Na superfície, “WE3” é um thriller de ficção científica. Três animais — um cão, um gato, um coelho — fogem de um projeto militar que os transformou em armas biotecnológicas. É uma narrativa de perseguição, explosões, violência estilizada e cenários pós-industriais. Mas isso é só a casca. Debaixo da carcaça metálica, WE3 pulsa como um coração ferido: um lamento sobre dor, perda, amor e a brutalidade do controle.

A escolha de Grant Morrison em limitar a linguagem dos animais a fragmentos — “CASA?”, “MAU CÃO?”, “AJUDA?” — não é só estilística. É um gesto político e poético. Esses seres, mutilados em sua natureza, são também mutilados em sua voz. Falam com as sobras do que restou após a domesticação, a programação, o treinamento. Mas dentro dessas sobras pulsa uma forma de humanidade não-humana: cada palavra truncada é carregada de urgência, medo e desejo.

É através dessa linguagem quebrada que Bandido (o cão) pergunta, não apenas onde está seu lar, mas se ainda pode ter um. E isso nos atinge com a força de um silêncio gritante. Poucas obras conseguem dizer tanto com tão pouco.

Os animais de “WE3” não são apenas vítimas: são produtos. Máquinas. Projetos. Mas seus instintos — de fuga, de cuidado mútuo, de apego — são tratados como bugs pelo sistema. Isso diz muito. Em um mundo que transforma tudo em função, a capacidade de amar se torna uma falha. O afeto é visto como erro. E é justamente esse erro que salva os três. Não com glória. Não com justiça. Mas com sobrevivência.

No centro de “WE3“, os três protagonistas são seres programados para obedecer sem questionar. Matam sem hesitar, seguem ordens com precisão, ignoram os gritos das vítimas. Essa ausência de julgamento moral é um sintoma da manipulação — e aqui, Morrison propõe um paralelo direto com o condicionamento de soldados humanos.

No treinamento militar real, há uma desconstrução sistemática do pensamento autônomo: suprimir o medo; obedecer sem hesitação; agir, não refletir; dissociar-se emocionalmente.

Essa lógica está em “WE3“. Bandido, Remendo (o gato) e Pirata (o coelho) são condicionados para matar sem culpa — e quando escapam, entram em colapso. Passam a sentir medo, culpa, confusão, traumas que se manifestam em repetição de palavras, em tremores, em desconfiança absoluta.

Assim como soldados que retornam de guerras com transtorno de estresse pós-traumático, os WE3 enfrentam o mesmo dilema: o que resta de mim, agora que fui usado? E, como tantos ex-combatentes, são descartados quando deixam de funcionar. O sistema que os criou só os reconhece enquanto instrumentos. Fora disso, eles viram erro, risco, lixo — e precisam ser apagados.

Ao contar essa história com animais, Morrison nos obriga a ver com mais clareza o que muitas vezes é naturalizado em humanos. E é por isso que “WE3” atinge tão fundo. O trio que foge não carrega ideologia. Carrega memória, dor e uma pergunta que talvez todos já tenhamos feito em algum momento: “Ainda existe um lugar para mim no mundo?” E talvez, ao acompanhar a jornada deles, a resposta surja — não como certeza, mas como esperança.

Bandido é um cachorro sem raça especificada, mas aparenta ser um bull terrier ou algo semelhante. Ele é o líder da equipe, um rastreador e perito em combate corpo a corpo. Ele é o mais “humano” dos três, no sentido de empatia e lealdade. Sua fala é marcada por frases como “BOM CÃO?”, revelando sua busca constante por aprovação, carinho e identidade. Ele quer saber se ainda é um bom menino, mesmo depois de ser transformado numa arma. Seu comportamento sugere uma dor interior silenciosa: ele ainda acredita que pertence a um lar, que há um dono esperando por ele — mesmo depois de ser usado e descartado pelo exército. Bandido representa a fidelidade traída e o conflito entre a natureza amorosa do animal e a função assassina imposta a ele. É o personagem que mais expressa consciência e dúvida existencial.

Remendo é frio, lógico, desconfiado, mas também extremamente protetor. Fala de forma rápida, calculada, e muitas vezes desdenha da ingenuidade de Bandido. Mas ele é quem mais entende o horror da situação em que estão presos. Ele representa a independência e desconfiança, características clássicas associadas aos gatos, mas também o trauma e a hipervigilância. Remendo sabe que não existe mais “lar”. Para ele, a sobrevivência é a única linguagem que resta. No fundo, ele protege os outros dois mesmo sem admitir — é sua forma de afeto. Ele é designado para assassinatos silenciosos, infiltração, espionagem.

Pirata é um coelho e é o mais inocente e infantil do trio. Sua fala é quebrada, limitada a palavras como “CORRA!” ou “MAU?”. Ele não entende completamente o que está acontecendo e vive em estado de medo constante. Pirata simboliza a inocência sacrificada, o ser vivo reduzido a uma arma mesmo sem jamais ter sido agressivo por natureza. Ele é a alma mais frágil do grupo, aquele que mais sofre com a violência ao redor sem compreender totalmente o motivo. Sua especialidade é sabotagem, explosivos, reconhecimento.

