Vicenza é aquela personagem feita para que todo mundo queira guardar em um potinho. Doce, gentil, madura e inteligente, é o tipo de perfil que não tem como não gostar. Certeza que nem arrota, de tão perfeita. Amante do mundo e da vida, a única coisa que quer de verdade, é saber quem é o seu pai e ocupar esse vazio.

Raion tem alma de pipa avoada, como a própria Thalita Rebouças, autora, descreve. Livre, leve, solta, sem convenções, seu maior desejo é que sua filha seja feliz de verdade. E é por isso, que mesmo após todos os anos de insistência da garota para saber quem é o seu pai, ela guarda o segredo para si e opta pelo silêncio.

Mas a mocinha está cansada de esperar. Após completar 18 anos e sua mãe viajar, ela decide ir para o Rio de Janeiro em busca de seu pai. Guarde esses detalhes: sem um tostão na carteira, sem conhecer ninguém. Quando chega lá, ela se depara com um desafio: 2 homens muito diferentes e incríveis de formas próprias, que podem e querem ocupar “esse espaço vazio“.

PAI EM DOBRO é, claramente, um livro feito para adolescentes. É fácil se identificar com todo o sofrimento, angústia e vontade de pertencer da protagonista. A narrativa também revela isso. Mais que só contar a história, Thalita comenta, participa enquanto observadora e dita o ritmo das reviravoltas.

A escolha de tal artimanha diverte e encanta em alguns momentos. Em outros, ultrapassa o equilíbrio e se torna cansativa, trazendo semelhanças demais com uma fanfic. Não que seja ruim parecer uma fanfic. Apenas traz certa estilística e informalidade que afastarão leitores mais exigentes.

O próprio ritmo da narrativa é, ao meu ver, mais um sintoma/consequência. Posso estar sendo injusta, mas em certos momentos, principalmente no início, senti que não houve planejamento. Isso porque há acontecimentos desnecessários que ocupam muito espaço, enquanto o próprio desenvolvimento dos personagens e das suas relações, acontecem rápido demais. Como se tivesse acabado o número de páginas disponíveis. Um exemplo disso é o Paco, que vai da água para o vinho após um ataque de consciência. Como assim?!

Outra personalidade que me incomoda é a da Vicenza. A perfeição demais afasta. Não sei quanto a vocês, eu sou do tipo que gosta de se identificar com as protagonistas das histórias que leio. Logo, esperava mais falhas, erros e atitudes humanas. Além disso, o excesso de ingenuidade em alguns momentos, para mim, beira a irresponsabilidade.

Veja pelo meu lado: uma menina de 18 anos, que não conhece ninguém, decide ir para o Rio e confiar em todo mundo pelo poder das boas energias. Para além, dorme na casa de um cara mais velho e desconhecido, sozinha, só porque o coração dela disse que podia confiar. Acho muito bonito na teoria; na prática, todavia, muito problemático. Considerando o público-alvo do livro, e considerando como eu era quando tinha a mesma idade (me achava a pessoa mais sensata e mais intuitiva do mundo), abre muitas brechas para que adolescentes façam o mesmo e não tenham finais felizes.

Mais uma coisa que me incomodou foi a forma com que a Thalita lidou com as fantasias. Não quero ser a chata, em contraponto, preciso agir de forma politicamente correta. Estamos em pleno século XXI. Fantasia de hippie e de cigana se enquadram em apropriação cultural. E foi tratado, muitas vezes, como “é só piadinha“. Do mesmo jeito, se vestir de mulher como diversão e pagar onda, é mais um reforço do machismo, do patriarcado e, de certa forma, problemático para a cultura LGBTQIA+.

Por último, mas não menos importante, a primeira conversa entre a Vicenza e o Cadu (o crush) vale ser analisada. Foi algo tipo “você é bonito. Tem cor de chocolate e bocas de almofadinha“. Ambas as expressões são péssimas escolhas. Primeiro, porque são micro agressões que pessoas negras sofrem todos os dias. Segundo, porque uma das correntes mais recentes do movimento negro, luta contra a sexualização do corpo negro. Ou seja, luta contra a visão dos lábios carnudos, do corpo definido e de outros traços genéticos como só algo que desperta desejo. Portanto, antes, autorizava e legitimava o assédio e o estupro de pessoas negras.

Calma! PAI EM DOBRO é uma ótima diversão para ver sem filtros. A história é envolvente. Os protagonistas são interessantes. As referências (brasileiras e internacionais) são sensacionais. A própria Thalita sabe o que faz também. Contudo, é o meu dever apontar todos esses tópicos que vi e acho problemático, para que você, seja uma mãe, uma pessoa sem filhos, uma mulher adulta ou adolescente, entenda onde está se metendo.


AUTORA: Thalita REBOUÇAS
EDITORA: Rocco
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 253


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