
Vedina, uma mulher destroçada por um casamento marcado pelo desamor, em um momento de descontrole, abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra quaisquer vestígios de sua presença. Este é o acontecimento nuclear da trama que expõe as entranhas de uma família – pai alcoólatra, mãe controladora, irmãos gêmeos tensionados pelas diferenças – que, como tantas outras famílias, torna-se um lugar onde as singularidades de cada um não são acolhidas, criando rachaduras por onde a violência se infiltra.
O trecho acima é a sinopse oficial de “Véspera”, e foi ela que me motivou a ler o livro, apesar da experiência ruim que tive com “Tudo é Rio”. Ambos têm leitores apaixonados, assim como críticos que se surpreendem ao ver como uma história claramente problemática, com mensagens tóxicas, pode ser admirada sem que isso seja percebido. Enquanto em “Tudo é Rio” essa toxicidade é evidente, em “Véspera” ela aparece de forma mais sutil, espalhada em pequenos trechos que parecem desconectados e se misturam a outros acontecimentos que desviam a atenção. Mas, se o leitor parar para refletir e analisar a história com um olhar mais atento, pode acabar percebendo o quanto ela é problemática.
Preciso analisar “Véspera” em duas frentes distintas. A primeira é sobre a construção da história e dos personagens. Apesar dos problemas de “Tudo é Rio”, a história era concisa, com início, meio e fim, e os personagens, embora construídos de maneira mecânica, tinham, por isso mesmo, funções bem definidas. “Véspera” não tem o mesmo cuidado. A trama parece a junção de várias ideias que tentam se conectar e formar algo, mas acabam se perdendo e se transformando em eventos sem nexo e sem propósito.
Posso citar alguns exemplos para deixar claro meu ponto de vista. Vamos começar com Vedina, que, na sinopse, passa a sensação de ser a personagem principal e de que seu ato de abandonar o filho será essencial para a história. Mas ela não é a protagonista, nem de longe. É uma personagem secundária, sem desenvolvimento, sem um passado estabelecido e usada apenas como apoio para outros personagens. Já o ato dramático da perda do filho é isolado, não influencia a história e nem tem consequências diretas para nenhum personagem.
Os capítulos se alternam entre o presente e o passado. No presente, acompanhamos Vedina abandonar o filho, se arrepender, perceber que é tarde demais e constatar que ele desapareceu. Em todos os capítulos que mostram sua reação a essa tragédia, nada acontece além de pensamentos repetitivos sobre como sua vida é solitária e sem amor, como o marido e a melhor amiga vão reagir à sua falha, até que ela simplesmente se cansa de andar e dirigir e volta para casa para esperar por ajuda. Não há qualquer conexão com os capítulos do passado, apenas trechos e mais trechos de puro vitimismo, que passam uma incômoda sensação de indiferença com a perda do filho, além de um egoísmo exagerado e uma dependência masculina evidente.
Para deixar mais claro, se removessem os capítulos do presente, a narrativa não seria prejudicada em nada. Alguns podem argumentar que a perda da criança é um castigo para um determinado personagem, mas esse raciocínio não se sustenta, já que, como fica evidente nas últimas páginas de “Véspera”, esse personagem não sente nada em relação à perda. E Vedina não faz parte de nenhum acerto de contas. Toda a trama da criança existe apenas para intercalar os eventos do passado e finalizar o livro de um jeito que faz surgir a pergunta: “Tá, mas e daí? Qual o propósito?”. A criança foi sequestrada, e o livro termina sem maiores explicações.
“Véspera” sofre do mesmo problema de construção narrativa em vários outros trechos. Vou dar mais exemplos. No passado, Custódia se casa com um homem rude e alcoólatra. Ela vem de uma família religiosa e se torna aquela pessoa que deixa a religião guiar seus pensamentos e sua vida, sem questionar o que faz ou não sentido. Custódia e Antunes, seu marido, têm dois filhos gêmeos idênticos. Em um ato de vingança contra a indiferença da esposa, que também tem seus próprios motivos para ser indiferente ao marido, ele registra as crianças no cartório como Caim e Abel. Para Custódia, isso é um presságio de tragédia, e ela se recusa a chamar um dos filhos de Caim, chamando um de Abel e o outro de Abelzinho.
