Publicada originalmente em 2006, FUN HOME rapidamente se tornou uma referência no mundo dos quadrinhos e na literatura contemporânea por sua narrativa emotiva, complexa e profundamente pessoal. A história central gira em torno do relacionamento entre Alison e seu pai, Bruce Bechdel, um homem misterioso e complicado que era professor de inglês, dono de uma funerária e que tinha uma profunda paixão pelos livros e pela restauração de casas históricas. Ao longo da obra, a autora explora as nuances e ambiguidades da relação entre eles, principalmente após Alison perceber e lidar com sua própria sexualidade.

A narrativa é estruturada em dois eixos principais: o primeiro apresenta Alison como uma adulta que reflete sobre seu passado, e o segundo retrata sua infância e adolescência. Essa abordagem permite que a história seja contada de maneira intercalada, conectando as experiências de Alison adulta e as memórias de sua juventude, proporcionando uma compreensão mais profunda das experiências que moldaram sua vida.

FUN HOME é também uma reflexão sobre a identidade sexual de Alison e a de seu pai. A autora revela, de maneira corajosa e aberta, sua própria jornada de auto aceitação e as complexidades de crescer em uma pequena cidade dos Estados Unidos. A descoberta de sua homossexualidade é retratada de maneira sensível e honesta, o que permite ao leitor vivenciar suas alegrias e dores durante o processo.

Outro aspecto notável da obra é a abordagem da sexualidade de Bruce Bechdel, pai de Alison, que era homossexual e viveu em uma pequena cidade conservadora durante esse período. Uma época e local em que ser gay era extremamente reprimido e até mesmo considerado ilegal. Alison revela a dificuldade de seu pai em aceitar sua própria orientação sexual, o que resultou em diversos conflitos internos e em uma vida de aparências e segredos. Em como eles enfrentaram os desafios de lidar com a homossexualidade de forma encoberta e como isso influenciou suas vidas e relacionamentos.

FUN HOME abrange principalmente as décadas de 1960, 1970 e 1980. Durante esse período, as leis e atitudes em relação aos homossexuais nos Estados Unidos eram muito diferentes das que temos hoje. A homossexualidade era amplamente estigmatizada e considerada ilegal em muitos estados.
Na década de 1960, a maioria dos estados tinha leis que criminalizavam a homossexualidade, considerando-a uma ofensa criminal. Essas leis, conhecidas como “leis de sodomia” ou “leis anti-sodomia”, variavam de estado para estado e podiam resultar em penas que iam desde multas até prisão. A homossexualidade era vista como uma doença mental pela Associação Americana de Psiquiatria até 1973, quando a associação removeu oficialmente a homossexualidade de sua lista de transtornos mentais.

Na década de 1970, com o início do movimento pelos direitos civis LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), houve um aumento na conscientização e na luta contra a discriminação e a criminalização da homossexualidade. O movimento ganhou força e visibilidade, com manifestações e protestos em todo o país.

Em 1986, ocorreu um acontecimento significativo no âmbito legal relacionado à homossexualidade com o caso Bowers v. Hardwick. A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por uma estreita margem, que as leis de sodomia não violavam a Constituição, efetivamente permitindo que os estados continuassem a criminalizar a homossexualidade. Essa decisão teve um impacto significativo nos direitos LGBT e só foi revertida em 2003, quando a Suprema Corte decidiu no caso Lawrence V. Texas que as leis de sodomia eram inconstitucionais e violavam o direito à privacidade.

Essa época foi marcada por uma grande discriminação e estigmatização dos indivíduos homossexuais, e muitas pessoas sentiam-se obrigadas a esconder suas identidades e relacionamentos por medo de represálias sociais, legais e até mesmo violência. Por conta disso, ou talvez não, Bruce mantém um casamento de aparências, com saídas e relacionamentos extra-conjugais, quase todos à vista dos filhos e da esposa. As crianças, ainda pequenas, pouco compreendem, e a esposa, que nunca chega a se expor para Alison, aceita de maneira conformada.

