Samuel Ray Delany é afro-americano e nasceu em 1942, no Harlem. Sua mãe era uma bibliotecária e seu pai administrava uma funerária. Ele tinha duas tias, que foram pioneiras na luta pelos direitos civis norte-americanos e que serviram de base para uma das novelas semi-autobiográficas. E seu avô foi o primeiro bispo negro da Igreja Episcopal. Na adolescência, Delany descobriu sua homossexualidade, mas, mesmo assim, se casou com Marilyn Hacker, uma professora, poeta, tradutora e crítica literária que tinha conhecimento da orientação de Delany. Como Marilyn era Editora Assistente da Ace Books, foi ela quem ajudou a abrir as portas para Delany.

Depois de dez publicações, entre novelas e contos, foi o lançamento do livro DHALGREN, em 1975, que catapultou Delany para o rol dos grandes escritores de ficção-científica, com mais de um milhão de exemplares vendidos, mas ainda sem publicação no Brasil. Várias de suas obras ganharam prêmios, como BABEL-17, que em 1966 ganhou o Nebula de Melhor Romance e também foi indicado ao Hugo de 1967. Hoje, Delany vive com seu companheiro, Dennis Rickett, um ex-vendedor de livros.

Todo o teor racial, social e sexual que compõem a vida de Delany estão presentes na maioria de suas obras, inclusive em BABEL-17, onde ele inclui seus estudos e sua fascinação pelo poder da linguagem, abordando intensamente a Hipótese de Sapir-Whorf, hoje mais conhecida como Relativismo linguístico, isto é, a teoria científica e filosófica de que a linguagem influencia o pensamento e a percepção da realidade dos indivíduos à cultura em que estão inseridos. Ficou confuso? Calma, vou explicar.

A Hipótese de Sapir-Whorf foi proposta em 1930 e defende que as pessoas vivem segundo suas culturas em universos mentais distintos, que são determinados pela linguagem que utilizam para se comunicarem. Ou seja, culturas diferentes, podem ter percepções diferentes da realidade. Por exemplo, na nossa língua, português, para as palavras habilidade e capacidade, há no inglês: skills, capability, ability e capacity, todas as quatro com nuances e significados distintos sem correspondência direta no português. Um outro exemplo, uma linguagem dos indígenas americanos, chamada Zuni, não distingue as cores amarelo e laranja. Esses indígenas teriam dificuldade em distinguir objetos dessas cores. Entretanto, isso não quer dizer que eles não conseguiriam percebê-las, apenas não teriam a mesma velocidade na capacidade de distinção em relação a quem fala português.

O autor utiliza alguns exemplos na história, como o húngaro, que não possui pronomes de gênero e gênero gramatical em geral, ou seja, não é capaz de atribuir um gênero a qualquer coisa: ele, ela, é tudo a mesma palavra. Um outro exemplo seria o polonês, que não possui tradução para rir, risada, risadinha, gargalhada. Segundo a relatividade, as variantes de rir não existem na mentalidade polonesa. Então se não existe uma palavra para algo, como uma pessoa consegue imaginar esse algo? Entretanto, Delany faz um uso exagerado da teoria, extrapolando a capacidade de síntese em algumas partes, como quando compara a construção de uma máquina, cujas instruções em inglês ocupariam vários livros, e numa determinada linguagem alienígena, apenas algumas palavras. Esse exagero acaba por comprometer a real dimensão da teoria.

Quanto à história, Rydra Wong é uma poeta famosa, mas também uma linguista e criptografa com capacidades sobre humanas para aprender idiomas, adquiridas após um acidente na infância. Ela pertencia às Forças Armadas, sob a patente de capitã, mas pediu afastamento para se dedicar exclusivamente à escrita. Isso até receber a visita do general Forester, que a convence a ajudá-lo em um problema envolvendo a transmissão, vinda de um local distante e desconhecido no espaço, de um código criptografado, chamado de Babel-17, aparentemente responsável por diversos ataques internos cometidos por espiões ou traidores. Rydra informa que não é um código, mas uma linguagem, que pode mudar a percepção de quem a compreende e transformar essa pessoa em uma traidora.