Eu pensei que a religiosidade radical de Custódia seria decisiva na história, mas ela se mostra apenas uma característica da personagem. Em todos os momentos em que essa religiosidade poderia mudar o rumo da narrativa, ela se perde em diálogos existenciais com o padre Tadeu, um dos professores da escola onde Caim e Abel estudam. E, nos momentos familiares em que Custódia poderia ter mais presença, acontece o mesmo: sem grandes conflitos, a vontade dos outros se sobrepõe às suas crenças, e ela aceita tudo após pouca ou nenhuma insistência. Ou seja, a religiosidade não é usada para interferir na narrativa, mas apenas para justificar um momento de vingança de um homem, Antunes, que se recusa a entender por que a esposa não sente desejo por ele, e para reforçar a obviedade de uma rivalidade entre dois irmãos.
O mesmo acontece com o vício de Antunes. Ele é alcoólatra como uma característica, assim como dizer que tem cabelos pretos. A influência disso na história é praticamente a mesma. O fato de passar as noites bebendo com os amigos serve apenas para criar o momento em que decide se vingar de Custódia e nomear os filhos como Caim e Abel. Depois desse ato, as descrições de seu vício e até mesmo sua participação na história são praticamente desprezadas. Aliás, isso parece ser uma característica da autora: criar personagens com um propósito e descartá-los assim que o cumprem. A mesma coisa acontece em “Tudo é Rio”. Usar personagens dessa forma passa uma sensação de artificialidade e, na minha concepção, compromete a qualidade da história.
Mais exemplos? Ok. Caim e Abel sofrem com a obviedade de se tornarem rivais e de terem suas funções trocadas em relação à história da Bíblia. Na religião, Caim é o irmão que mata Abel em um momento de inveja e ciúmes. Em “Véspera”, o papel do irmão invejoso e cruel passa para Abel. Essa troca me parece forçada, como se tentasse surpreender a qualquer custo, quando, na verdade, seria menos constrangedor manter o que já é estabelecido pelas crenças. E não se preocupe, leitor, Abel não mata Caim em “Véspera”, então isso não é um spoiler. Embora exista morte no livro. Mas sobre isso, eu falo mais adiante.
Caim tem um desenvolvimento consistente como personagem, sem grandes destaques, com exceção de uma pequena passagem já no fim do livro. Mas também não vou dissertar sobre isso agora, vou deixar para a segunda parte da resenha, quando vou destacar os pontos moralmente problemáticos e possivelmente tóxicos da história. Já Abel é o personagem que mais sofre inconsistências criativas por toda a história. Ele deve ser o vilão, mas parece que a autora não conseguiu decidir sobre qual tipo de vilão.
Abel começa como uma criança que precisa dividir seu nome com o irmão. Até que entram na escola, então os dois são chamados pelo nome real. Quando começam as aulas, Abelzinho passa a ser chamado de Caim e Abel sente que perdeu sua parte segura, ficando incompleto. Isso fica evidente em seu comportamento, na dificuldade de aprendizado e em seus sentimentos conflitantes. Para Caim, acontece o contrário: ele finalmente ganha sua individualidade e se torna o protagonista. Esse começo na construção da personalidade de Abel é realista e coerente com a história, permitindo entender seus motivos. Abel se sente excluído, principalmente porque Caim se mostra mais esforçado, mais inteligente, mais simpático, então Abel se retrai e entra em uma concha de proteção que impede qualquer simpatia ou empatia.
Se o personagem evoluísse seguindo essa linha, a história seria coerente e seguiria o mesmo caminho. Mas a autora escolhe mostrar a tragédia da morte de um personagem, fazendo com que Abel seja testemunha, e, em vez de continuar o desenvolvimento que vinha ocorrendo, descreve Abel tendo uma ereção sexual enquanto olha para o cadáver. O sadismo sexual é visto como um distúrbio psiquiátrico que precisa de intervenção médica e psicológica especializada. Nada no personagem indicava essa mudança. E, pior, dois ou três capítulos depois, esse episódio é esquecido e Abel volta a ser como antes. Todo esse trecho está fora do tom da história, causando estranheza e confusão, como se o objetivo fosse apenas criar um choque sem se importar com a coerência.
Mais adiante na história, quando Veneza é apresentada, uma garota bonita que se torna o interesse de Abel e, naturalmente, a namorada de Caim (que surpresa, não é mesmo?), Abel muda novamente e passa a agir como um predador sexual frustrado. Há um trecho que, embora não seja tão dramático quanto a morte do outro personagem, também causa estranheza por sair do tom e não fazer sentido no contexto. Em uma festa, Caim deixa Veneza sozinha para buscar uma bebida, e ela encontra Abel encostado num canto. Com pena, Veneza o chama para dançar, mas, de repente, Abel comete uma invasão sexual, agindo como se fosse um tarado descontrolado. Novamente, esse episódio é abandonado e o personagem volta a ser como antes.
