Seu nome é Binti, e ela é a primeira de seu povo a ser aceita pela Universidade de Oomza, a instituição superior mais prestigiada da galáxia. Sua aptidão em matemática e habilidade com astrolábios fazem dela a candidata perfeita para empreender esse desafio interestelar. É, realmente, uma oportunidade imperdível. Mas se decidir partir para explorar as estrelas, passará a viver entre estranhos, pessoas que desconhecem completamente as tradições e os costumes himba – e, principalmente, desistirá de seu lugar entre a família. Mas isso não é tudo: o mundo que deseja entrar está há muito tempo infestado por Medusas – uma raça alienígena que se tornou seu maior pesadelo. A Universidade de Oomza desonrou as criaturas de uma forma inacreditável, e a viagem estelar de Binti a deixará ao alcance da rainha Medusa.

BINTI é uma trilogia de afrofuturismo que ganhou os principais prêmios da literatura de ficção-científica, como os prêmios Hugo, Nebula, BSFA, Fantasy, Locus e Nommo. Escrever apenas sobre a história do livro pode ser pouco para o tamanho de sua importância. É necessário uma introdução, mesmo que breve, para todos compreenderem a dimensão do gênero. Entende-se que o afrofuturismo teve seu primeiro representante em 1952, com o lançamento do livro INVISIBLE MAN, de Ralph Ellison, que está na lista dos 100 melhores romances de todos os tempos. Nessa obra, o personagem principal é um afro-americano, cuja cor lhe dá invisibilidade. A história aborda temas sociais e culturais que a comunidade negra enfrenta até hoje, nos Estados Unidos e em muitas outras partes do mundo, principalmente no Brasil.

Embora o gênero tenha sido iniciado nos anos de 1950, foi apenas em 1994 que o crítico cultural Mark Dery publicou um ensaio, intitulado BLACK TO THE FUTURE, que descreve as características artísticas, científicas, espirituais e culturais que pareciam comuns na ficção-científica, e nomeou esse fenômeno de afrofuturismo. Após essa publicação, muitos outros estudiosos expandiram as ideias plantadas por Dery. Temos alguns exemplos modernos do gênero, como Beyoncé e Rihanna, na música, e PANTERA NEGRA, no cinema e quadrinhos.

Ainda no campo da literatura, temos outros grandes autores, como Steve Barnes, Nancy Farmer, N. K. Jemisin, Nalo Hopkinson, Colson Whitehead, além, claro, das amadas e admiradas, Octavia Butler e Nnedi Okorafor. No Brasil, o gênero está representado pelo autor Fábio Kabral, com O CAÇADOR CIBERNÉTICO DA RUA 13 e A CIENTISTA GUERREIRA DO FACÃO FURIOSO, que você encontra facilmente na maioria das livrarias.

BINTI é a obra mais conhecida de Okorafor e também a mais premiada. Na história, Binti, a personagem principal, nasceu como Himba, um povo que realmente existe no norte da Namíbia, ao sul de Angola, e que segue tradições seculares e rígidas na forma de pensar e viver. As mulheres himbas cobrem sua pele e seus cabelos com a otjize, uma mistura cosmética de gordura de manteiga com pigmento ocre, de argila e areia. Essa tradição é explicada em BINTI, mesmo a história sendo no futuro, quando o espaço não é mais um lugar sem vida e nem a Terra é o único planeta habitado.

Binti é uma harmonizadora matemática, alguém que consegue pensar e se expressar através dos números, e essa capacidade exata, permite que ela encontre pontos comuns em disputas. Para Binti entrar na Universidade Oomza, ela precisa fugir e abandonar parte de suas tradições, o que a tornará uma pária dentro de seu povo e irá envergonhar sua família. A história começa com a fuga de Binti e sua viagem para Oomza, quando a nave de transporte, já no espaço profundo, é atacada pelas Medusas, um povo parecido com águas-vivas que travam uma guerra contra os Khoush, um outro grupo étnico, só que de pele branca, que consideram os himbas como inferiores.

