Seanan McGuire é extremamente ativa. Ela escreve novelas, contos e poesias aos montes. Ela também ingressou no mundo dos quadrinhos e foi responsável por duas histórias da Mulher-Aranha de um universo alternativo, onde Gwen Stacy, a namorada do Aranha que foi morta pelo Duende Verde, ganha os poderes do herói (a personagem apareceu no filme HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO), além de algumas histórias dos X-Men, entre outras. Não satisfeita, ela utiliza o pseudônimo de Mira Grant para escrever thrillers com mistura de ficção-científica, zumbis, apocalipse e parapsicologia. A lista completa de suas obras, além de outras curiosidades, você encontra em seu site oficial, aqui.

Sua novela mais famosa é exatamente DE VOLTA PARA CASA, ganhadora dos três principais prêmios de literatura fantástica e ficção-científica: Nebula Award, concedido pelo Science Fiction and Fantasy Writers of America; Locus Award, concedido aos vencedores da votação anual realizada pelos leitores da Locus Magazine; e o Hugo, prêmio anual entregue para os melhores trabalhos e realizações de fantasia e ficção-científica do mundo. É difícil um mesmo livro ganhar os três ao mesmo tempo. Mas após a leitura, você compreende o motivo.

Nancy desapareceu de sua casa para reaparecer alguns meses depois. Ela afirma que encontrou uma porta que a levou a um outro mundo, localizado em uma dimensão diferente, onde encontrou a verdadeira felicidade, onde ela podia ser quem realmente era, e viveu nesse local durante vários anos, até que foi expulsa e retornou a esta realidade. Os pais não acreditam, acham que ela está delirando, e a levam para o internato da senhora Eleanor West, um local conhecido por tratar de crianças que também desapareceram e retornaram com histórias semelhantes à de Nancy.

Eleanor West trata dessas crianças, e acredita nelas, porque a própria passou pelo mesmo. Na verdade, ela ainda sabe o local onde está sua porta, aquela que a levaria ao seu mundo de outra dimensão. Cada uma das crianças do internato encontraram uma dessas portas, ou passagens, uma vez que podem ser qualquer coisa: um buraco, um espelho, um poço, um guarda-roupa. Só que uma vez que elas retornam, a passagem se fecha para elas, e pode nunca mais aparecer. E esse é o maior medo das crianças: não poderem retornar para o mundo onde elas se sentem completas.

Eleanor West explica para Nancy que essa outra dimensão tem mundos divididos em quatro diferentes orientações: Absurdo, Virtude, Lógica e Malícia. Dentro de cada um desses quatro tipos, existem outras divisões, com mais ou menos influência do que rege cada um dos grupos. Durante anos, uma vez que o tempo é diferente nessas dimensões, Nancy viveu nos Salões dos Mortos, sob o domínio do Senhor dos Mortos, por quem se apaixonou. Ela é uma garota pálida, que usa roupas escuras, sem cor, e seu poder nessa dimensão era se tornar imóvel, uma estátua. Agora, de volta, ela não reconhece mais este mundo, ela não se sente feliz, não quer usar as roupas coloridas que os pais lhe deram, ela só deseja encontrar a porta que a pode levar para a dimensão dos mortos.

Da mesma forma que ela, outras crianças do internato sofrem pelo abandono dos pais e da impossibilidade de encontrarem a passagem para as dimensões que as definem. Conhecemos as irmãs Jill e Jack, que viviam em um mundo de vampiros; Sumi, que era de um mundo do Alto Absurdo, e tem dificuldades de se comportar na nossa realidade; Kade, um garoto que foi parar em um mundo de fadas, e por ser muito bonito, foi confundido com uma princesa, até que descobriram que era um menino e o expulsaram. Cada um deles passou por algo, cometeu alguma infração, escondeu alguma informação, que fez com que seus mundos os mandassem de volta. E agora eles são capazes de qualquer coisa para conseguirem voltar.

Enquanto tenta compreender e aceitar sua nova condição, Nancy precisa aprender a conviver com as outras crianças do internato. As coisas complicam quando algumas delas começam a aparecer mortas de forma brutal. Então, ela se junta a Jill, Jack, Sumi e Kade para tentar descobrir quem está fazendo isso, e antes que um deles também seja morto.

McGuire traz uma história de aceitação, de diversidade, de identidade, onde se discute sobre sexualidade, sobre assexualidade, sobre transsexualidade, sobre homossexualidade, sobre abandono, sobre dependência. Alguns desses temas são jogados de forma bastante direta, como quando, logo no início, Nancy conhece Sumi, sua colega de quarto, e Sumi pergunta se Nancy se masturba ou se tem desejo de transar com Kade. E a resposta de Nancy também surpreende, quando ela se assume assexual, ou seja, ela é capaz de se apaixonar por Kade, mas sem sentir desejo sexual por ele. Outros temas são mais subjetivos, mas mesmo assim bem óbvios, como a transexualidade de Kade, que não é aceito como menino na dimensão das fadas, e não é aceito como menina pelos pais na nossa dimensão; ou a complicada relação de Jill e Jake, que demonstra um desequilíbrio emocional e psicológico que só era mantido sobre controle na dimensão onde elas viviam.

