As nossas memórias são um bem precioso que, infelizmente, perdemos com o tempo. Conforme a idade avança, o passado se torna um incômodo constante ao nos lembrarmos de atos, palavras e omissões. É com esse pensamento que Ono, protagonista da pérola UM ARTISTA DO MUNDO FLUTUANTE, vive diariamente.

A trama acompanha Ono, um senhor idoso morador de um Japão arrasado pela Segunda Guerra Mundial. Na juventude, ele foi um bem sucedido pintor e professor, sendo um exemplo para muitos, e grande apoiador do Japão Imperialista, aquele que invadiu diversos países durante a guerra. Vive em uma casa que, por si só, já tem muita história para contar e, ao fazer um passeio por um bairro favorito na juventude, Ono reflete sobre sua própria vida.

O livro é uma grande reflexão, com diálogos introspéctos. O personagem se lembra de algo, e logo vamos para essa memória. Ele vê, ouve ou associa algo com o que viveu no passado e, em seguida, mergulhamos nesse fato antigo. É realmente uma conversa bem realista. Quem nunca começou falando sobre a antiga escola e, do nada, foi parar na descrição da sua primeira namorada (o)? E nisso compreendemos como está a vida de Ono hoje e como era antigamente.

Ono tem duas filhas, e o arco central da trama é o casamento de sua segunda filha, e nisso passamos pelos costumes bizarros de casamentos no Japão dos anos 40. A moça tem 26 anos e já é tachada de velha e o pior é que os preparativos do casamento são basicamente negociações. Os pais do noivo vão investigar a fundo o passado da noiva e de sua família. Caso encontrem algo estranho, cancelam a união na hora. Ono, com receio de que seu passado possa interferir no casório da filha, acaba tendo que visitar à força memórias que gostaria de apagar.

Ono acaba que sendo obrigado moralmente a visitar pessoas com quem não fala há anos para poder pedir que não difamem sua filha injustamente quando o detetive aparecer para a investigação. E essas visitas reservam muitas surpresas, é nelas que passamos a conhecer melhor o antigo Ono. O homem que pagou um preço alto pela guerra, que vive querendo aproveitar seu tempo restante. Tem muitos arrependimentos, mas nada disso o faz parar de viver. Sua filha mais velha tem um filho, e, para Ono, a interação com o neto não tem preço. Os trechos onde ele e a criança brincam, desenham e conversam são o ponto alto da leitura. A juventude e velhice andando de mãos dadas, uma aprendendo com a outra.

Para o Japão, a Segunda Guerra terminou em rendição incondicional, e a leitura passa brevemente por esse momento e em como ele interferiu na vida da população. O país foi invadido pelos americanos e, com eles, veio sua cultura e seu modo de viver, e uma das coisas mais interessantes é notar que a essência do povo japonês não foi prejudicada. Pouco se fala, mas o povo japonês também foi oprimido por seus governantes sádicos e a lavagem cerebral foi tamanha que muitos demoraram anos para conhecer todo o mal que o Japão Imperialista causou na Ásia, principalmente na China, um dos primeiros países a ser invadido pelos japoneses. E a trama não para por aí, ainda passamos por pessoas que apoiaram esse Japão na guerra, mas poucos são aqueles que conhecem toda a verdade a tempo. Quem nunca acreditou em algo e depois se arrependeu? Quem nunca tentou tirar o melhor das coisas ruins? Quem nunca se enganou sobre coisas que pensavam serem boas?

São menos de 230 páginas que poderiam ser o dobro e não fariam nenhum mal. É uma leitura honesta e realista sobre como vemos a vida passar tentando sempre atrasar o relógio. É importante relembrar e se arrepender, ver onde erramos e onde acertamos. O autor Kazuo Ishiguro, ganhador do prêmio Nobel de Literatura, mostra-se um mestre no estudo humano. Um livro sobre a vida, que poderia muito bem ser sobre a minha ou a sua.

A edição nacional, toda coberta pela cor turquesa, inclusive na sua lombada, é um luxo à parte, que só soma pontos a favor da perfeição desse livro, uma jóia que merece todo o destaque possível.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasaki, Japão, mas aos seis anos emigrou com a família para a Inglaterra. Os seus pais planejavam voltar ao seu país, mas por diversas circunstâncias foram ficando, e Kazuo cresceu sobre a influência das duas culturas. Na sua adolescência sonhava ser um músico, actuando em vários clubes e enviando gravações a várias editoras. Sendo rejeitado por estas, e não tendo futuro com a musica, decide dedicar-se à escrita. Estudou nas universidades de Kent e East Anglia, no curso de ´escrita criativa´ que o escritor Malcolm Bradbury estabeleceu e no qual era ainda professor. Ishiguro define-se como sendo um escritor que deseja escrever novelas internacionais. Antes de escrever os seus aclamados romances, Ishiguro publicou vários contos e artigos em revistas, na década de 1980.
TRADUÇÃO: José Rubens SIQUEIRA
EDITORA: Companhia das Letras
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 225


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