Antes de falar sobre UM HOTEL NA ESQUINA DO TEMPO, eu preciso descrever um pouco o cenário mundial da época em que parte da história se passa. Isso é essencial para compreender melhor o drama dos personagens. Parte da história se passa em 1942, época em que a China e o Japão travaram uma guerra que começou em 1937 e terminou em 1945, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. O motivo principal era a anexação de territórios chineses pelo Império Japonês, em uma fase tardia de colonialismo. A China, apesar do imenso território, estava fragilizada pelo fim da monarquia e com uma guerra civil entre os apoiadores do governo republicano e os apoiadores da frente comunista.
Os dois países não haviam declarado guerra oficialmente, apesar das hostilidades. O Japão queria evitar a intervenção de outras potências no conflito, principalmente devido à importação de aço e petróleo que precisava da Grã-Bretanha e Estados Unidos. Mas isso era algo praticamente impossível. Em 1941, os EUA, que já operavam militarmente na China com soldados voluntários, e a Grã-Bretanha cortaram o fornecimento de petróleo. Isso foi um dos fatores determinantes para o Japão lançar o famoso ataque aéreo, em 7 de dezembro, à base naval americana de Pearl Harbor, além de iniciar uma invasão aos países do leste asiático e às ilhas do Pacífico Sul. Logo em seguida, os EUA, a China, a Grã-Bretanha e a França declararam oficialmente guerra ao Japão.
A derrota japonesa começou a ser construída logo no ano seguinte, em 1942, durante a Batalha de Midway, onde a Marinha Imperial Japonesa e a Marinha americana se enfrentaram ao redor das ilhas Midway, localizadas perto do Japão, o que resultou na destruição dos quatro principais porta-aviões nipônicos. Nos dois anos seguintes, 1943 e 1944, o Japão continuou a sofrer derrotas em diferentes pontos da Ásia, além de uma enorme escassez de matérias primas e abastecimento.
Entretanto, as vitórias tinham um custo alto para os EUA, uma vez que o exército japonês, devido a anos doutrinação, era obstinado e não se rendia até que o último homem caísse. Dezenas de milhares de soldados americanos morreram nas investidas, e o governo não queria mais que a guerra se estendesse. Como não havia acordo de rendição, a opção era invadir o Japão, o que teria um enorme custo de vidas do exército aliado, ou usar o resultado do Projeto Manhattan. Em 6 e 9 de agosto de 1945, os EUA utilizaram as bombas atômicas construídas pelo Projeto Manhattan nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Quinze dias depois, em 2 de setembro de 1945, o Japão se rendeu, colocando fim à Segunda Guerra Mundial.
Parte da história de UM HOTEL NA ESQUINA DO TEMPO se passa em 1986. Henry Lee, o personagem principal, é um americano de 52 anos, filho de chineses, que vive em Seattle, nos EUA. Viúvo recente (sua esposa, Ethel, faleceu após uma luta contra o câncer), ele fica surpreso ao passar na frente do Hotel Panamá e encontrar uma multidão na porta, uma vez que o local estava fechado desde os anos de 1950, ou seja, há 36 anos. Toda a comoção se devia ao hotel ter sido comprado por uma nova proprietário que, ao iniciar a reforma, encontrou no porão, os pertences de trinta e sete famílias japonesas que, ela presumia, haviam sido levadas para campos de concentração na época da guerra. Henry pede à proprietária autorização para entrar no porão e procurar por um objeto em particular que pertencia a alguém que ele conheceu na infância. Então, a narrativa volta a 1942, quando Henry tinha 12 anos de idade e o Hotel Panamá ficava na divisa entre Chinatown de Seattle, o bairro chinês, e Nihonmachi, o bairro japonês.
Os EUA foi um dos países que mais recebeu imigrantes entre o século XIX e XX. A maioria era de origem japonesa, que buscavam trabalho na américa para juntar dinheiro e voltar ao país de origem com uma melhor condição financeira. Conforme a comunidade crescia, também crescia um preconceito estereotipado. A situação se agravou com o início da guerra e com o ataque a Pearl Harbor. Então, o presidente americano, Roosevelt, assinou a Ordem Executiva 9066, que autorizava o exército a aprisionar todos os japoneses, e os americanos que tivessem descendência direta de japoneses, em campos de “internamento”, que eram na verdade campos de concentração. Não tão desumanos como os nazistas, claro, mas eram cercados por arames farpados, os japoneses não podiam sair, e corriam risco de serem mortos se o fizessem. Embora tenham criado escolas, bibliotecas, igrejas, pequenos teatros, e outras coisas, ainda assim era uma prisão. Mais de 120.000 japoneses foram transferidos para 10 campos espalhados por vários estados americanos, em regiões isoladas com condições climáticas adversas.
