A sorte parecia sorrir para Benjamin Tartouche, até que um incêndio lhe toma a casa e traz consigo uma avalanche de infortúnios. De repente, sua “vida perfeita” desmorona e ele se vê na rua, sem família ou amigos, transformado em mais uma das tantas pessoas invisíveis que existem à margem da sociedade. Mas, como dizem por aí, tudo que é ruim sempre pode piorar, e, para fechar sua maré de azar com “chave de ouro”, o coitado acaba morrendo em um acidente. Mesmo assim, seus problemas ainda estão longe de terminar, pois uma importante missão é passada para sua alma durante a passagem pelo purgatório.

Christophe Chabouté é mestre em construir narrativas sem diálogo. Apenas com imagens, ele consegue contar histórias profundas, deixar mensagens importantes e dar profundidade e sentimentos aos personagens. Um exemplo é o belíssimo SOLITÁRIO, em que um homem, cujo rosto só vemos nas últimas páginas, mescla seu presente e passado ao ambiente isolado de um farol sem qualquer diálogo. E nem sempre esses personagens precisam ser pessoas, como é o caso de UM PEDAÇO DE MADEIRA E AÇO (resenha aqui), onde o foco é o banco de uma praça, por onde várias pessoas passam e o leitor é convidado a deduzir cada uma de suas histórias apenas através das ações, ou falta delas, e das expressões dos rostos.

Os desenhos de todas as obras que já li de Chabouté, são detalhistas, transmitem uma calma e uma serenidade, que faz com que a vida pareça transcorrer em câmera lenta ou em uma velocidade que permite realmente apreciar o que se vê. Os traços são firmes, sem cor, apenas com preto e branco e suas nuances. E essa preferência pode se mostrar acertada, porque a atenção do leitor se foca para o que o desenho quer transmitir, sem desvios provocados por cores. A falta delas não diminui em nada a beleza de muitos quadros.

Das sete HQs de Chabouté lançadas no Brasil, eu li seis. Apenas MOBY DICK me escapou. E dessas que li, as duas que considero bem fracas, são YELLOW CAB (resenha aqui), que é baseada em um livro que não li, e por isso pode ser que o desgosto com a leitura não seja apenas pela forma como Chabouté construiu sua narrativa, ou a falta dela nesse caso específico. E a segunda é exatamente PURGATÓRIO, que aliás, não consegue exibir a muitos dos pontos pelos quais sou fã do autor.

A história de PURGATÓRIO utiliza elementos conhecidos de outras obras sobre o céu e inferno, mas com uma apresentação própria do autor. A HQ é colorida, o que foge do padrão de Chabouté, e penso que é assim para poder demonstrar a sua apresentação para as almas. Quando Benjamin morre e retorna à terra para cumprir sua penitência, o desenho do personagem perde a cor, bem como o desenho de todos os personagens que já morreram e andam pelo mundo dos vivos. É uma escolha óbvia para destacar a morte no meio da vida. O recurso não é original, já foi utilizado em outras HQs, filmes e séries, mas não perde a beleza e a força do destaque que adiciona a cada quadro. Para reforçar ainda mais, Chabouté utiliza cores fortes, carregadas, como se forçasse o lápis até o limite da resistência do papel.

Ou seja, a arte que compõe cada página, cada sequência de quadros, a representação de cada personagem, bem como os ambientes em que as ações se passam, possuem toda a beleza e competência que são características de Chabouté. Na minha percepção, o que leva PURGATÓRIO para um nível bem abaixo do padrão do autor, é o texto e a maneira como ele construiu a narrativa e seu personagem principal, Benjamin, somado a várias incoerências, eventos desconexos e uma boa dose de necessidade de descrença.

Benjamin mora sozinho, em uma mansão herdada, e trabalha remotamente com TI. Seu único amigo está em outro país e só se comunicam através de mensagens. O rapaz é jovem, início de carreira, está animado com o futuro. É precavido, guardou dinheiro para se manter por pelo menos três anos, como afirma em uma conversa com o amigo, e fez um seguro para sua casa e seus computadores. Certa noite, sem aviso, é acordado por bombeiros, que o carregam para fora, para a rua, e Benjamin descobre que sua casa, com tudo o que possui, está pegando fogo. Em poucas horas, ele perde tudo, fica apenas com a roupa do corpo. A partir desse ponto, vários eventos se sucedem e levam o rapaz para a total ruína, sendo o golpe final, literalmente, um atropelamento que lhe tira a vida. No Purgatório, local onde as almas ganham a chance de ir para “baixo” ou para “cima”, Benjamin recebe a missão de retornar ao mundo dos vivos como consciência e ajudar várias pessoas para compensar seus pecados, até conseguir ajudar uma pessoa especialmente destinada a ele e receber a chance de voltar ao Purgatório e “subir”.