Abel é usado como uma massa de moldar e tem sua personalidade alterada de acordo com a conveniência da história e na vontade da autora em chocar o leitor. Isso, para mim, afastou completamente a credibilidade do personagem e desmoronou a construção narrativa, deixando de ser uma história para ser uma sequência de passagens que causam desconforto, mas sem coerência. Pior é a constatação de que parece não existir qualquer estudo em como pessoas com psicopatia se comportam com o único objetivo de dramaticidade sem preocupação com a realidade ou consequências.
Esses exemplos, e outros semelhantes, mostram que a história se perde em ideias não desenvolvidas ou mal apresentadas. Por exemplo, há um trecho em que, após a morte de um personagem, a narração insinua que o padre Tadeu pode ter tido alguma relação direta e ilícita com esse personagem, mas essa ideia não é aprofundada e acaba sendo esquecida. Da mesma forma, a mãe, que deveria ser religiosa, não demonstra muita religiosidade; o filho apresenta vários comportamentos psicopáticos sem ser um psicopata; o pai, rotulado como alcoólatra, não aparenta ser tão alcoólatra; e o padre, que poderia ter segredos obscuros, não revela nenhum.
Na minha opinião, esses problemas não tornaram o livro tão ruim. Muitas obras têm falhas na narrativa e nos personagens, mas mesmo assim conseguem entreter, transmitir alguma mensagem e criar empatia, já que nada é perfeito e inconsistências são normais. Porém, agora, entrando na segunda parte da análise, preciso explicar o que realmente me incomodou na leitura e faz com que eu não recomende o livro. É claro que o que vou contar a seguir é baseado na minha experiência e pode ser diferente para outros leitores.
Carla Madeira tem um estilo de escrita marcado por uma profundidade emocional que oscila entre a brutalidade e a delicadeza. A narrativa é fluida, poética e, muitas vezes, impactante, usando uma linguagem direta, mas cheia de simbolismo e subtextos. Sinto que o maior problema da história são esses subtextos, ou seja, o significado implícito, que não é dito de forma direta, mas que pode ser entendido pelo contexto, pelas entrelinhas, pela escolha de algumas palavras ou pelo comportamento dos personagens. A mensagem acaba ficando tão escondida entre frases bonitas que o leitor a capta sem perceber, e isso, dependendo de como é usado, pode ser complicado para mim.
Em “Tudo é rio”, escrevi que não há problema em mostrar o machismo, o abuso e a violência física. O problema é romantizar, normalizar e justificar esses atos e comportamentos, principalmente quando quem compactua com isso não são os personagens, mas o narrador que conta a história. É ainda mais perigoso quando a religião é usada para apoiar essa normalização. Em “Véspera”, vejo os mesmos problemas, mas parecem estar escondidos nos subtextos, de forma muito subjetiva e discreta, até mesmo disfarçados entre tantas frases poéticas, o que faz com que sejam absorvidos inconscientemente e, por isso, aceitos.
Exemplos? Claro! Custódia é mostrada como extremamente religiosa, uma mulher distante do marido, sem que os motivos para esse comportamento sejam bem explicados. Por outro lado, Antunes é retratado como um marido presente e trabalhador, que passa seus momentos de lazer bebendo com os amigos ao final do dia, sempre fiel. Quando chega em casa, ele só encontra indiferença. Ele é apresentado mais como vítima do que Custódia, e é compreensível que, em um momento de vingança, ele dê aos filhos os nomes de Caim e Abel. Afinal, não é culpa dele não querer conversar com a esposa ou prestar atenção no que ela sente e precisa; ele é homem, e esse comportamento é visto como aceitável. Sim, existem muitas relações iguais a essa, mas vale lembrar que é o narrador, e não os personagens, quem aprova esse comportamento, usando frases que destacam o sofrimento de Antunes e sugerem que a culpa final é da esposa. Há uma clara inclinação do narrador em favor dele, que não vem da construção do personagem.
