O MONSTRO DEBAIXO DA MINHA CAMA acompanha a trágica infância de Lucy, uma garota solitária que, dia após dia, precisa suportar os abusos do próprio pai e a omissão da mãe. Pouco a pouco, o comportamento dela começa a mudar, exibindo sinais preocupantes de crueldade. Mas o que se esconde por trás desse desvio de conduta é um conflito interno com a inocência causado pelo trauma, que distorce a realidade e faz com que a garota se perca em um mundo de fantasia, no qual seus brinquedos têm vida e todos os homens, incluindo seus colegas de escola, são monstros de histórias em quadrinhos.

Lançada originalmente em 2020, apenas em versão digital, a HQ rapidamente chamou a atenção do público e foi indicada a duas categorias do 33º Troféu HQMix e, pouco depois, congratulada com o 2º Prêmio Geek, promovido pela Amazon e pela editora Pipoca & Nanquim, que agora a lança em uma versão impressa.

Há diversas formas de violência doméstica, desde agressões como socos, tapas, empurrões, entre outros atos que podem atingir o risco de morte, até a violência sexual, ou estupro. Mas também pode envolver a humilhação sexual ou a imposição de práticas sexuais indesejadas. Outra forma é a violência psicológica e emocional que abrange ações que causam dano à autoestima e à saúde psicológica da vítima. Isso pode incluir humilhação, controle, isolamento, ameaças e outras formas de abuso verbal ou comportamental. E uma outra é a violência de poder, financeira, que ocorre quando o agressor controla o acesso da vítima a recursos financeiros, a impedindo de trabalhar ou de ter controle sobre o próprio dinheiro, uma prisão sem paredes.

O MONSTRO DEBAIXO DA MINHA CAMA, em poucas páginas, exemplifica todas essas formas de violência, porque todas estão presentes na vida de Lucy e de sua mãe. Essa é uma das “mágicas” do desenho, conseguindo transmitir em poucos traços, sentimentos de revolta que precisam de muitas páginas de texto para atingirem a mesma força.

O abuso que Lucy sofre se manifesta de várias formas, incluindo abuso físico, sexual, emocional e negligência. Em alguns casos, Lucy é vítima de mais de um tipo de abuso simultaneamente. Como consequência, Lucy apresenta lesões físicas, além de traumas psicológicos, depressão, ansiedade, distúrbios de personalidade, baixa autoestima, dificuldade de relacionamento e problemas comportamentais. Ela passa por dificuldades na escola, problemas de relacionamento com os colegas e professores.

Também é fácil perceber a manifestação de sintomas de depressão em Lucy. Ela é dona de uma tristeza persistente, apresenta falta de interesse nas atividades diárias e permanece em isolamento social, demonstrando sentimentos de desesperança com dificuldades em estabelecer e manter relações. E Lucy faz uso da dissociação como mecanismo de defesa, uma desconexão mental de situações traumáticas, e nos piores momentos, quando está sob o domínio do pai, ela se desliga da realidade. Ela procura se refugiar em sua imaginação, onde encontra algum alívio. Os brinquedos ganham vida, transformam-se em seu suporte, amigos imaginários com quem pode interagir. Ela acredita que esses brinquedos têm poderes especiais ou habilidades para protegê-la.

Mas a dissociação não fica apenas com os brinquedos. Lucy enxerga todas as figuras masculinas como monstros escuros e com chifres, criaturas ameaçadoras, cruéis. Quanto mais opressora é a pessoa, maior a sua representação como monstro. Esses sentimentos de opressão são perfeitamente representados nos traços de Luckas Iohanathan. Ele usa uma paleta de cores restrita, dominada por tons de preto, branco e nuances de rosa. A atmosfera visual criada é sombria, com o preto predominante acentuando um sentimento de opressão e tensão. Há muitos quadros com close-up de Lucy, muitas vezes com seus olhos cheios de lágrimas, e rugas acentuadas ao redor deles, transmitindo intensa emoção, principalmente medo ou tristeza. O uso da cor rosa nessas áreas destaca ainda mais a vulnerabilidade e sensibilidade de Lucy.