A ideia de PURGATÓRIO tinha tudo para ser excelente, mas, como disse acima, existem alguns problemas que me incomodaram. Vou citar alguns para tornar mais compreensível meus motivos. Começar pelo principal deles, Benjamin. Não consegui sentir qualquer empatia ou simpatia pelo personagem. Ele é um rapaz egoísta, que em momentos é mostrado como inteligente e precavido, para em outros, parecer ser totalmente ingênuo e até mesmo desprovido de inteligência e perspicácia. Depende da necessidade do momento. Suas ações variam entre a lógica e a impulsividade, a razão e a emoção, impedindo que seja possível criar algum vínculo, uma vez que suas características são tão vastas, que não se consegue apegar a nenhuma delas.

Quando Benjamin chega ao Purgatório, é confrontado com algumas de suas faltas durante a vida. Machismo, racismo, sexismo são algumas delas, mas colocadas em situações rasas, sem profundidade, de uma maneira apressada, sem chance para análise ou abertura para discussão. E isso se torna um problema, quando antes e depois dessa parte, são gastas páginas e mais páginas mostrando eventos de maneira excessiva. Causa um desequilíbrio e uma estranheza. Por exemplo, são gastas 32 páginas da HQ para demonstrar como Benjamin foi enganado pela companhia de seguros, em quadros e mais quadros de Benjamin indo cobrar seu dinheiro, e o dono da seguradora criando estratagemas para embromá-lo. No início, em poucos quadros, já havia sido estabelecido o teor da artimanha, tudo o que vem a seguir é mais do mesmo, repetidamente. Já no Purgatório, quando o leitor tem a chance de conhecer mais do passado de Benjamin e compreender o motivo dele precisar expurgar seus pecados, são gastas apenas nove páginas, sendo a metade delas, mostrando Benjamin discutindo com seu interlocutor sobre a necessidade desse confronto com o passado. A sensação que fica é a de que o autor quis econominar naquilo que seria mais importante, a construção do caráter e das faltas de Benjamin que direcionaram sua vida até aquele momento.

A mesma situação se repete na terceira parte da história (são três partes, de Benjamin em vida, Benjamin no Purgatório e Benjamin na sua missão de redenção). Ela é metade ocupada por demonstrar como Benjamin é inepto em ajudar qualquer pessoa, mais por seu egoísmo, por sua autopiedade por estar morto, e em demonstrar como um outro personagem é corrupto e insensível, desprovido de empatia e ganancioso a um ponto de não se importar em destruir ou tirar vidas. Obviamente esse é o personagem, a alma, que Benjamin precisa salvar. E após quase dois terços da HQ apresentando as maldades desse personagem, Benjamin o converte em apenas meia dúzia de quadros, em um discurso onde ele se coloca como a principal vítima, ignorando todas as outras pessoas que o personagem prejudicou. Um discurso que reflete o que Benjamin é, um personagem individualista, egoísta, egocêntrico, mas apresentado como a vítima e o herói da história. Infelizmente, para mim, isso é impossível de considerar.

PURGATÓRIO ainda possui alguns outros problemas de roteiro de menor importância, mas que somados, conseguem atrapalhar a leitura. Como o fato do dinheiro de Benjamin, suficiente para três anos, simplesmente acabar em apenas um dia. Ou a explicação para Benjamin não processar a seguradora, ele não teria dinheiro para manter o processo, ignorando as representações populares que o governo concede, em detrimento da necessidade de levar o personagem ao limite da miséria. Além de algumas atitudes de Benjamin, como quando ele retorna ao mundo real como alma e a primeira coisa que faz, é ir espiar a vizinha tomar banho, removendo do personagem qualquer maturidade ou respeito. Bem como algumas incoerências, como quando os pais de Benjamin aparecem do nada, sem qualquer explicação do motivo de ainda estarem em penitência, para direcioná-lo em um caminho mais assertivo, tirando dele o possível mérito de se redimir sozinho. Ou até mesmo o poder de consciência que Benjamin tem sobre as pessoas enquanto alma. Para todas, ele consegue ter alguma influência, menos na pessoa que ele realmente precisa salvar, com exceção nas últimas páginas, quando de um momento para o outro, ele consegue o objetivo por conveniência e necessidade da história terminar.

 

PURGATÓRIO tinha tudo para ser uma história incrível, mas fica longe de algo que perdure na mémoria por mais do que alguns dias, e deixa uma sensação de decepção. Infelizmente, ficou muito aquém das outras obras de Chabouté. Evidentemente, isso não diminui o brilho do autor, afinal ninguém consegue ser constante no que cria. Mas pelo preço da HQ, aconselho que você espere por uma promoção para comprar e conferir tudo o que escrevi neste texto. Depois passe aqui e deixe seu comentário.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Christophe Chabouté
ILUSTRAÇÃO: Christophe Chabouté
TRADUÇÃO: Rafael Meire
EDITORA: Pipoca & Nanquim
PUBLICAÇÃO: 2022
PÁGINAS: 204