Para a missão, Rydra precisa de uma tripulação para sua nave espacial e conta com a ajuda de um funcionário da alfândega, Daniel Appleby, para formalizar as contratações, que serão de dois antigos soldados e pilotos, Brass, Calli e Ron. Eles formam uma relação poliamorosa, onde trocam experiências sexuais, e têm seus corpos modificados geneticamente, com implantes e alterações físicas para aumentar a força, a resistência, etc.. Existem outros personagens estranhos, como pessoas que vivem dentro de computadores, em simulações, que são usadas para as viagens distantes pelo espaço, mulheres com asas e garras, homens leões, ou seja, uma enorme diversidade étnica, racial e linguística.

O Relativismo linguístico não é aplicado apenas na definição do que é Babel-17, mas também nos personagens alienígenas da obra, bem como a polaridade sexual. Sendo uma novela, tudo se desenvolve de forma bem rápida e simples, sem descrições ou eventos extensos. É notável o ar de divindade que Dalany dá a Rydra, sempre vista como alguém que possui uma espécie de aura de luz e beleza. E nesse futuro, o pudor é algo deixado de lado, inclusive em alguns locais públicos, onde só é permitida a entrada de pessoas parcialmente despidas.

BABEL-17 é uma ficção-científica raiz, daquelas onde o fantástico é considerado normal, onde o autor brinca com a linguagem para construir um inimigo, onde não existem limites para a imaginação na construção dos personagens ou das máquinas, uma característica mais presente na literatura do século passado e que se foi perdendo com o passar dos anos,

Além de BABEL-17, esta edição traz um conto na parte final, que foi criado para ser adicionado como extra em outros livros do autor, chamado ESTRELA IMPERIAL e que também foi escrito em 1966. Assim, o livro vem com duas capas, uma na parte da frente e a outra na parte de trás, invertida. O mesmo acontece com o miolo. Ao fim da primeira história, você precisa virar o livro ao contrário e começar a leitura para última capa. Criativo e diferente.

Na história, um jovem de 18 anos, chamado de Cometa Jo, vive nas cavernas do satélite Rhys, em órbita de um planeta do sistema do gigantesco sol vermelho Tau Ceti. Isso até ele encontrar dois sobreviventes nos destroços de uma nave espacial que caiu. Um deles está morrendo e entrega a Jo uma joia e uma missão: levar uma mensagem para a Estrela Imperial. O outro sobrevivente se chama Jewel, um alienígena de forma cristalizada que consegue visualizar eventos de diferentes pontos de vista, e por isso ele é o narrador da história.

Jo não sabe qual é a mensagem, não sabe onde fica a Estrela Imperial e nem sequer sabe como chegar até lá. Mesmo assim, ele está decidido a cumprir a missão. Na sua jornada, Jo conhece as criaturas LLL, que podem terraformar planetas em toda a sua complexidade, inclusive ecossistemas, sociedade e sistemas éticos. Por causa disso, eles são escravizados pelo Império, que criou uma forma de os proteger: quem os possuir, sofre de uma tristeza imensa, que aumenta de intensidade a cada LLL possuído.

Com o passar dos meses e da viagem, Jo amadurece, aprende e compreende coisas novas, não apenas sobre as sociedades, mas sobre liberdade, sobre escravidão, sobre a linearidade da história, sobre a estrutura do tempo, e é nesse aprendizado que reside a mensagem que ele precisa entregar.

Em ESTRELA IMPERIAL não existe apenas um reflexo dos pensamentos do autor sobre sua raça. Os LLL não são escravizados pela força, não há o uso de violência, e realmente para se escravizar alguém, muitas vezes basta uma forma de corrente emocional, psicológica ou mesmo a retenção de recursos essenciais. É um conto pequeno, de leitura rápida, com uma narrativa que começa sequencial e que aumenta sua complexidade ao se aproximar do clímax.

BABEL-17 e ESTRELA IMPERIAL não compartilham uma história, mas se completam pelo formato da narrativa, pelo complexo uso das palavras, pelas ideias criativas de universos fantásticos e extremamente ricos na diversidade de seus habitantes. Não existe melhor ficção-científica do que a que utiliza desses componentes para a construção de um livro.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Samuel R. DELANY
TRADUÇÃO: Petê RISSATI
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 272 e 115


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