Eva tem a vida perfeita. Seu marido é um jovem advogado em ascensão. Suas filhas gêmeas são lindas, inteligentes e saudáveis. Seu trabalho, a arte reborn, é um sucesso na Internet. À sua volta, tudo está à mão: o Blue Paradise, condomínio fechado de classe média-alta na Barra da Tijuca, oferece todo tipo de serviço para que ela não precise sair do conforto de seu lar. Eva tem a vida perfeita ― até descobrir que está grávida e seu mundo virar de cabeça para baixo.

A linha narrativa de UMA FAMÍLIA FELIZ é tecida com uma série de nós que abordam temas significativos e sensíveis. Ao longo da trama, certos assuntos emergem abruptamente, interrompendo o fluxo narrativo por instantes. Esses episódios, aparentemente desconexos do restante da história, surgem para formar um laço momentâneo e, em seguida, a narrativa retoma seu curso. Esse mecanismo introduz uma descontinuidade que, inicialmente, parece sugerir a introdução de elementos misteriosos, dramáticos ou indícios cruciais para a compreensão dos eventos. No entanto, à medida que a história avança, torna-se evidente que esses desvios não carregam uma relevância substancial para o enredo principal. Eles são, por fim, elementos aleatórios que não contribuem significativamente para o desenvolvimento da trama nem proporcionam um maior entendimento dos temas abordados nos nós.

Eva e Vicente são retratados como personagens dinâmicos em sua narrativa, significando que eles passam por mudanças de modo a se alinhar com as intenções do autor. Vicente é inicialmente apresentado como um pai ideal, atencioso, dedicado, esforçado e um bom amante, mas sua persona muda abruptamente sem explicação clara. De forma similar, Eva é introduzida como uma mulher que anseia pela maternidade, mas, após engravidar, se vê assustada e, com o nascimento do filho, desenvolve aversão tanto à maternidade quanto à criança, embora essa atitude também mude rapidamente no capítulo seguinte. Essas transformações dos personagens parecem ocorrer subitamente, sem um desenvolvimento lógico ou razões explícitas, o que dá a impressão de que essas mudanças são forçadas dentro da trama. Além disso, a personagem que se revela como a vilã da história não tem suas motivações ou métodos claramente explicados. Ela simplesmente é descoberta como a antagonista, sem que sejam fornecidos detalhes sobre o porquê de suas ações ou como ela conseguiu realizá-las. Essa revelação ocorre de forma abrupta e sem uma contextualização adequada.

Vou compartilhar alguns exemplos que, por natureza, incluirão spoilers. No entanto, asseguro que não vou revelar a resolução do mistério central nem os detalhes do clímax do livro.

Em uma parte de UMA FAMÍLIA FELIZ , a personagem principal, Eva, se depara com seu filho, Lucas, recém nascido, com um machucado na barriga. Preocupada, ela pergunta à funcionária que limpa seu apartamento se ela tem alguma informação sobre o ocorrido. Inesperadamente, a reação da moça é de extrema indignação: ela acusa Eva de racismo, insulta-a gravemente e sai, jurando nunca mais voltar. Curiosamente, o livro não oferece mais nenhum contexto sobre essa personagem, não explora a dinâmica entre ela e Eva, nem apresenta qualquer elemento anterior que sugira racismo ou justifique tal acusação. Essa cena permanece isolada, sem contribuir para uma discussão mais ampla ou entendimento profundo dos personagens e suas relações, deixando um vácuo narrativo quanto aos motivos e antecedentes desse confronto.

Solange, que vive no mesmo condomínio que Eva, revela em confidência que está envolvida em um caso extraconjugal mantendo mistério sobre o nome do amante. Essa confissão surge em meio a outros acontecimentos que impulsionam a trama, insinuando que o amante poderia ser o marido de Eva. Essa sugestão cria uma tensão e uma expectativa de que talvez exista uma ligação significativa entre os eventos. Contudo, conforme a história se desenrola, fica claro que essa suspeita é infundada. Os relatos de Solange acabam por ser digressões sem vínculos reais com o enredo principal, permanecendo na narrativa sem desempenhar um papel relevante ou adicionar profundidade aos personagens ou à história. Eles se apresentam como elementos soltos, que não conduzem a uma maior compreensão dos acontecimentos ou das dinâmicas entre os personagens.

