Decidimos falar um pouco sobre como a leitura, atividade que nós amamos e temos como costume, pode ser útil para a saúde mental. Tenho certeza que para muitos, a leitura está sendo utilizada como uma ferramenta de enfrentamento do cenário atual de pandemia, porém outras atividades que gostamos de fazer também podem ser entendidas como instrumento de cuidado com a nossa saúde.

Para falar um pouquinho sobre isso, convidamos a Psicóloga NADJA CRISTIANE LAPPANN BOTTI, professora de Saúde Mental na Universidade Federal de São João del Rei. Ela é idealizadora do projeto PANDEMOINHO, que tem escrito narrativas com licença poética que convidam a reflexões sensíveis, éticas e críticas da proteção à vida, valorização do viver, promoção de saúde mental e prevenção do suicídio em tempos de corona. Quem tiver interesse, pode acessá-la por: @nadja.cristianelappannbotti.

ENTREVISTA

ANA LU: A primeira pergunta é pra compreender um pouco melhor o momento atual. Por que esse momento é tão complexo do ponto de vista da saúde mental?

NADJA: Porque o tempo vivido na pandemia revela-se como um tempo doído de viver (de medos, perdas, incertezas, isolamentos, distanciamentos), e sua complexidade não se encerra no viver a dor, mas também no fato que não se deixar doer é estar próximo, muitíssimo próximo do que temos de pior, que é a indiferença humana. E esta dor pode traduzir-se em mal-estar, sofrimento ou sintoma pois num piscar de olhos, numa piscadela, de forma abrupta e infligida, nossa vida mudou. Mudanças que muitas vezes não compreendemos, mudanças que nos deixam confusos, inseguros, preocupados e com medo. E lembrando de Dom Quixote de Cervantes sabemos que um dos efeitos do medo é perturbar nossos sentidos e fazer que as coisas não pareçam o que são e ainda que perder bens e amigos dói muito, mas perder a coragem é perder tudo.

ANA LU: Qual a capacidade da literatura como instrumento para manter a saúde mental?

NADJA: Com a literatura podemos refletir sobre os afetos gerados numa vida em quarentena, construir referências simbólicas para nossos enfrentamentos e desenvolver uma ética da sensibilidade, do olhar, da responsabilidade e da esperança que tangenciam a questão da valorização do viver e da saúde mental.

ANA LU: Você diria que essa arte já foi utilizada nessa proporção ao longo da história como forma de cuidado com a própria mente?

NADJA: Sim, se partirmos do pressuposto que a construção do mundo e, portanto, do viver no mundo são produtos e produtoras subjetivas de narrativas míticas, ficcionais e biográficas, por isso a arte torna-se a expressão de um mundo vivido e nossa referência simbólica e afetiva.

ANA LU: Nós sabemos que todas as coisas devem ter um equilíbrio para que cumpram seu propósito. Há algum limite específico sobre o quanto uma atividade é saudável ou não? Como estabelecer limites?

NADJA: Há muito tempo sofremos com a desmedida pulsional e por isso podemos pensar que os desafios, impactos subjetivos e produção de sofrimento em tempos pandêmicos assinalam e revelam tal desmedida. Vivemos uma contemporaneidade marcada pelo tempo da aceleração social, consumo, competividade recheados pelos discursos motivacionais, portanto uma vida numa sociedade não qual não podemos nos autorizar a parar, não podemos parar de trabalhar, parar de produzir, parar de postar, parar de consumir, parar de estudar, parar de empreender, parar de inovar enfim não podemos perder tempo parando. E na pandemia o que precisamos fazer? Parar para primeiro olhar o que vivemos, compreender e então concluirmos ou seja o que significa o vivido. Mas novamente, a maioria aceleradamente, já se lança na conclusão do novo normal das inúmeras lives, dos incontáveis encontros virtuais e do incalculável cansaço da produção sem sentido na vida pandêmica.

ANA LU: Há algum gênero específico que seja melhor ou pior para enfrentar esse momento, ou ainda, há algum gênero que deva ser evitado?

NADJA: Neste momento é bem-vinda a literatura e seus autores que se articulam intimamente com a dimensão ético-política da vida com narrativas que traduzam a responsabilidade cidadã, a ética da esperança e o afeto solidário.

ANA LU: Você poderia deixar um recadinho para os nossos leitores?

NADJA: Se em tempos de corona o viver se tornou um pandemoinho com Dom Quixote temos o convite para reinventarmos a vida sonhando o sonho impossível, sofrendo a angústia implacável, amando um amor à distância, enfrentando o inimigo invencível, tentando quando as forças se esvaem e alcançando a estrela inatingível, mas sem esquecer de não sonhar sozinho pois quando sonhamos juntos torna-se o começo da realidade.