Clarice é uma jovem tatuadora que não consegue se tatuar. Há algo de misterioso no fato de a tinta não se fixar em sua pele. Um dia, conhece Lívia, uma restauradora de livros, e desse encontro nasce uma relação que mudará a vida de ambas. Em um universo feito de tinta e símbolos, repleto de referências (de Emil Ferris a Virginia Woolf, de René Magritte a Ana Cristina César, de Carl G. Jung a Paul B. Preciado), Aline Zouvi tece uma trama fascinante em que desejo, sexualidade e autodescoberta se conectam aos mistérios (e possibilidades) do corpo e do inconsciente. É uma história de amor contada com frescor e vitalidade. Afinal, mesmo que não saibamos exatamente qual o caminho, guiados pelo traço destemido e cheio de ternura de Zouvi, estaremos protegidos.

Essa é a sinopse.

Começo esta resenha confessando que foi um desafio enorme escrever sobre “Pigmento”. Foram quatro dias (após encerrar a leitura) de quase martírio mental (e não por falta de vontade). Veja bem, estou conscientemente procrastinando minha dissertação de mestrado (que minha orientadora nunca leia isso), mas só o ato de pensar no que escrever sobre este quadrinho foi quase tão exaustivo quanto me preparar para escrever meu capítulo teórico. Só de imaginar o esforço necessário para justificar minhas opiniões, eu já sentia vontade de adiar a escrita.

Enquanto lia a obra, questionei se o problema estava comigo. Talvez fosse meu humor. Talvez eu estivesse em um momento ruim (não estou, mas gosto de culpar algo). E sabe o que é pior (ou melhor)? A edição é linda demais! Simplesmente impecável. A capa, com traços em relevo, é bonita pra caramba. O papel é de alta qualidade, com a marca FSC garantindo que a madeira utilizada veio de florestas gerenciadas de forma sustentável. Tudo na produção do livro grita qualidade. Percebeu, né? Estou evitando o elefante no quarto. Na verdade, por um momento, falar sobre a qualidade do material da capa me pareceu mais empolgante do que discutir o conteúdo.

Durante quatro dias, fiquei pensando em como descrever minha experiência com “Pigmento” e cheguei… a lugar nenhum! Aí tive um estalo. Um dia após acordar meu irmão comentou comigo que achava que tinha tido um sonho, mas não lembrava de nada. E foi aí que entendi (!) é exatamente assim que me sinto em relação a esse quadrinho. Ler “Pigmento” foi como tentar lembrar um sonho. No início, há uma sensação de familiaridade, mas, quanto mais você tenta reconstruí-lo, menos consegue. Aos poucos, a lembrança desaparece, e você nem se importa mais. Espero que isso não tenha soado ríspido, não foi minha intenção.

O mais frustrante é que abri o livro com boas expectativas, cheia de animação. Não sei nem por que usei o “até”, porque, sinceramente, eu gosto de quase tudo. Juro. Mas aqui, algo não se conectou. Quando vi nos agradecimentos que a Laerte leu e amou, tive uma crise: “Preciso ler de novo!”. Risadinhas. Então, claro, fiz o que qualquer pessoa com tempo livre no recesso faria: decidi reler. Mas aí veio a preguiça. Abri o livro de novo, encarei a primeira página e pensei: “Ah, deixa pra lá”.

Eu gosto da Laerte, de verdade. Piratas do Tietê tem um lugar especial no meu coração. Para quem acompanha as redes da Laerte ou sua trajetória artística, fica claro como seus traços, aparentemente simples, se tornam ferramentas para desafiar convenções e… Eu estava falando sobre “Pigmento”, né? Quase me perdi de novo. No quadrinho, isso também acontece: algo se perde a cada capítulo.

A arte da Aline Zouvi é visualmente agradável, mas me fez questionar: até que ponto o impacto visual é suficiente para sustentar uma narrativa? A professora brasileira Lúcia Santaella aponta que a interpretação de imagens requer elementos racionais e emotivos que, juntos, criam uma experiência significativa. Contudo, em “Pigmento”, essa experiência muitas vezes me pareceu fragmentada. Penso que a narrativa, como um todo, parece desconexa. A cada capítulo, algo se perde. Não há continuidade que permita ao leitor se conectar profundamente com os acontecimentos.