A linguagem corporal dos monstros são sombreadas, dominantes e imponentes, enquanto em muitos quadros, Lucy se encolhe em uma postura defensiva, denotando medo e submissão. As falas contidas nos balões de diálogo desses quadros reforçam essa dinâmica de poder e submissão. O uso habilidoso de sombras e contrastes entre luz e escuridão acentua o drama desses quadros. E a forma como Luckas optou por representar o ambiente sem muitos detalhes, preferindo focar nos personagens e suas emoções, é uma decisão acertada para conduzir a atenção do leitor diretamente ao conflito. A escolha das cores, o jogo de sombras e luz e a expressividade dos personagens trabalham juntos para criar uma narrativa visual intensa e emocionalmente carregada.

A mãe de Lucy é omissa em tudo o que acontece com a filha. Mas, apesar disso, é necessário compreender que ela também é uma vítima, apesar da indignação que causa. Ela também é abusada física e psicologicamente. Existem alguns motivos para a mãe de Lucy se tornar omissa. Há o medo de represálias, vergonha e culpa. A crença real de que a sociedade e as instituições, em muitos casos, não estão preparadas para identificar e lidar com estas situações. Ela é financeiramente dependente do marido e teme que, ao denunciá-lo, Lucy e ela percam o lugar em que moram. Ela se sente isolada de amigos e família, se sente vulnerável e sem apoio para enfrentar as agressões. Há momentos em que fica evidente que ela compreende que a situação é desesperadora, que não há saída e que as autoridades e a sociedade não acreditarão ou ajudarão Lucy e ela. Mas a HQ demonstra que sim, há saída. E de certa maneira, no local mais provável e de maior responsabilidade depois do lar. A escola.

A escola desempenha um papel fundamental na identificação e intervenção em casos de suspeita de abuso doméstico, já que profissionais da educação muitas vezes estão em uma posição única para observar sinais de maus-tratos em seus alunos. Uma pedagoga da escola observa os sinais de abuso em Lucy e, aos poucos, ela consegue se aproximar da mãe de Lucy. A abordagem é feita com cautela, ela compreende que algo mais direto poderia colocar Lucy em risco. Mas nem sempre essa cautela é na velocidade que a criança precisa. E Lucy não aguenta mais, não tem conhecimento dessa abordagem, e resolve ela mesma tomar uma atitude para terminar com seu sofrimento e da mãe.

O MONSTRO DEBAIXO DA MINHA CAMA é uma leitura profundamente impactante e triste. Ainda mais que é uma representação real de muitos lares, alguns ainda piores do que o retratado na HQ. É imprescindível que o leitor tenha consciência disso e se compadeça a ponto de tentar fazer parte da solução de problemas semelhantes. Se você suspeitar que uma criança possa estar sofrendo abusos em casa, é crucial agir com cuidado, sensibilidade e responsabilidade para garantir a segurança da criança. Antes de tomar qualquer medida, observe atentamente a criança e documente qualquer comportamento, declaração ou sinal físico que possa indicar abuso. Esta documentação pode ser útil para as autoridades posteriormente.

Se achar apropriado e seguro, você pode conversar calmamente com a criança. É importante não pressioná-la ou fazer perguntas sugestivas. Em vez disso, ofereça a ela um ambiente seguro para se expressar. Use linguagem apropriada para a idade dela e garanta que ela saiba que você está lá para ajudar.

Confrontar os possíveis agressores diretamente pode colocar a criança em maior risco ou comprometer investigações futuras. Se você acredita que uma criança está em perigo imediato, contate a polícia ou os serviços de emergência. Se estiver inseguro sobre como proceder, busque aconselhamento de organizações especializadas em proteção infantil. Eles podem oferecer orientação e recursos para lidar com a situação. Mas sempre proteja a privacidade da criança. Compartilhe suas preocupações apenas com as autoridades apropriadas ou com pessoas de confiança que possam ajudar a garantir a segurança da criança. Certifique-se de que a criança saiba que você está lá para apoiá-la e protegê-la. Mantenha uma linha aberta de comunicação e ofereça um ambiente seguro para que ela possa expressar seus sentimentos e preocupações.

Caso haja suspeita de agressão ou abuso sexual contra crianças, qualquer pessoa pode denunciar nos seguintes canais:

Polícia Militar: número 190;
Samu: número 192;
Qualquer delegacia de Polícia, e há as especializadas em atender crianças e mulheres;
Disque 100: número para denúncias anônimas de violações de direitos humanos;
Conselhor Tutelar da cidade;
Profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, psicólogos, etc;
Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pelo Whatsapp (61) 99656-5008;
Ministério Público.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Luckas Iohanathan
ARTE: Luckas Iohanathan
EDITORA: Pipoca & Nanquim
PUBLICAÇÃO: 2023
PÁGINAS: 100