FUN HOME é uma obra rica em simbolismos e referências literárias, já que Alison Bechdel utiliza a literatura como um fio condutor para explorar os sentimentos e os relacionamentos dentro de sua família. Através de citações e alusões a obras literárias clássicas, a autora conecta a história pessoal de sua família com temas universais, como identidade, segredos e o papel da literatura como meio de compreensão e expressão de experiências humanas.

Alguns exemplos: Bruce é particularmente obcecado com a obra de James Joyce, especialmente ULISSES, considerado um dos romances mais complexos e desafiadores da literatura moderna. As referências a Joyce são recorrentes ao longo da obra, refletindo a busca de Bruce por um padrão literário elevado.

Outro autor mencionado é Marcel Proust, conhecido por sua obra monumental EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO. Alison discute como seu pai incentivou sua leitura de Proust e como ele apreciava a profundidade e a introspecção da obra do autor francês. Ela também faz referência ao famoso autor americano F. Scott Fitzgerald e sua obra O GRANDE GATSBY. Fitzgerald é considerado um ícone da literatura do século XX e suas histórias sobre a decadência da sociedade e a busca pelo sonho americano são abordadas sutilmente.

Alison cita a famosa frase de Oscar Wilde, autor e dramaturgo irlandês, sobre dizer a verdade com palavras bonitas e mostra como seu pai, Bruce, incorporava esse conceito em sua vida, escondendo sua verdadeira identidade sexual por trás de uma fachada respeitável. Bem como também faz referência ao famoso filósofo e escritor existencialista Albert Camus, conhecido por suas obras sobre o absurdo da vida e a busca por significado. Essas referências refletem a natureza filosófica da obra de Bechdel e como ela explora questões complexas de identidade e existência.

Essas são apenas algumas das referências literárias presentes em FUN HOME. Alison Bechdel utiliza essas citações e alusões a obras clássicas para enriquecer a narrativa, criar camadas adicionais de significado e estabelecer conexões entre a história pessoal de sua família e temas universais encontrados na literatura. Essas referências contribuem para tornar a obra uma leitura ainda mais rica e recompensadora para os amantes da literatura.

A arte de Alison Bechdel é cativante, com traços realistas e expressivos que capturam perfeitamente as emoções e os detalhes da narrativa. A escolha de tons acinzentados e sombreados reforça a atmosfera melancólica e introspectiva da história, transmitindo a complexidade emocional que permeia a vida da autora. Diversas passagens possuem uma enorme carga emotiva, realçando o que não é dito ou demonstrado, e em como essa falta afetou a vida de Alison.

Um exemplo do simbolismo e da carga emocional contida em poucos quadros ou curtas frases é quando Alison, ainda criança, absorve o prazer do banho que seu pai lhe dava. Na banheira, ele despejava água quente em sua cabeça. Ela escreve: “A propagação do calor conforme a água quente caía e o súbito e intolerável frio de sua ausência”. Um paralelo aos momentos em que conseguia se conectar com seu pai, seguido de muitos outros de afastamento ou indiferença.

Outro exemplo é quando ela resume todos os defeitos de seu pai com uma breve compensação de presença em um paralelo com a história de Ícaro, que caiu no mar devido à teimosia e ao experimento do pai, Dédalo. Ela desenha um pulo dentro da piscina, onde seu pai a espera de braços abertos, e escreve: “…ele estava lá para me pegar quando eu saltei”, como referência ao fato de que apesar de todas as ausências, todos os defeitos, todas as mentiras e segredos, quando ela realmente precisou dele, ele estava pronto para ajudá-la.

FUN HOME é uma HQ comovente e reflexiva que transcende as fronteiras dos quadrinhos tradicionais. Alison Bechdel consegue criar uma narrativa poderosa que explora a complexidade das relações familiares e a busca por identidade em meio a segredos e silêncios. Sua coragem em compartilhar sua própria jornada de autodescoberta e aprofundar-se na história de sua família tornam esta obra um marco significativo na literatura autobiográfica e uma leitura indispensável para quem deseja explorar temas relevantes com sensibilidade e profundidade.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Alison Bechdel
ARTE: Alison Bechdel
TRADUÇÃO: André Conti
EDITORA: Todavia
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 240