Numa outra passagem do livro, Eva experimenta uma sensação de perseguição e percebe que um carro, uma picape, a segue à distância. A motorista é uma mulher que lembra Alice, a falecida ex-esposa de seu marido, Vicente. Esse acontecimento desperta curiosidade sobre o passado de Vicente e a possibilidade de haver algo oculto na sua história. No entanto, conforme a narrativa avança, essa mulher misteriosa não é mais mencionada, e o motivo de sua perseguição a Eva não é esclarecido. Esse episódio poderia ter sido explorado para aprofundar a psique de Eva, talvez indicando alguma instabilidade emocional ou psicológica, mas essa ideia se perde, pois Eva não demonstra ter alucinações ou distúrbios similares em outros momentos da história. Assim, o incidente permanece como um fragmento desconexo, sem contribuição clara para o desenvolvimento da trama ou para a complexidade dos personagens.

Em outro segmento, Eva e Vicente são chamados à escola de suas filhas devido ao uso inapropriado de linguagem pelas crianças. Esse incidente ocorre logo após Lucas, o filho do casal, aparecer com um ferimento na barriga. Naturalmente, essa convocação para uma reunião na escola gera uma expectativa de que algo significativo será revelado, talvez um evento que estabeleça uma conexão com outros aspectos da trama, intensifique o mistério ou ofereça alguma pista crucial. Contudo, ao final da reunião, percebe-se que nenhum desses potenciais desenvolvimentos se concretiza. O episódio termina sem agregar elementos novos ou significativos à narrativa, transformando-se em mais um enigma que não contribui para o avanço da história ou para o aprofundamento do entendimento dos personagens e de suas circunstâncias.

As gêmeas de dez anos, Angela e Sara, são parte do que inicialmente parece ser um mistério na trama de UMA FAMÍLIA FELIZ. A narrativa começa de maneira intrigante ao retratar o medo de Eva ao descobrir sua gravidez, o que já causa estranhamento, considerando que ela e Vicente já têm duas filhas. Esse detalhe rapidamente leva à conclusão de que Eva não é a mãe biológica das meninas. Apesar disso, a história continua a ser contada como se houvesse um grande mistério envolvido. Somente no terceiro capítulo é que a narrativa esclarece, de forma um tanto anticlimática, que as gêmeas são filhas de Vicente de um relacionamento anterior. Esse fato, apresentado tardiamente como uma revelação, perde o impacto devido à sua previsibilidade desde o início.

Os exemplos mencionados ilustram como a narrativa de UMA FAMÍLIA FELIZ é permeada por eventos que parecem não ter relevância e servem apenas para prolongar a trama de forma desnecessária. Claro, em muitas obras, os autores inserem episódios cotidianos para enriquecer a narrativa, conferindo autenticidade aos personagens e ao cenário em que estão inseridos. Tais momentos, mesmo que não avancem diretamente a trama, podem revelar aspectos significativos dos personagens ou do contexto em que vivem. No entanto, em UMA FAMÍLIA FELIZ, esses momentos se apresentam como desvinculados e sem propósito, levantando questionamentos que logo se mostram sem respostas ou relevância, pois não constituem questões autênticas dentro da estrutura da história.

Outra questão problemática na obra UMA FAMÍLIA FELIZ é a aparente dificuldade em solucionar conflitos estabelecidos. Na história, surgem elementos de mistério, como as inexplicáveis lesões que aparecem em Lucas, o filho recém-nascido de Eva, e nas duas meninas, Angela e Sara. Curiosamente, esses incidentes coincidem com episódios em que Eva perde a consciência e dorme profundamente por horas, acordando somente após os eventos ocorrerem. Esse padrão se repete até no ponto culminante da trama, onde Eva, armada com evidências em vídeo para confrontar o agressor, subitamente adormece, permitindo que o culpado destrua as provas. Essas perdas de consciência, ocorrendo exclusivamente em momentos decisivos, não recebem nenhuma explicação ao longo da narrativa, sugerindo uma possível falta de engajamento ou dificuldade em desenvolver uma resolução coerente e convincente para os mistérios apresentados, optando, em vez disso, por uma solução que parece arbitrariamente conveniente.

