Parece ficção, mas não é: a imagem de uma mulher decidida e focada em seus objetivos, com um livro na mão, já foi uma figura apavorante para homens, acredita? A autora responsável pelo sucesso mundial COMO EU ERA ANTES DE VOCÊ e diversos outros, está de volta com seu novo livro, que tem esse simples fato como centro de sua nova trama. Vem que tá na hora de se empoderar e distribuir conhecimento, bora?

Os Estados Unidos está destroçado e, mesmo que os anos 30 já estejam na metade, a população ainda sente os impactos da grande queda da bolsa de valores, de 1929, mais conhecida como a Grande Depressão. É nesse cenário que a trama de UM CAMINHO PARA A LIBERDADE se desenvolve. A primeira protagonista se chama Alice e ela é uma moça inglesa que acaba de desembarcar na América, vinda para se casar com um novo ricaço, que tem uma importante empresa no ramo mineral. Chegando numa cidade pequena e rural, Alice demora a se adaptar e logo se interessa por um projeto muito interessante que envolve uma biblioteca móvel. Esse projeto, que nasceu no governo Roosevelt, visava levar conhecimento e um pouco de entretenimento para a população mais carente, aqueles que mais sofreram com a crise econômica que devastou o país. A biblioteca móvel funcionava com a ajuda do governo e distribuía livros gratuitamente para todos que queriam. As moças levavam os livros na casa dos leitores, montadas em cavalos e burros, fazendo um rodízio entre si. As leituras eram variadas, para todos os gostos, desde aventuras até livros de receitas, revistas sobre cuidados para a casa e pessoais. E num evento para captar voluntários para o projeto, Alice se interessa e embarca nessa jornada que irá mudar sua vida.

A segunda protagonista se chama Margey e ela é a líder do projeto. A moça é mal vista na vizinhança por ser de uma família “ruim” e ser dona de um temperamento forte. Ela não leva desaforo para casa e, junto com sua coragem inabalável, ela monta uma equipe de moças que transformam esse sonho em realidade. Porém, os problemas não tardam a aparecer, já que quando se tem livros, nasce conhecimento e questionamento. As moças começam a ensinar todas as pessoas a lerem e clamarem por direitos. Esse conhecimento atrai a ira do sogro de Alice, que é um dos homens mais ricos e machistas da cidade. Com sua influência, ele tenta a todo o custo acabar com o projeto, que na visão dele transforma as moças do lar em mulheres desvirtuadas e com ideias antinaturais. Resta para as moças resistirem a todos os ataques que lhe forem infligidos, e posso adiantar que não serão poucos.

O livro se baseia no movimento real de biblioteca móvel que aconteceu nos anos 30 nos Estados Unidos. A trama e os personagens são ficcionais, mas por incrível que pareça, nada aqui foge da nossa realidade, a nossa mesmo do século 21. Alice é a típica moça europeia que vem para a América em busca de uma nova vida junto com o marido. A trama reserva bastante espaço no primeiro ato para desenvolver essa personagem. Seu casamento acabou de nascer e já é falido. Não há diálogo entre eles, não há vida matrimonial e nem sexual. Seu marido se recusa a tocar na própria esposa sem motivos aparentes, e numa situação como essa, a culpa é sempre da mulher. Se ela não consegue engravidar, a culpa é dela; se o marido está triste e frustrado, a culpa também é dela. E é nesse pequeno inferno que Alice se encontra. Infelizmente a realidade de muitas mulheres, nos dias de hoje, que já viveram isso ou ainda estão vivendo. O trabalho na biblioteca vem num momento ótimo para Alice conseguir sair de casa, socializar e viver um pouco. E é nas montanhas, montando seu cavalo para ir entregar uns livros, que Alice descobre quem ela realmente é. O contato com o povo a faz se apaixonar, ensinar, aprender, e levar alegria para pessoas tão humildes, faz a nossa protagonista se encontrar. Ler sobre tudo isso é uma viagem apaixonante e envolvente, que reserva para o leitor um entretenimento inspirador, carregado de substância.

