainda iriam respeitar ela? Será que essas oportunidades tão sofridas que ela conseguiu ainda se manterão de pé?

A resposta para tudo isso é um grande não e a nossa protagonista sente isso na pele. É uma realidade mais que assustadora, você ver que praticamente seu tormento não terá nunca uma solução. Mas ainda há esperança, talvez não no Afeganistão, talvez Nadia precise bilhar em outro lugar, ela não precisa provar mais nada.

O SEGREDO DO MEU TURBANTE é um daqueles livros que deveriam ser leitura obrigatória em escolas, pois em suas trezentas páginas, a narrativa aborda com exemplos reais o machismo, a desigualdade, a pobreza, violência e intolerância. Nada melhor do que a própria vida para nos ensinar as coisas e seus capítulos extremamente ágeis e bem divididos fazem a leitura voar, sendo possível acompanhar toda essa jornada em apenas algumas horas. Um livro poderoso e doloroso, que merece ser descoberto.

Para concluir, eu deixo uma passagem que particularmente me tocou demais. Nela, Nadia é uma criança de 7/8 anos que está vivendo com sua família num campo de refugiados montado por ONGs internacionais. A comida é escassa e a vida é dura, graças à grande população de pessoas que vivem lá. Nadia passa o dia recolhendo metal para vender e conseguir uns poucos trocados para a sua família, mas depois de ouvir de um amigo que esse mesmo metal que ela recolhe é derretido e transformado em mais bombas para tacar no povo afegão, ela nunca mais fez isso na vida, mesmo que tenha que passar fome. Catar metal? Nunca mais.


AUTORA: Nadia GHULAM e Agnés Rotger
TRADUÇÃO: Denise SCHITTINE
EDITORA: Globo Livros
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 300


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