Recentemente, Mauricio de Souza se candidatou a ocupar a cadeira de número oito da Academia Brasileira de Letras, antes ocupada por Cleonice Berardinelli, falecida aos 106 anos em janeiro de 2023. Mauricio tem uma vasta carreira de sucesso editorial com a criação da Turma da Mônica, personagens que há décadas fazem parte da cultura nacional e que acompanharam, e ainda acompanham, a alfabetização e a juventude de milhões de crianças e jovens. Isso sem falar dos fãs adultos, que mesmo não fazendo mais parte do público alvo, ainda se divertem e apreciam as histórias da turminha do bairro do Limoeiro.

Infelizmente, a candidatura de Mauricio despertou a ira do senhor James Akel, jornalista e escritor de um único livro não-ficcional, Marketing Hoteleiro com Experiências, de 2001. Segundo suas próprias palavras, em uma entrevista concedida à revista Veja: “O que realmente me motivou foi a candidatura de Mauricio de Sousa. Em sua carta, ele diz que ‘quadrinhos são literatura pura’. Isso me deixou zangado e decidi me inscrever imediatamente.”, afirma. Ele continua em uma outra resposta: “Histórias em quadrinhos estão no campo do entretenimento, não da educação, como ele (Mauricio) defende. No dia em que acabarem os livros, acabou a literatura.”. Você pode ler a entrevista na íntegra, aqui.

A afirmação de que quadrinhos não são literatura está correta. Quadrinhos vão muito além da literatura. A literatura está inserida dentro dos quadrinhos. Para consumir um produto, o ser humano utiliza a linguagem, o pensamento, a memória, o raciocínio, entre outras esferas, que afetam diretamente a percepção das emoções e, portanto, o comportamento. Para ler um livro, por exemplo, utilizamos parte desses processos. Para assistir a um filme, utilizamos outras partes, nem sempre as mesmas. E assim para qualquer interação. Quadrinhos é um dos poucos meios que consegue reunir diversos desses processos, que normalmente seriam usados em separado, ao mesmo tempo. Essa é uma das características que transformam a Nona Arte em algo único e abrangente.

Dentro de um quadrinho, você encontra roteiro, texto, história, o mesmo que existe dentro de um livro. Em um quadrinho você encontra imagem sequencial, sugestão de movimento e de tempo, o mesmo que se encontra em um filme. Enquanto em um livro, a interpretação está sujeita ao leitor e à forma como ele compreende, em um quadrinho, a interpretação é auxiliada pela imagem, sendo a mensagem do autor recebida de maneira mais assertiva e completa.

O Pulitzer é um prêmio dado a pessoas como reconhecimento de trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição musical. Mas um prêmio sério não se restringe à sua definição, ele pode evoluir, pode abranger meios que não estão originariamente dentro de sua concepção. Maus, quadrinho de Art Spiegelman (ainda não tem resenha no blog, falha minha), uma história que se passa na Segunda Guerra Mundial e que narra a vida do pai do autor, prisioneiro de um campo de concentração nazista, ganhou o prêmio Pulitzer de 1992.

Um outro exemplo, o prêmio Nobel de Literatura de 2016 foi entregue a Bob Dylan “por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. Na época também apareceram críticas sobre a escolha, uma vez que muitos preferiam que o prêmio tivesse laureado um escritor e não um músico. Mas como disse acima, um prêmio, um reconhecimento, não se limita à sua definição, ele é mutável, pode se expandir e abraçar uma gama maior de opções. Isso não é um desmerecimento de outras obras, a escolha de um gênero ligeiramente diferente, não diminui em nada o que se estabelece dentro da definição.

O que acontece é que o ser humano é naturalmente avesso a mudanças, a evolução, a sair da zona de conforto, ele se sente ameaçado, diminuído, quando é obrigado ou empurrado para tal. Sair de um território onde se sente no controle, mesmo que parcial ou ilusório, é assustador para muitas pessoas. Comportamentalmente, dentro da sociedade, desde séculos somos levados a acreditar que o estático é perfeito. Se funciona, se nos sentimos confortáveis e seguros, por que mudar? Abrir um prêmio destinado a um meio para pessoas que não estão totalmente inseridas nesse meio, é interpretado por muitos, como uma mudança que impedirá que sejam reconhecidos. A forma mais natural e irracional de responder a isso, é diminuir a concorrência, torná-la indigna, mesmo que esta, obviamente, não seja.