Mas a leitura não reserva só flores, problemas existem aos montes. O marido de Alice é um bundão, mas seu pai, sogro de Alice, é o próprio demônio na Terra. Exemplo mais que perfeito do machista clássico que odeia quando uma mulher anda com as próprias pernas e se recusa a ser apenas uma dona de casa. Além de fazer a vida de Alice mais desagradável a cada dia, essa relação de sogro e nora reserva o momento mais repugnante do livro, com um capítulo inteiro onde o leitor queima de ódio, não acreditando no que acabou de ler. Não por ser surreal, mas por ser um retrato perfeito da realidade podre que muitas mulheres já viveram. A autora retrata isso pelo ponto de vista da mulher e faz um trabalho impecável transmitindo com força as sensações da personagem. E a cada dia que Alice vai trabalhar, ela leva consigo o ódio de seu sogro, que agora transferiu para a biblioteca, que o velho não vai descansar até destruir.

Margey comanda a biblioteca e, mesmo sendo odiada por toda uma população de “Maria vai com as outras”, ela se destaca fazendo a diferença. Nessa cidade existe uma mineradora que é propriedade do sogro de Alice; essa mineradora ama cometer crimes ambientais e tem condições de trabalhos para os mineiros insalubres e insuportáveis. E durante as viagens de entrega de livros, Margey e as outras moças, expõem essa realidade para todos. Muitos não faziam ideia do que estava acontecendo. Logo as moças estimulam as pessoas a clamarem por direitos, reivindicando dos políticos ações concretas, com cartas para governantes e etc. E não preciso nem explicar o porquê isso tudo irritou os ricos, que morrem de medo de uma população letrada, pois conhecimento é a base das bases.

A biblioteca é formada por um grande grupo de mulheres, cada uma com suas caraterísticas próprias, e cada uma tem a sua pequena história. A autora acerta em cheio quando explora a vida em uma sociedade feminina, explorando a importancia da sororidade, que é o apoio de mulheres para com mulheres. O livro recebe uma carga surreal de carisma e impacto quando essas mulheres estão juntas. O segundo ato da trama é a melhor definição de perfeição. Sua escrita agradável, casada com personagens complexas e cheias de carisma, fazem o livro só crescer no conceito do leitor, e olha que ainda nem chegamos no ato final.

O terceiro ato do livro é composto pela grande culminação do plano dos machistas, a possível grande destruição desse projeto tão bonito de levar livros para as pessoas. Não é algo extremamente novo, mas a autora insere um daqueles clichês que se justificam, pois, ao retratar as dificuldades que as mulheres passam, eu não posso inventar, querer aparecer criando tramas mirabolantes, eu preciso mostrar exemplos reais. E virar a justiça contra a mulher, fazer o certo parecer o errado, a vítima parecer a culpada, a mulher maldosa e o homem santo, são cosias que a gente vê acontecer nos dias de hoje. É duro ler sobre tanta injustiça, mas depois de uma tempestade, o arco-íris aparece, e junto com ele, a esperança de dias melhores.

O livro se passa nos anos 30, mas poderia se passar nos dias de hoje. Quantos homens você conhece que se sentem intimidados com mulheres em posição de poder? Por que tão poucas mulheres conseguem chegar nessas posições e por que as mulheres precisam se provar duas vezes mais, receber menos e ainda ter que suportar assédios diários para conseguir um suado lugar ao sol? A resposta para isso são décadas e décadas de uma desigualdade burra e surreal, que hoje em dia é um pouco menor, mas está longe de não ser um problema doloroso que afeta todas as mulheres.

UM CAMINHO PARA A LIBERDADE é um livro que emana dedicação, dá pra ver que a autora quis ser autêntica e trazer um texto que fosse mais que um simples entretenimento. Temos uma leitura que aborda vários temas, se aprofunda em todos, e consegue dar espaço para diversas vozes. Temos também o ponto de vista de uma mulher negra, e não é segredo para ninguém que a população negra precisa se provar duas, três vezes mais em qualquer situação, ainda mais em um Estados Unidos bastante racista. A leitura é extremamente bem construída e montada, nos apresenta personagens maravilhosas, questionamentos válidos e importantes, além, é claro, de ser uma prosa deliciosa que vai desabrochando como uma flor, ficando mais bonita a cada nova página.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Jojo MOYES
TRADUÇÃO: Ana RODRIGUES, Catharina PINHEIRO, Julia Sobral CAMPOS e Maria Carmelita DIAS
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 362


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