Em 1942, antes mesmo da ordem 9066 ser assinada, Henry andava sempre com uma etiqueta presa na frente da roupa, onde estava escrito: “eu sou chinês”. Isso servia para que as autoridades não o confundirem com um japonês. O pai de Henry conseguiu uma bolsa de estudos para o filho frequentar uma escola americana de grande prestígio em Seattle e exigia que Henry só falasse em inglês dentro de casa, mesmo o pai não sabendo falar inglês, para que o filho nunca ficasse sem praticar. Obviamente, um chinês em uma escola só de americanos, teria que enfrentar um constante bullying. Chaz, filho de um rico empresário, dono de vários imóveis em Chinatown, é o garoto que se torna o inferno na vida de Henry.
Henry ajudava na cantina da escola como parte das tarefas de bolsista. Um dia, ele se surpreende ao encontrar uma colega nova na cozinha para ajudá-lo. O nome da menina era Keiko, e ela era japonesa. Os dois começam uma amizade, mesmo Henry sabendo que era proibido pelo pai de se relacionar com japoneses, inimigos do povo chinês. Ele não podia sequer entrar em Nihonmachi, onde Keiko morava, mas ele ignorava as proibições e visitava a menina regularmente. Um dos pontos onde eles marcavam para se encontrar, quando não estavam na escola, era em frente ao Hotel Panamá.
A relação de Henry e Keiko é construída em cima da ingenuidade de duas crianças de 12 anos de idade. Ao contrário do pai de Henry, os pais de Keiko não tinham nada contra a amizade da filha com um chinês. Graças a isso, Henry recebe um pouco do afeto que não encontra em casa. Em uma época conturbada, com o drama da guerra presente todos os dias, uma das poucas diversões é a música. E ela vem na presença de um músico negro chamado Sheldon, que tocava na rua para conseguir alguns trocados, e que é o único amigo de Henry. É com a ajuda de Sheldon que muitos dos encontros entre Henry e Keiko se tornam memoráveis, sempre rodeados de música. E Sheldon também é responsável por um dos momentos mais emotivos da história. Mas com o ataque a Pearl Harbor e a Ordem 9066, acontece o pior e todos os japoneses de Seattle são levados para campos de concentração, inclusive Keiko e sua família.
Keiko é uma garota frágil, perdida no meio do ódio da maioria dos americanos, e ela encontra em Henry seu único ponto de fuga. Já Henry encontra em Keiko alguém que sofre mais que ele pela discriminação, encontra alguém com quem pode conversar, com quem compartilhar os momentos em que não sofre bullying no colégio e nem a pressão do pai para se tornar um melhor americano, mesmo Henry sabendo que isso é impossível. A relação de Henry e Keiko é construída no meio da adversidade, do preconceito, do ódio que os rodeia por quase todos os lugares. E o abrupto afastamento dos dois, é desesperador.
Os capítulos de UM HOTEL NA ESQUINA DO TEMPO se alternam entre dois períodos: de 1942 a 1945; e no presente da história, em 1986, com Henry viúvo de Ethel e pai de Marty, único filho. Conforme Henry procura pelo tal objeto que pode estar no porão do Hotel Panamá, ele cria uma ligação mais profunda com o filho. Eles não eram próximos, devido a divergências sobre o tratamento do câncer de Ethel, e por Henry ser um homem calado, afastado emocionalmente. Apenas quando Henry começa a contar sobre seu passado para Marty, inclusive sobre Keiko, eles conseguem finalmente ter uma relação de pai e filho. E ela se torna muito linda.
Eu queria escrever sobre Ethel, mas não posso contar absolutamente nada sobre ela para não estragar seu prazer na leitura. Queria escrever um pouco mais sobre Keiko, mas não posso. Queria escrever mais sobre o pai de Henry, mas também não posso. Queria até falar do detestável Chaz, mas até isso é proibido. Mas posso dizer que não é nada do que você pensa, não tire conclusões precipitadas. Posso dizer que Henry e Keiko protagonizam um dos momentos mais belos que eu já li em um livro, em um cenário isolado, dentro de um campo de concentração, no meio de arames farpados. Existem surpresas na história, surpresas que são construídas aos poucos, de uma forma muito singela. Como um pequeno mistério, os capítulos passados entre 1942 e 1945 explicam o que acontece em 1986. E o final, o pequeno segredo de como tudo mudou, é revelado apenas nas últimas páginas.
Embora UM HOTEL NA ESQUINA DO TEMPO seja uma história de ficção, o Hotel Panamá realmente existe, bem como todo o contexto histórico da época. O hotel foi construído em 1910 por um japonês-americano e era um balneário, uma sauna e casa de banho, para os japoneses do bairro. Os pertences das 37 famílias japonesas levadas para campos de concentração realmente foram encontrados nos porões do hotel. Hoje em dia, esses artefatos estão em exposição no salão de chá do hotel. E o hotel também é conhecido devido a este livro, e que explica seu título original, HOTEL ON THE CORNER OF BITTER AND SWEET, que numa tradução livre, seria “O hotel que fica na esquina entre o amargo e o doce”, em referência aos dois bairros que ele separava, e onde Henry conhecia o seu amargo, na representação da família, e o doce, na representação de Keiko.
