Aos 15 anos de idade, Vanessa é uma adolescente que enfrenta problemas de reconhecimento familiar. Ela se sente isolada pela família, sozinha, e se refugia no desejo de se tornar uma escritora, uma das profissões mais solitárias que existe. Vanessa tem talento, e por causa disso, por causa de um elogio de seu professor de literatura, Jacob Strane, sobre algo que ela escreveu, Vanessa não se importa se receber outros elogios não direcionados à escrita, mas sobre seu cabelo, suas roupas, seu corpo.

Jacob tem 42 anos de idade. O primeiro livro que ele empresta para Vanessa, para estimular sua escrita, é Lolita, a controversa obra de Nabokov sobre pedofilia. Na verdade, não sobre. Na verdade é um exemplo de como os homens criam desculpas sobre abusos que cometem e direcionam a culpa para a mulher. E todas as falas e atitudes de Jacob para com Vanessa, seguem essa linha de raciocínio, criando sequências e sequências de conversas e ações calculadas para que parece que Vanessa está no controle, que Jacob é uma vítima de uma relação que ele não deseja, mas da qual não consegue se afastar por culpa de uma garota de 15 anos de idade. Afinal, como um homem de 42 anos, conseguiria se conter diante da sensualidade de uma adolescente que sequer compreende o que realmente é sensualidade?

Aliás, a autora é bastante clara na descrição de Jacob, que não se resume à sua idade e seu gênero. Ele é um homem grande, alto, enorme, com uma presença que se destaca em qualquer ambiente em que ele está. E Vanessa é exatamente o oposto, a típica adolescente americana, frágil, física e mentalmente, bonita, com um corpo em formação. É um monstro peludo em busca de sua presa. Isso fica claro para quem lê. Como também fica claro que apenas Vanessa não enxerga a mesma coisa. E essa situação poderia ser um problema narrativo, como se a autora forçasse uma disparidade para agredir, mas passa longe dessa sensação, uma vez que a construção dos personagens e de suas ações é meticulosa, propositalmente lenta, exatamente para demonstrar a facilidade que um homem de boa conversa tem para ludibriar e direcionar a culpa do que faz para outrem.

Os capítulos de MINHA SOMBRIA VANESSA são alternados entre o passado e o presente, com 20 anos de intervalo. Acompanhamos Vanessa no ano de 2000, aos 15 anos de idade, e a forma como ela conheceu e se envolveu com Jacob. E acompanhamos Vanessa em 2017, aos 32 anos de idade, quando Jacob é acusado de abuso e estupro por uma outra mulher. Essa comparação entre o passado e o presente é algo assustador. É Vanessa quem narra os dois momentos. No antes, ela deixa claro como era irresistível se envolver com um homem sedutor, que ela achava que compreendia quem ela era e como ela pensava, que lhe fazia companhia, que a incentivava em seus sonhos. E como quando essa relação começou a se tornar física, ela não impediu em um primeiro momento, por achar que era natural, que ela já era suficientemente capaz de decidir o que desejava, mesmo se sentindo desconfortável, mesmo sentindo medo. Afinal, Jacob era a personificação da presença paterna que não encontrava em casa, ao mesmo tempo em que era o amigo que a compreendia, o professor que a educava, e a idealização do amante perfeito, mais velho e experiente.

Nesse passado, quando a relação passa para o terreno sexual, e Jacob começa a desfrutar de seus fetiches em cima de Vanessa, é necessário o leitor ter uma estabilidade emocional e psicológica. A autora não esconde detalhes, e também não abusa deles ou os prolonga, mas eles estão lá. Nesse ponto, Vanessa, apesar de seus 15 anos, identifica que está sendo usada, mas como uma droga, ela permite, porque todo o resto faz com que ela se sinta viva, importante. Ela se questiona muitas vezes se o que pensa é real, mas não consegue chegar a uma conclusão, não apenas porque não consegue, mas também porque tem medo de conseguir.

Em 2017, a Vanessa mulher tem uma narrativa que não leva mais o medo ao leitor, mas a compaixão. Ela ainda mantém contato com Jacob, e uma parte dela acha que ele está dizendo a verdade sobre ele não ter abusado da garota que o denunciou, e nem de outras que começam a aparecer. E no começo, eu pensei que Vanessa realmente acreditava nisso. Até mesmo sua versão de 15 anos parecia mais consciente do problema do que a Vanessa de 35 anos. E achei isso estranho. Era como se Vanessa tivesse regredido ao invés de amadurecer. Mas não se engane. Aos poucos, eu compreendi o que estava acontecendo. A Vanessa adulta tem consciência de que foi abusada, que foi estuprada, mas, às vezes, é necessário fechar os olhos para a verdade, porque se abrirmos, enlouquecemos. E a passagem do livro em que a própria Vanessa explica esse comportamento, em que ela se reconhece, é de fazer chorar.

Existe uma conclusão para a história de Vanessa e de Jacob, principalmente. Por que principalmente? Porque o desfecho de Jacob é conclusivo, e não vou entrar no mérito de se é justo ou não é justo, mas é um desfecho fácil. Já para Vanessa, a luta será constante, por sua vida, por sua sanidade, por sua dignidade. E é assim na realidade. A vítima sempre precisa lidar com as consequências do que sofreu e seguir lutando.


AUTORA: Kate Elizabeth RUSSEL
TRADUÇÃO: Fernanda ABREU
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 432


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