Em Buenos Aires, no final dos anos 1950, uma misteriosa e mortal nevasca começa a cair sobre a cidade, matando instantaneamente qualquer pessoa que entre em contato com os flocos de neve. Juan Salvo, um homem comum e dedicado à família, está em casa jogando cartas com seus amigos Favalli, Lucas e Polski. Ao perceberem o perigo, eles selam a casa para se protegerem.

Utilizando trajes improvisados feitos com materiais isolantes, o grupo decide explorar a situação e buscar suprimentos. Ao saírem, descobrem que a nevasca é apenas o prelúdio de uma invasão alienígena em larga escala. Diferentes tipos de criaturas extraterrestres e máquinas de guerra estão devastando a cidade sob o comando de uma força maior.

Confrontados com a destruição e o caos, Juan Salvo e seus companheiros unem-se a outros sobreviventes e formam uma resistência improvisada. Juntos, eles enfrentam diversos perigos, desde confrontos diretos com os invasores até dilemas morais e perdas pessoais devastadoras. A luta pela sobrevivência torna-se uma jornada de coragem, solidariedade e sacrifício.

Quando “O Eternauta” foi publicado em 1957, a Argentina estava vivendo um momento delicado. A história em quadrinhos, criada por Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, conta uma história de invasão alienígena, mas também fala muito sobre o que estava acontecendo no país naquela época.

Dois anos antes, em 1955, a Argentina tinha passado por uma grande mudança. O presidente Juan Domingo Perón, que governava desde 1946, foi retirado do poder por um movimento que ficou conhecido como “Revolução Libertadora”. Perón tinha muitos apoiadores entre os trabalhadores por causa de suas políticas trabalhistas e nacionalistas, mas também tinha forte oposição da Igreja Católica, dos conservadores e de parte da classe média.

Quando Perón saiu do poder, o general Eduardo Lonardi assumiu prometendo paz entre os diferentes grupos políticos. Mas ele ficou pouco tempo no cargo e foi substituído pelo general Pedro Eugenio Aramburu, que tomou medidas bem mais severas: proibiu o partido de Perón e perseguiu seus seguidores.

Essa época deixou marcas profundas na Argentina. O país passou por vários golpes militares nos anos seguintes, e a sociedade ficou ainda mais dividida. Entender esse momento da história ajuda a compreender por que “O Eternauta” se tornou mais que uma simples história de ficção científica – ela fala sobre como as pessoas enfrentam mudanças difíceis e inesperadas em suas vidas.

Ou seja, “O Eternauta” usa a ficção científica para falar sobre problemas reais que a Argentina enfrentava. A neve mortal e os alienígenas que invadem Buenos Aires representam as forças que ameaçavam a liberdade dos argentinos na época, incluindo a influência de países estrangeiros durante a Guerra Fria.

Na história, pessoas comuns se juntam para enfrentar o perigo, mostrando como é importante a união quando tempos difíceis chegam. É interessante notar que as autoridades e militares quase não aparecem na história, ou quando aparecem, não conseguem ajudar muito – isso mostra como muitos argentinos não confiavam mais nas instituições do governo.

Juan Salvo e seus amigos são pessoas normais, como você e eu, não super-heróis. Eles mostram que qualquer pessoa pode fazer a diferença quando se une a outros por uma causa importante. A história sugere que não precisamos esperar por um grande líder para resolver nossos problemas – podemos agir juntos.

A forma como os militares são retratados na história, muitas vezes atrapalhando mais do que ajudando, critica como as forças armadas governavam o país na época. A mensagem é que as pessoas comuns, quando trabalham juntas, podem ser mais eficientes em proteger seus direitos do que as autoridades.

O clima de medo que existe na história, com os personagens sempre preocupados com a neve mortal que não podem ver, lembra como as pessoas viviam durante os governos autoritários. Naquela época, as pessoas tinham medo de falar o que pensavam e não sabiam em quem podiam confiar.

