Uma mulher conta os detalhes de um relacionamento abusivo. Semelhante a sua moral e auto-estima, a autora apresenta a própria história em tiras. As tiras de uma história em quadrinhos. Ela não pode dizer quem é, mas se esconde atrás de um pseudônimo para contar, neste diário desenhado, que o padrão do relacionamento com o homem que ela escolheu para viver passou a se resumir em tapas e beijos. Ao compartilhar deste diário íntimo com outras leitoras, ela tem a esperança de que a sua história possa ajudar quem sofre de abuso e acha que não há saída.
Rosalind B. Penfold é um pseudônimo e todos os personagens da HQ não possuem seus nomes reais. A autora viveu durante anos esse relacionamento abusivo, enfrentando não apenas abusos físicos, mas também emocionais e psicológicos. Essa vivência dolorosa despertou sua necessidade de expressar sua jornada e compartilhar sua história, com o objetivo de conscientizar outras pessoas e oferecer apoio às vítimas.
MAS ELE DIZ QUE ME AMA foi escrito e desenhado com base em suas experiências pessoais, bem como em pesquisas extensas sobre o tema. Rosalind B. Penfold dedicou-se a estudar os diferentes aspectos do abuso doméstico, desde os padrões de comportamento abusivo até as dinâmicas de poder presentes nesse tipo de relacionamento. Seu compromisso em retratar com precisão e sensibilidade as complexidades dessa realidade delicada é evidente ao longo da narrativa do quadrinho.
A narrativa de Rosalind B. Penfold mergulha corajosamente na problemática e devastadora realidade da violência psicológica, da dependência emocional e do abuso aos filhos. Publicado em uma época em que a discussão sobre esses temas era mais escassa, a obra trouxe à tona questões importantes que muitas vezes são negligenciadas e minimizadas. A HQ retrata de forma sensível e realista os aspectos mais sombrios dessa dinâmica, apresentando tanto os momentos de tensão e medo vivenciados pela protagonista, quanto às justificativas e racionalizações que a mantinham presa a esse ciclo de abuso.
Uma das temáticas mais importantes é a dependência emocional e psicológica retratada no quadrinho. A autora explora de maneira profunda como a vítima pode se encontrar aprisionada por uma teia de manipulação emocional, acreditando nas mentiras e promessas vazias do agressor. Essa dependência emocional é muitas vezes reforçada por sentimentos de baixa autoestima, medo de solidão, pressões sociais e culturais, dificultando a busca por ajuda e a saída dessa relação tóxica.
Durante a leitura, penso que é normal ficar assustado com o quanto a vítima fica dependente do agressor, o quanto ela acredita em qualquer coisa que ele fale, em como a vítima perdoa e se engana com a falsa e dolorosa esperança de que tudo vai melhorar. Por diversas vezes, eu me vi com vontade de gritar para que ela despertasse. A revolta da constatação da fragilidade emocional que transforma a vítima em uma marionete que apenas obedece e espera. É desesperador.
O título não poderia ser mais explícito quanto a um dos motivos da dependência e aceitação do abuso: ele diz que me ama. Para pessoas que passam por essa tortura, sempre fica a esperança da relação melhorar, afinal ele diz que ama. Ele pode mudar. É uma fase temporária. Na maior parte do tempo ele é melhor do que isso. Não é possível que ele seja assim. Eu não tenho mais ninguém. Deve ser culpa minha. Eu também sou muito exigente. É culpa da bebida. É culpa do trabalho. É culpa do estresse. É culpa das crianças. Não é culpa dele. Eu preciso ser mais paciente. Vai melhorar. Ele diz que me ama. Tem que ser verdade. E com esses pensamentos, a pessoa, aos poucos, desaparece.
Outro aspecto doloroso abordado no quadrinho é o impacto do abuso nos filhos. A obra revela de forma contundente as consequências desse ambiente abusivo na vida das crianças, evidenciando como elas também se tornam vítimas dessa situação. Esse retrato realista é um alerta poderoso sobre a importância de proteger e apoiar as crianças expostas a abusos domésticos. Além de que as próprias crianças podem sofrer a mesma violência, ou mais, do que a mãe. E as desculpas que a pessoa encontra para permitir isso, são as mesmas que ela usa para se permitir ser agredida.
É fundamental ressaltar que MAS ELE DIZ QUE ME AMA oferece uma visão realista e corajosa do abuso, mas também deixa claro que há esperança e que a mudança é possível. O quadrinho pode servir como um instrumento de conscientização e empoderamento para vítimas que se identifiquem com a história, encorajando-as a buscar ajuda e a romper o ciclo de abuso.
Para aqueles que estejam passando por situações semelhantes ou conheçam alguém que esteja, é crucial buscar ajuda profissional. Existem diversas organizações e serviços especializados em apoio às vítimas de abuso doméstico, como linhas telefônicas de emergência, abrigos temporários e terapeutas especializados. Além disso, é essencial compartilhar informações sobre os direitos e recursos disponíveis, para que as vítimas tenham acesso a uma rede de apoio e possam romper o ciclo do abuso.