Embora trate de temas complexos, a narrativa de McGuire é alegórica, deixando para o leitor descobrir e compreender, da forma que conseguir, aquilo que não é assim tão claro. Por isso mesmo, alguns comportamentos dos personagens, e algumas situações em que eles se envolvem, causam uma certa estranheza. A primeira coisa que salta aos olhos, é a displicência de Eleanor West pela morte e pelos assassinatos. Em vários trechos, ela menciona a morte como algo absolutamente corriqueiro. Por exemplo, quando ela diz que tem o cuidado de colocar crianças vindas de mundos semelhantes no mesmo quarto, para evitar que uma mate a outra, como se fosse uma briga normal. Ou quando as mortes misteriosas começam, e ela não se preocupa em descobrir quem é o assassino, e nem sequer em justificar o que acontece para as autoridades.

Essa falta de preocupação com a vida também está presente nas crianças. Elas tratam tudo com normalidade, com pesar pela perda dos colegas e amigos, mas apenas isso. E aí vem a segunda estranheza, porque a preocupação de todas elas é sobre se irão ou não encontrar a porta para os mundos em que viviam, e nada mais. Aliás, não preocupação, mas obsessão, necessidade absoluta, dependência.

E essa é a palavra chave para compreender toda essa estranheza: dependência. Todos os personagens que passaram pelas portas, possuem um comportamento de dependência, como o comportamento de dependentes químicos. Nancy, Sumi, Jill, Jake, Kade, Eleanor, todas as crianças do internato, não se comportam apenas com saudade dos mundos das outras dimensões, com a sensação de terem perdido o local em que se sentiam completos, eles sentem a dor física e emocional dessa perda, eles fariam qualquer coisa para poderem retornar, e encaram o mundo real com total indiferença, inclusive com relação às consequências e à moralidade social daquilo que fazem. A única coisa que importa, é sanar a necessidade de voltarem, exatamente da mesma forma que um dependente químico age para conseguir sua droga.

Nas quatro dimensões, todos eles viviam aventuras fantásticas, possuíam poderes impossíveis. Eles haviam esquecido os problemas que enfrentavam no mundo real. Até que foram expulsos e passaram a ser sombras vagando em busca de portas que poderiam nunca mais aparecer, em busca de mais uma dose que os deixasse viajar para esses mundos dos sonhos. E quando um deles reencontra a porta, ele não pensa duas vezes para entrar e desaparecer, não importa quem fique para trás, não importa que os pais sofram ou o que tiveram que fazer para encontrar a passagem, como se nada mais existisse além da passagem. Exatamente o mesmo comportamento de um viciado.

Claro que isso pode ser apenas minha interpretação. Como todo alegoria, cada pessoa tem a sua. Mas é uma mensagem que exemplifica como muitos jovens sofrem pela falta de apoio familiar, para instabilidade emocional e psicológica, pela falta de identidade, e que encontram nas drogas uma forma de fugir de todo esse sofrimento, a tal dimensão onde se sentem completos, mesmo que por pouco tempo. É um grito por ajuda, para que esses pais encarem seus filhos, reconheçam seus problemas e procurem ajuda real para eles, para que eles sejam felizes aqui e não em outras dimensões.

DE VOLTA PARA CASA é uma leitura fantástica, complexa, cheia de significados que serão compreendidos de forma diferente por diferentes leitores. E isso transforma o livro em algo excepcional, merecedor dos prêmios que conquistou.

Ah, o segundo volume está em pré-venda e pode ser lido de forma separada. Serão cinco novelas, cada uma delas contando a história de um dos personagens do internato da senhora West.


AVALIAÇAO:


AUTORA: Seanan MCGUIRE nasceu em Martinez, na Califórnia, e foi criada em uma ampla variedade de locais, a maioria deles dotada de algum tipo de vida selvagem perigosa. Apesar de sua atração quase magnética por qualquer coisa venenosa, ela, de alguma forma, conseguiu sobreviver por tempo suficiente para adquirir uma máquina de escrever, um domínio razoável da língua inglesa e o desejo de combinar os dois. Seanan é autora das fantasias urbanas de October Daye e InCryptid, e de vários outros trabalhos, tanto em livros únicos quanto trilogias ou duologias. Caso isso não seja o bastante, ela também escreve sob o pseudônimo Mira Grant. Em 2013, ela se tornou a primeira pessoa a aparecer cinco vezes na mesma edição do prêmio Hugo.
TRADUÇAO: Ana Death DUARTE
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇAO: 2018
PÁGINAS: 184


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