Jamie Ford é descendente de chineses, nasceu na Califórnia, e vive atualmente em Montana. UM HOTEL NA ESQUINA DO TEMPO foi seu primeiro livro, e se tornou minha melhor leitura deste ano, e talvez de muitos outros. Apesar do drama dos personagens, a narrativa não pesa, consegue manter uma leveza e uma sensibilidade que não desgastam as emoções de quem lê. Isso não quer dizer que você não irá chorar, mas acredite, não será de tristeza, mas de alegria pelas várias vezes que Henry e Keiko superam todos os obstáculos para ficarem juntos. E acredito que você, como eu, irá finalizar a última página com um enorme sorriso, mesmo no meio de lágrimas.
AUTOR: Jamie FORD
TRADUÇÃO: Claudio CARINA
EDITORA: Globo
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 340
COMPRAR: Amazon
Me parece ser uma leitura sensível, tocante mas repleta de tristeza. Com personagens que tem muita carga emocional.
Gosto dessa mescla de pegar um fato real e inserir uma história.
Uma verdadeira volta ao passado. Já tinha lido alguma coisa, bem pouca, sobre essa guerra que aconteceu durante a Segunda Guerra, mas esse pouco é bem pouco mesmo. Por isso, só essa volta na história já é fantástica!
Há uma gama de sentimentos que envolve os personagens e isso de não poder dizer nada, mostra que cada detalhe é muito importante!!
Como não conhecia o livro, já gostei muito de tudo que li e saber que o hotel existe mesmo e tem esse nome tão poético, me fez desejar imediatamente o livro!!
Beijo
Eu ainda não conhecia esse livro da editora globo, mas a forma como a guerra é narrada e seus personagens, já me demonstraram que pode ser uma história maravilhosa. Justamente, por amar histórias que se passam nessa epoca história. Fiquei bem animada quanto ao livro e já o adicionei na wishlist.
Parece ser um livro denso em sua trama, amei que no começo da resenha nos apresenta o conflito entre esses países, assim temos uma percepção do livro. Gosto muito quando a narrativa volta ao passado, assim entendemos o que o personagem passa. Também gostei de o protagonista estar na faixa de mais de 50 anos, pois a maioria dos livros que leio e conheço estão entre 18 e 30 anos. Parece ser uma narrativa triste com uma grande carga emocional e parece ser arrasadora, ainda mais quando se está passando em locais que existem e fenômenos que realmente aconteceram
Carl!
Verdadeira aula de história nos deu, obrigada.
No final, o livro é um romance carregado de dramas familiares provenientes de suas nacionalidades, mas também mostra o quanto as crianças não se importam com essas diferenças políticas e sociais, querem é ter o refrigério de dividirem um pouco de tempo e felicidade juntos.
cheirinhos
Rudy
Eu fiquei emocionada só com esta resenha, nem quero imaginar como irei ficar após ler o livro. Eu adoro histórias de ficção envoltas por fatos históricos, eu sempre tenho a sensação de estar vivendo um pouquinho da história e ainda aprendo. A leitura me parece mais densa, porém tenho a impressão de ser daquelas que a gente começa e termina sem perceber, de tão instigante que é o enredo. Não vejo a hora de poder ler este livro logo!
Amei a resenha! Despertou em mim uma vontade imensa de conhecer estes personagens agora mesmo, e confesso ter uma quedinha a respeito de livros que se passam em meio a um contexto histórico. Com toda a certeza irei encontrá-lo ainda essa semana para ler on-line pois agora preciso saber de todos os detalhes…
Obrigada por mais esta indicação incrível!
Oi ♡
Olha só, dá para visitar um dos lugares em que o livro se passa. Mas o hotel ainda funciona para receber hóspedes? Imagina a energia daquele lugar!
Os detalhes presentes nesse livro são tão reais que me assusto por não ser uma biografia. O livro não me interessou muito no momento, mas coloquei na lista de futuras leituras. Fiquei bem chocado sobre o personagem ter que usar uma etiqueta escrita “eu sou chinês”, devido a tamanha expansão dos conflitos da época. Essa história aparenta ser bastante enriquecedora.
Olá! Primeiramente preciso dizer (escrever) que o título original daria um toque ainda mais emocionante para essa história #sóacho! Fiquei encantada (e emocionada) só com a resenha, imagina durante a leitura! É o tipo de livro que eu gosto demais, pois traz esse misto de fatos reais com a pitada de ficção (ou vice versa) que sempre me deixam em lágrimas!
Oi, Carl
Mais um livro que vai para minha longa lista de desejos.
O título original é maravilhoso e faz jus à trama linda e triste ao mesmo tempo.
Prender pessoas em campo de concentração mesmo com alguns “luxos” é terrível, dói só de pensar na situação.
Henry e Keiko constrói uma amizade linda, que deve tirar lágrimas e talvez alguns sorrisos do leitor.
Beijos