Além dos convenientes e repetitivos eventos que ocorrem sempre que a trama necessita de um impulso, UMA FAMÍLIA FELIZ sofre de inconsistências e ausência de explicações. A morte de Alice, ex-esposa de Vicente, é envolta em mistério, mas permanece inexplicada, mesmo após a revelação da antagonista da história. Há também a questão dos medicamentos que Vicente dá a Eva, cujos propósitos ou naturezas nunca são esclarecidos. Da mesma forma, as duas meninas sofrem agressões e mentem sobre a identidade do agressor, mas o motivo dessas mentiras não é revelado. Além disso, o passado traumático de Eva com sua mãe é apenas superficialmente abordado, sendo o pouco que sabemos revelado através de um diário que a própria Eva lê, uma maneira peculiar de exposição da narrativa. E estes são apenas alguns dos muitos pontos não resolvidos ou mal explorados ao longo do livro.

Até agora, foquei em questões de estrutura, continuidade e conclusão ao falar sobre UMA FAMÍLIA FELIZ. Mas esses não são seus únicos problemas. Como destaquei anteriormente, a narrativa está repleta de subtramas que abordam questões sociais críticas como racismo, preconceito, exclusão social, estruturas de poder e desigualdade, depressão pós-parto, consequências do cancelamento nas redes sociais, pedofilia e até estupro. Esses temas surgem em momentos isolados, sem vínculo claro com a história central. Infelizmente, são abandonados sem um aprofundamento ou discussão adequada, muitas vezes utilizados apenas como elementos de fundo, o que minimiza a importância dessas questões.

Quando temas importantes e delicados são abordados de forma superficial em uma obra literária, isso pode dar a impressão de que os temas são utilizados meramente como adornos ou para provocar choque, sem um engajamento verdadeiro com a complexidade e seriedade dessas questões. Tal abordagem pode ser percebida como um desrespeito às pessoas afetadas por essas realidades, pois diminui a importância de suas experiências e desafios. Também pode revelar uma falta de compreensão ou de investigação aprofundada sobre os temas, insinuando falta de conhecimento profundo sobre os assuntos tratados. Além disso, essa superficialidade pode refletir uma desconexão ou insensibilidade com questões críticas e humanas.

Eu poderia explorar mais questões, como a predominância de personagens brancos e héteros em UMA FAMÍLIA FELIZ, onde a única personagem negra é uma diarista, mas isso alongaria demais nosso debate. Porém, é essencial abordar um ponto crítico que se repete e que muitos leitores têm destacado: nas obras do autor, é comum que as personagens femininas sejam expostas a abusos, agressões e tortura. Essa recorrência gera questionamentos sobre como o autor enxerga as mulheres em seus livros. Em UMA FAMÍLIA FELIZ, essa tendência se acentua, com todas as personagens femininas frequentemente retratadas de maneira negativa, descritas com atributos pejorativos, falhas de caráter, ou como indivíduos loucos, fofoqueiros, infiéis, violentos ou até assassinos. Em contraste, os personagens masculinos tendem a ser mostrados como lógicos, responsáveis, laboriosos e, às vezes, até como vítimas.

A escrita e a representação de personagens em literatura carregam uma responsabilidade significativa, especialmente quando se trata de temas sensíveis como raça e gênero. A maneira como esses assuntos são tratados pode revelar as perspectivas do autor e ter um impacto considerável nos leitores, sublinhando a necessidade de uma abordagem cuidadosa e pensada. UMA FAMÍLIA FELIZ, portanto, acaba sendo criticado por sua escrita falha, personagens inconsistentes e mal desenvolvidos, eventos que não se conectam e resoluções forçadas que carecem de lógica. Para agravar a situação, a essência da trama e seu desfecho parecem ser fortemente inspirados em outra obra, especificamente o filme CASO 39, estrelado por Renée Zellweger e Bradley Cooper. Inclusive, a última página do livro é praticamente uma transcrição cena por cena do final desse filme.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Raphael Montes
EDITORA: Companhia das Letras
PUBLICAÇÃO: 2024
PÁGINAS: 352
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