Há mais de vinte e cinco anos que os quadrinhos estão inseridos na educação escolar e contribuem para o ensino da da Língua Portuguesa, História, Desenho, Filosofia, entre outras disciplinas. A facilidade para o avanço da produção e interpretação de texto, da compreensão de ações, para a percepção do espaço e movimento, são notáveis segundo professores e estudos. A mistura de desenho e texto, criam na criança e no jovem, um interesse maior em acompanhar a história, em visualizar o enredo. Ela não se sente pressionada a compreender histórias de livros que muitas vezes não conseguem transmitir qualquer significado para sua idade, o que a desmotiva a procurar outros livros, com a ideia de que terão o mesmo efeito. Trabalhos com quadrinhos, diferente de livros, podem abranger diversas atividades, como criação de histórias com sequências de ações visuais, mais fáceis de serem criadas, uma vez que a criança não fica presa apenas a descrições textuais. Criando primeira imagens, a criança consegue colocar em palavras o que ela desenhou e não fica dependente apenas da sua capacidade de imaginar sem concretizar.

Vale lembrar que os quadrinhos fazem parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola desde 2006, o que possibilitou a professores e alunos o acesso a obras distribuídas em escolas públicas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais também indicam o uso de quadrinhos e sua disponibilização nas bibliotecas dos mais variados gêneros. Além disso, o PCN ainda lista os quadrinhos como uma mídia adequada para o trabalho com a linguagem escrita. Isso porque a criança em fase de alfabetização que pode não dominar a leitura e a escrita consegue ter um melhor aproveitamento com o recurso da mistura do texto com imagens.

Ainda na referida entrevista à revista Veja, James Akel, em uma pergunta sobre o que ele já criou para se achar válido a uma candidatura, responde: “Meu livro foi muito elogiado e adotado em vários cursos de turismo, inclusive na USP. Além dele, tenho três peças de teatro escritas. Já o Mauricio só publicou gibis. Tá quatro a um para mim.”. As criações do Mauricio de Sousa existem há sessenta anos e já venderam mais de 1,2 bilhão de gibis e 15 milhões de livros. Além de séries, desenhos animados, filmes, e uma infinidade de produtos para a educação. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), no fim de 2022, homenageou Mauricio pelo trabalho de décadas incentivando a leitura. Há uma aparente prepotência ao se afirmar que a publicação de um livro de marketing, lido por uma parcela ínfima e sem qualquer relevância educacional, é superior a tudo o que a Turma da Mônica representa. Em uma breve análise lógica, beira o ridículo.

Akel afirma que a ABL precisa evoluir. Está correto, embora sua posição demonstre o oposto. Colocar Mauricio de Sousa na ABL seria um passo importante para fazer a academia sair de um patamar velho e desgastado, para uma posição que despertaria, no mínimo, a curiosidade da parcela que a ignora. Os quadrinhos evoluíram, se provaram como obras de qualidade e de uma abrangência gigantesca. Desde histórias de super-heróis, como Watchmen, V de Vingança, X-Men, Sandman, passando por quadrinhos da Disney, europeus, até representações histórias, como o já citado Maus, conversam com o leitor sobre política, direitos humanos, representatividade, racismo, liberdade, igualdade, e mais uma infinidade de assuntos importantes para a sociedade, para a educação e para o conhecimento.

Ao contrário do que Akel pensa, quadrinhos não são apenas diversão. Como qualquer obra, de qualquer meio, literária, artística, musical, visual, os quadrinhos podem ser consumidos com prazer e educar ao mesmo tempo, transmitir uma mensagem, um ensinamento, uma moral, algo que faça com que quem o consome, melhore e consiga algum novo conhecimento, consiga sentir empatia e simpatia, em resumo, evolua de qualquer forma que seja possível. O ataque de Akel a Mauricio e aos quadrinhos não é baseado em fundamentos, em estudos, em nenhuma pesquisa, mas apenas parece uma reação à frustração de pensar que algo inferior o precedeu em uma conquista. Talvez tenha faltado quadrinhos na sua vida.