Juan Salvo acaba separado de sua família, sempre tentando encontrá-los. Isso faz pensar nas famílias argentinas que foram separadas durante as ditaduras militares, quando muitas pessoas desapareceram sem deixar rastro.

O Eternauta” trouxe algo novo para os quadrinhos argentinos em 1957: uma história de ficção científica que se passava em Buenos Aires. Os leitores gostaram de ver pessoas comuns de sua cidade enfrentando uma invasão alienígena. Os desenhos de Francisco Solano López, muito detalhados, ajudaram a criar o clima de tensão da história.

Na época do lançamento, a Argentina estava sob governo militar e havia censura, embora menos intensa do que seria nas décadas seguintes. Oesterheld usou símbolos e metáforas para falar de temas políticos sem chamar a atenção das autoridades. Muitos leitores liam a história apenas como uma aventura de ficção científica, sem perceber essas críticas mais profundas.

Mesmo os críticos e intelectuais que notaram as mensagens políticas na história evitavam falar sobre isso abertamente, por causa da situação do país. Foi só com o tempo, especialmente durante as ditaduras militares das décadas de 1960 e 1970, que as pessoas começaram a ver mais claramente as críticas sociais presentes na história.

Em 1969, Oesterheld escreveu uma continuação de “O Eternauta”, desta vez com críticas mais diretas ao governo. Isso fez com que as pessoas olhassem de novo para a primeira edição e encontrassem nela mais significados políticos. A história acabou se tornando importante não só para os quadrinhos, mas também para a literatura latino-americana em geral.

Em “O Eternauta”, conhecemos personagens que parecem pessoas que poderíamos encontrar em nossa vida. Juan Salvo, o personagem principal, é um pai de família que acaba se tornando um líder quando a cidade é invadida. Ao seu lado está Elena, sua esposa, que mostra muita força ao ajudar a manter a família unida durante a crise. A pequena Martita, filha do casal, nos faz pensar em como eventos tão graves afetam as crianças. Através dela, vemos como a invasão mudou a vida até dos mais jovens.

Entre os amigos que ajudam Juan, temos Favalli, um professor de física que usa seu conhecimento científico para entender o que está acontecendo e buscar soluções. Há também Franco, um engenheiro que sempre encontra formas práticas de resolver os problemas que surgem. O jovem Lucas se junta ao grupo trazendo coragem e energia, mesmo que às vezes seja um pouco precipitado em suas ações. Sua presença mostra como os jovens podem ser importantes em momentos de crise. Existem vários outros, cada um deles trazendo algo diferente para a história, mostrando como pessoas comuns, com suas próprias habilidades e conhecimentos, podem se unir e fazer a diferença.

O Eternauta”, mesmo sendo uma história importante, tem seus pontos fracos. Em alguns momentos, a história fica mais devagar, com trechos longos que cansam. Há muitas explicações científicas e estratégicas sem qualquer necessidade que acabam interrompendo o ritmo e prolongando a história além do indicado.

Os desenhos de Solano López são bem feitos e detalhados, mas seguem um estilo comum para a época, sem grandes inovações visuais. A história também segue uma linha simples, sem muitas surpresas ou tramas paralelas.

Uma grande decepção é como as mulheres são retratadas. Elena e Martita são praticamente as únicas personagens femininas entre dezenas de homens, e suas participações são pequenas, limitadas e estereotipadas. Além disso, a história mostra pouca diversidade entre os personagens, não representando bem como era a sociedade argentina da época.

Claro que “O Eternauta” foi criado em uma época em que a sociedade pensava de forma muito diferente sobre gênero e diversidade. Mesmo que hoje possamos notar essas limitações na história, isso não diminui o talento e a coragem de Oesterheld e Solano López. Em uma época de censura e repressão política, eles criaram uma história que falava sobre resistência e união usando a ficção científica de forma criativa.