A primeira coisa que salta aos olhos em “WE3” é que não estamos diante de uma arte tradicional. Frank Quitely não apenas ilustra o roteiro de Morrison: ele desenha a dor, o caos e a esperança com a precisão de um cirurgião e a sensibilidade de um poeta visual.

Várias páginas de “WE3” usam quadros múltiplos, pequenos, repetitivos, desconectados. Não é por estética. É uma tentativa de simular a percepção animal: fragmentada, sensorial, baseada em estímulos rápidos — som, movimento, cheiro. Não se trata de ver o mundo como um humano veria um cachorro; trata-se de ver o mundo como um cachorro modificado veria tudo em estado de ameaça ou desejo.

Exemplo marcante: cenas em que Bandido ou Remendo analisam o ambiente — há dezenas de quadros pequenos que formam um “scan” da realidade. O tempo desacelera. O instante se prolonga. O olhar se torna máquina.

Quitely transforma a violência em poesia dissonante. Há cortes rápidos, vísceras, explosões — mas tudo está coreografado como se fosse uma dança macabra. Em uma só página, vemos múltiplos estágios de uma morte em quadros sequenciais e não-lineares. A vítima já caiu antes mesmo de entender o que aconteceu. O leitor vê tudo ao mesmo tempo: o instante da decisão, o impacto, a consequência.

A estrutura da página colapsa. Painéis sobrepostos, linhas diagonais, foco simultâneo em várias ações — é o colapso da ordem em forma gráfica. Isso cria um tipo de horror que não vem só da imagem, mas da impossibilidade de acompanhá-la racionalmente.

Há momentos de silêncio absoluto em “WE3“, em que a narrativa pausa — e Quitely usa simetria, enquadramento e posicionamento geométrico para induzir contemplação. Isso é particularmente forte no final, quando os animais finalmente param de fugir. Os quadros “respiram”. As margens se limpam. O olhar do leitor, antes bombardeado por excesso, agora encontra espaço vazio — e nesse espaço, algo novo pode nascer. É um gesto visual poderoso: o caos gráfico dá lugar à serenidade gráfica. A arte nos diz, sem palavras, que o horror passou — mas deixou marcas.

As armaduras dos animais são monstruosas e trágicas. Seus corpos se fundem com fios, tubos, metais. Mas Quitely evita a estética do cyborg tradicional — ele desenha com traços orgânicos, quase dolorosos, como se os implantes estivessem em constante rejeição. O leitor sente que o corpo está sendo invadido o tempo todo, não só pelos cabos, mas pela função que lhes foi imposta. Essa biomecânica gráfica é essencial para gerar empatia: os animais não são máquinas com emoções — são emoções presas em máquinas.

Os rostos dos animais são o centro da arte de Quitely. Mesmo com equipamentos cobrindo boa parte de suas feições, os olhos — sempre os olhos — olham de volta para o leitor. A dor está lá. A confusão. O medo. O resquício de afeto.

Um close nos olhos de Bandido transmite mais do que qualquer balão de fala. É ali que a HQ atinge sua maior força: no momento em que o leitor não lê mais uma história — mas vê uma vida pedindo para não ser descartada.

Frank Quitely constrói, em “WE3“, um estilo que recusa a neutralidade visual. Cada linha carrega intenção narrativa. Cada painel, uma escolha ética. E essa escolha é clara: colocar o leitor dentro da pele, da carne e da consciência desses animais. A violência não é estética. É protesto. A beleza não é alívio. É contraste. A arte não é ilustração. É linguagem. E quando Bandido pergunta “CASA?”, é a arte que responde — sem palavras, com um olhar, com um espaço em branco, com um horizonte limpo.

Não há catarse no fim de “WE3“. Não há vingança, nem grande lição. Há um gesto: um homem silencioso que acolhe. Um novo tipo de lar. Bandido ainda pergunta. Remendo ainda desconfia. Pirata ainda teme. Mas agora eles existem fora do sistema. Não é um final feliz. É um final possível. Um canto sussurrado contra o ruído das armas.

Entre as páginas rápidas e a ação cinematográfica, “WE3” permanece como uma obra de resistência. Uma resistência à linguagem, à obediência, à lógica do uso. Morrison não nos pede lágrimas fáceis. Ele nos obriga a olhar. E Quitely nos obriga a sentir.

No fim das contas, “WE3” é uma fábula cruel, mas também um grito de compaixão. Ela fala sobre o que nos torna vivos: o medo, o instinto, o desejo de pertencer e de ser amado. E diz que, mesmo mutilados, feridos, transformados em armas, ainda resta algo dentro de nós que pede cuidado e silêncio.
Os animais de Morrison e Quitely nunca pediram para ser heróis — só queriam existir.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Grant Morrison
ILUSTRAÇÕES: Frank Quitely
TRADUÇÃO: Levi Trindade
EDITORA: Panini
PUBLICAÇÃO: 2004/2005 (primeira) 2025 atual
PÁGINAS: 148
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