Mais para a metade da história, Antunes passa a sofrer de uma doença e se torna mais presente e emotivo com Custódia. Em alguns momentos, a autora deixa claro que Custódia sempre esperou por essa conexão com o marido, sugerindo que ela poderia tê-lo amado mais se ele tivesse sido assim desde o início. À primeira vista, parece haver uma crítica ao comportamento machista, mas é aí que os subtextos entram. Esse episódio acontece quando o personagem está em sua maior fragilidade, e quando ele é finalmente condenado, a sensação transmitida é de pena e aceitação, como se tudo o que ele fez ao longo da vida fosse perdoado, já que agora ele sofre e se redimiu. No entanto, essa redenção não vem do caráter dele, mas sim da doença e da necessidade de cuidados. Esse é o perigo de inserir subtextos na trama: o leitor acaba aceitando e se compadecendo, sendo levado a repensar sobre não permitir segundas chances.
O mesmo acontece com Vedina. Talvez você se pergunte quem é ela, mas não é importante para a resenha. Basta dizer que ela é usada como um recurso para ligar os capítulos do presente ao desaparecimento da criança. Como já mencionei, a maior preocupação de Vedina é com ela mesma, mas principalmente com o que o marido vai pensar, com o que ela sente por ele, com o que ele sente por ela, ou como as coisas poderiam ser diferentes se ele fosse de outro jeito. Sua última preocupação é com a criança. A mensagem passada é a de uma mulher à beira do colapso por não conseguir o amor de um homem, o que acaba afetando a forma como ela educa o filho. E, novamente, embora essa situação seja realista, quando a narração exagera sua falta de habilidade emocional e como mãe, o subtexto, a mensagem transmitida, fica bem diferente.
No último capítulo, há uma frase discreta que me incomodou bastante e mostra bem o perigo de alguns subtextos em “Véspera”. A frase é assim, e omiti uma parte para evitar spoilers: “Às vezes, Augusto, … tem sonhos recorrentes e eu sei que são lembranças. Neles, um homem sempre lhe beija a face antes de desaparecer. Digo a … que não passa de uma fantasia, é seu coração desejando algo que lhe falta.”
O menino não sente falta da mãe que sempre esteve presente, que cuidava dele, o banhava, o levava para a escola e ficava ao seu lado quando ele estava doente, mas sim do beijo do pai, que o ignorava e só aparecia em poucos momentos, como o boa-noite, antes de desaparecer novamente. E você está certo ao dizer que isso é real, pois costumamos dar mais valor ao que nos falta do que ao que está sempre por perto. Porém, quando o texto enaltece e valoriza, por meio de palavras bonitas, ações como o abandono ou a violência, a mensagem passada é de aceitação, de conformismo. A ideia é que o leitor pense: “Que lindo, é assim mesmo na vida real, acontece comigo, é normal, vou aceitar que continue assim, pois não há o que fazer.”
Penso que “Tudo é rio” e “Véspera” têm o mesmo problema, resumido em uma palavra: conformismo. Em “Tudo é rio” é dito que a vida é como um rio, com águas que às vezes são calmas e outras turbulentas, e você segue suas curvas apenas sobrevivendo. Em “Véspera” é dito que o passado molda nosso presente e que ficamos presos a essas escolhas. Eu, pessoalmente, não aceito e acho ofensiva essa mensagem conformista.
A vida não é como um rio do qual não podemos desviar; nós temos o livre-arbítrio para moldar nosso caminho por meio de nossas escolhas. Nosso presente e futuro dependem exclusivamente de nós, para bem ou para mal. Da mesma maneira, cada passo não nos define, mas nos ensina: é nosso dever aprender com os erros e construir nosso caráter com base nas escolhas que fazemos. Conformismo é covardia, e transmitir essa mensagem é, na minha opinião, perigoso e desonesto.
Custódia aceita o marido alcoólatra, Veneza aceita o marido machista e Vedina aceita o marido abusador e violento. Caim pode ser machista porque tudo o mais dele é perfeito, Antunes pode ser alcoólatra porque não tem sexo com a esposa, Abel pode ser visto como psicopata porque foi apagado pelo irmão, e a criança pode ser sequestrada para ter uma vida com mais amor. Conformismo, conformismo, conformismo embalado por palavras bonitas e poéticas. Tudo é tão bem escrito, tão bonito, tão cheio de sentimento, que chega a parecer: “Nossa, que lindo, que livro bom.” Para mim, não.
Ah, e só depois de escrever esta resenha que reparei na capa de “Véspera” (a princípio pensei que fosse algo abstrato, hahahaha). Ela mostra lava escorrendo e formando rocha. Ou seja, o que você era antes molda o que você é hoje e fica assim para sempre. Que merd…
AVALIAÇÃO:
AUTORA: Carla Madeira EDITORA: Record PUBLICAÇÃO: 2021 PÁGINAS: 280 COMPRE: Amazon |