Permeado por uma narrativa sufocante de desesperadora por reconhecer a fragilidade da autora e a crueldade do agressor, MAS ELE DIZ QUE ME AMA é uma obra de grande relevância social, abordando de maneira honesta e impactante o tema do abuso e da dependência emocional. Ao levantar questões importantes e retratar as consequências devastadoras desse tipo de relacionamento, o quadrinho oferece um apelo à reflexão e à ação, encorajando a sociedade a combater o abuso e a oferecer suporte às vítimas.
Infelizmente esta é mais uma HQ que não é mais publicada. Só é possível encontrar no mercado alternativo ou, com alguma sorte, escondida nas estantes de alguma livraria física.
AVALIAÇÃO:
AUTORA: Rosalind B. Penfold ARTE: Rosalind B. Penfold TRADUÇÃO: Daniel Pellizzari EDITORA: Ediouro PUBLICAÇÃO: 2006 PÁGINAS: 264 |
Olá!!
Fiquei muito feliz que você tenha gostado e, ainda mais, por ter feito uma resenha maravilhosa sobre essa obra!
De fato, desperta sentimentos intensos no leitor porque estamos vendo a situação de fora. Mesmo para quem está em um relacionamento abusivo, identificar-se com a personagem é ainda mais desesperador porque não se consegue enxergar uma saída para a situação. É um fenômeno extremamente complexo e que precisa de muito tato no manejo com essas vítimas, pois elas tendem a se retrair e permanecer no ciclo da violência, porque é só isso que elas conhecem, infelizmente.
Sair de um relacionamento abusivo é possível, mas é necessário mais do que vontade. Alguns autores entendem como um vício, inclusive. É saber que te faz mal, mas não conseguir largar.
Importantíssimo o serviço que você prestou alertando para que as pessoas procurem ajuda especializada. É o primeiro passo em direção a própria reconstrução, que leva tempo, tem recaídas, mas também é extremamente libertador em todos os sentidos.
É lamentável que não esteja mais disponível e nos lugares que ainda têm os preços são abusivos. Fica o apelo para uma nova reimpressão/edição.
Muito obrigada, de verdade!
Já li vários livros que tratam do mesmo tema, mas confesso que essa HQ foi a que fez de maneira mais direta, didática e profunda. Acompanhar, mesmo que por desenhos, o que a autora sofreu, é revoltante e assustador. E mais assustador é saber que pouco se faz para mudar isso. Queria que a resenha atingisse o maior número de pessoas, mas o desempenho está fraco. Acho que muitas leitoras fogem desse tema.
Pois é, acho muito frustrante que conteúdos de qualidade e gratuitos como o seu não tenham tanto alcance quanto mereciam. Mas acho também que isso é um sintoma da realidade atual, sabe? O hedonismo, o imediatismo e a competição predominam. Tudo muda muito rápido, modinhas pra lá e pra cá e muita gente com necessidade de pertencer, ao mesmo tempo em que não percebem a armadilha da superficialidade.
Fiquei sabendo agora (mas não deve ser novidade) que o YouTube está em declínio porque a onda agora é produzir vídeo curto. Se nem vídeo as pessoas se interessam mais, que dirá de textos, sabe? Acho isso lastimável.
Mesmo nesse nicho de quem fala sobre literatura, há uma cobrança de produtividade que considero insalubre. Não é difícil encontrar “booktubers” dizendo “Como ler mais rápido”, “Como ler 200 páginas por dia”, “Quantos livros você leu neste mês?”
Olha, me dá uma preguiça disso… e a maioria dos vídeos são tão óbvios, com raras exceções.
Mas também acredito que há uma vantagem nisso tudo: quem acessar o conteúdo vai estar realmente interessado.
Sei lá, estou viajando aqui, tentando entender também esse fenômeno, sabe?
Cheguei até o seu blog através da angústia que senti ao ler “Tudo é rio” e ver que o livro é elogiadíssimo, a autora está num pedestal é muita gente considera maravilhoso, intenso, e blá blá blá. Porém, pra mim, esse livro foi um pesadelo, conforme já falamos. Quando vi sua resenha, senti um alívio tão grande ao encontrar alguém que também tinha conseguido enxergar as sandices das entrelinhas dessa obra.
Ler, para mim, sempre foi um processo solitário. Poucas pessoas do meu pequeno entorno têm interesse por literatura.
Enfim, meu comentário acabou virando um desabafo, hehehehehe.
Não desanime e não desista! Você é ótimo naquilo que faz e foi um prazer encontrar seu blog.
Abraço!
Obrigado 😉 E, sim, hoje o que se valoriza é conteúdo visual rápido, 15 segundos no máximo. Uma pena…