A trama de Clarice, uma tatuadora incapaz de manter as próprias tatuagens, é uma metáfora interessante sobre nossa relação com arte, memória e identidade. Mas, na execução, ela tropeça. É como se tudo estivesse lá, mas faltasse aquele toque final que realmente nos prende. O relacionamento amoroso entre Clarice e Lívia, que tinha potencial para ser intenso e transformador, carece de tempero também.

As personagens estão ali, mas não me provocaram empatia, raiva ou mesmo curiosidade. Seus diálogos tropeçam na falta de ritmo. Não fluem, não prendem. A tentativa da autora de não deixá-las superficiais resultou em outra armadilha: elas transbordam características, mas nenhuma delas é suficiente para torná-las memoráveis.

A história flerta com temas importantes, mas nunca se aprofunda. Carl Jung, citado na obra, define os símbolos como pontes entre o consciente e o inconsciente. Eles têm o poder de transformar, de tocar algo profundamente. Mas, em “Pigmento”, senti que os símbolos aparecem mais como adereços do que como elementos centrais.

Sobre excessos, lembro de algo que o Baniwa, um professor indígena cujo trabalho acompanho, escreveu: “Todos os dias e a todo instante somos constantemente bombardeados por uma torrente de imagens que vagueiam e impactam o nosso imaginário e cotidiano de diferentes maneiras. O excesso nos leva à desatenção e à falta de criticidade com aquilo que nos chega”. E acho que “Pigmento” peca justamente por isso, uma sobrecarga de símbolos, reflexões e camadas que, em vez de criar conexão, afastam.

A obra parece presa em uma necessidade de impressionar com suas referências literárias, cinematográficas e filosóficas. Quando estava pensando no que escrever, até considerei listar todas elas nesta resenha, mas percebi que seria um esforço maior do que minha experiência com o livro. É um pouco frustrante porque “Pigmento” poderia ser muito mais.

Charles Sanders Peirce, meu filósofo americano de estimação, dizia que nenhuma ideia se desenvolve apenas por meio de símbolos. Nem mesmo o raciocínio matemático pode dispensar outras formas de signos. E talvez seja esse o meu problema com esse quadrinho: ele apresenta uma abundância de símbolos e mensagens, mas nada se solidifica. Tudo parece como uma ideia que ainda busca se concretizar.

O querido Sigmund Freud falava sobre como nossas identidades e desejos são formados por processos simbólicos do inconsciente, que funcionam em uma lógica diferente da razão. Essa ideia poderia ter sido explorada de forma incrível aqui, mas não foi. Quanto mais escrevo, mais me sinto tentando justificar algo que talvez nem precise de justificativa: meu gosto.

Não gostei da forma como as reflexões foram inseridas. Não me impactou como acredito que poderia impactar, por exemplo, um tatuador ou algum pesquisador de símbolos nórdicos. Para uma obra que fala de tinta e símbolos, isso me parece uma ironia. Acho que meu repertório pessoal e minha relação com arte e abstrações não foram suficientes para criar apego emocional à obra. E tudo bem, não precisa ser para mim. Se alguém me perguntar sobre o livro, direi o seguinte: “Leia. Talvez você encontre algo que eu não consegui”.

Ao reler esta resenha, percebo que me distanciei de abordar aspectos mais específicos da história, optando por focar nas reflexões que ela provocou. Com certa ousadia, admito que construí uma argumentação superficial, citando autores sem explorá-los a fundo – algo que, ironicamente, reflete a maneira como “Pigmento” apresenta suas próprias referências. Talvez, no fim das contas, eu tenha sido até mais condescendente do que pretendia.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Aline Zouvi
ILUSTRAÇÃO: Aline Zouvi, Alissa Queiroz (capa)
EDITORA: Quadrinhos na Cia
PUBLICAÇÃO: 2024
PÁGINAS: 256
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