As Medusas matam todos na nave de Binti, menos ela. Isso porque Binti carrega o edan, um objeto misterioso que Binti encontrou no deserto, perto de onde morava. O edan é mortal para as Medusas, mas também permite que Binti consiga se comunicar com elas e vice-versa. Outra coisa que descobre é que seu otjize tem propriedades curativas quando aplicado nos tentáculos das Medusas. Como as Medusas não têm como matar Binti, elas prosseguem com o plano de usar a nave para invadir a Universidade Oomza. Na viagem, Binti cria um vínculo com Okwu, o mais jovem e teimoso soldado das Medusas, e fica sabendo do motivo do ataque: na universidade, está um objeto roubado pelos Khoush, muito importante para as Medusas. Binti consegue negociar uma trégua provisória com as Medusas para não matarem mais ninguém e resgatarem o tal objeto. Mas para isso, como forma de compromisso, Binti sofre uma transformação física que a liga a Okwu e às Medusas.

BINTI é uma trilogia e o enredo acima é o início da primeira novela, uma vez que cada livro tem pouco mais de cem páginas. A Record reuniu, sabiamente, as três obras em um único volume, então você poderá ler tudo em sequência. O segundo livro, ou a segunda parte nesta edição brasileira, tem o título de “Binti: Lar” e narra o retorno de Binti a seu povo e sua família na companhia de Okwu. Acompanhamos as consequências de suas decisões e o preconceito da família e dos outros himbas contra Okwu, não apenas por ter sido um inimigo, mas por sua aparência e cultura. E no terceiro livro, “Binti: O Mascarado da Noite“, conhecemos as raízes dos antepassados de Binti e o maior desafio de sua vida, a tentativa de pacificar as Medusas e os Khoush para acabar de vez com a guerra. A minha leitura se deu através de uma edição não finalizada da editora, então talvez existam diferenças com a versão que será vendida nas livrarias.

BINTI, além de ser um puro representante do afrofuturismo, é um romance de formação. Binti começa como uma adolescente de 16 anos e termina como uma mulher forte, dona de seu destino, que é transformada fisicamente em alguém que vai além da humanidade. Binti demonstra como é possível lutar pelos sonhos, sem abandonar os costumes ou a família. Por grande parte da história, Binti se sente culpada pela decisão que tomou de ingressar na universidade. Ela pensa que sua família irá sofrer por conta disso. E a família realmente cobra dela de forma dura. Mas, aos poucos, conforme cresce e amadurece, Binti compreende que sua família e seu povo não depende dela para continuar, que a cobrança que fazem é por seguirem uma tradição de forma cega, de forma egoísta e intransigente. E o segundo livro exemplifica isso de forma perfeita, quando Binti conhece sua avó e outros idosos detentores de grandes conhecimentos, e que demonstram que as tradições servem de orientação, mas não são dogmas, leis imutáveis, mas orientações de comportamento, respeito, lealdade.

Okorafor transmite sua mensagem de harmonia entre diferentes raças e grupos étnicos de forma bem clara, mas nem por isso deixa de demonstrar que entre pessoas bem intencionadas, sempre existem as contrárias. Não espere terminar a leitura de BINTI com a solução pacífica para todos os problemas ou de todos os conflitos. Aliás, o final da trilogia deixa um gosto amargo por várias páginas e traz uma reviravolta que comprova que nada é concluído sem sacrifícios.

Como resumo, BINTI é um livro impactante, com uma personagem impossível de não se apaixonar e admirar. É uma ficção-científica raiz, somada a uma cultura africana vasta e muito rica. A capa reproduz todo o poder que você irá encontrar no miolo. Uma leitura obrigatória que ajudará você a ver o mundo como uma pessoa melhor. Não deixe essa chance passar.


AUTORA: Nnedi OKORAFOR
TRADUÇÃO: Carla BETELLI
EDITORA: Galera
PUBLICAÇÃO: 2021
PÁGINAS: 378


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