Entender o contexto histórico nos ajuda a ver tanto os pontos fortes quanto as limitações da obra. É possível reconhecer o valor e a importância de “O Eternauta” e, ao mesmo tempo, refletir sobre como algumas questões poderiam ter sido tratadas de forma muito diferente. Mas, pessoalmente, sinto que é impossível não ficar relativamente decepcionado com várias construções.

Uma outra crítica minha é em relação aos vilões. “O Eternauta” apresenta diferentes tipos de vilões alienígenas. No topo da hierarquia estão os “Eles”, que nunca aparecem fisicamente na história, mas controlam tudo através do medo. Logo abaixo estão os “Mãos”, criaturas parecidas com humanos, mas com mãos grandes e muitos dedos, que comandam a invasão. As tropas de ataque incluem os “Cascudos”, que parecem insetos blindados, e os “Gordos”, criaturas enormes usadas para ataques mais violentos.

O design desses invasores passa a ideia de uma força opressora distante e fria. Enquanto os humanos lutam usando criatividade e ajuda mútua, os alienígenas agem de forma mecânica e sem emoção, apenas seguindo ordens dos “Eles” para conquistar a Terra.

Apesar de terem uma aparência marcante – afinal, ver um ser com mais de 10 dedos em cada mão é algo perturbador – os vilões não são muito desenvolvidos na história. Não sabemos por que os “Eles” querem invadir a Terra, já que nunca aparecem nem explicam seus motivos. Isso faz com que a invasão pareça simples demais.

Mesmo sendo uma metáfora para o autoritarismo, a representação dos vilões acaba ficando muito básica. Falta um antagonista principal com objetivos mais claros. Os vilões acabam servindo apenas para causar medo e destruição, sem uma história mais profunda por trás de suas ações.

Quando analiso o final de “O Eternauta”, especialmente a parte da viagem no tempo e como Juan Salvo se torna um viajante eterno, encontro alguns problemas que me incomodam. Sinto que faltam explicações importantes sobre as motivações dos vilões e sobre como toda essa parte final se encaixa no resto da história.

Me questiono, por exemplo, sobre a máquina do tempo dos alienígenas. Não entendo bem como funciona essa ideia de um Juan do futuro substituir o Juan do passado apenas por se encontrarem – para mim, isso fica meio solto na história. Toda essa parte de viagem no tempo e entre dimensões acaba parecendo meio forçada para mim.

O final me deixa com uma sensação estranha, como se a história estivesse girando em círculos sem realmente chegar a lugar nenhum. Entendo que essa ambiguidade pode ter sido proposital, talvez para que cada leitor faça sua própria interpretação. Mas quando penso na história como um todo, para mim, é como se a história tivesse construído um mundo com certas regras e lógica durante todo o caminho, mas no final essas regras ficassem meio de lado apenas para criar uma reviravolta e deixar o sensação de continuação.

O Eternauta”, apenas como uma história de ficção científica, sem pensar no contexto político da época, perde a parte do que a torna especial. Vejo uma história sobre uma invasão alienígena em Buenos Aires, onde pessoas comuns lutam para sobreviver em uma cidade devastada. É uma boa história, sim, mas quando a olho apenas por esse ângulo, não encontro elementos que a tornem verdadeiramente única dentro do gênero de ficção científica.

Me pergunto como a obra seria recebida se tivesse sido publicada em um momento mais tranquilo da história argentina, sem todas aquelas tensões políticas e sociais dos anos 1950. É interessante notar como o momento histórico em que uma obra é criada pode transformá-la em algo maior do que sua história literal sugere. Quando leio “O Eternauta” apenas como uma aventura de ficção científica, vejo uma história competente e bem executada. Apenas isso.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Héctor Oesterheld
ILUSTRAÇÕES: Francisco Solano López
TRADUÇÃO: Letícia Ribeiro Carvalho
EDITORA: Pipoca & Nanquim
PUBLICAÇÃO: 2024
PÁGINAS: 372
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