Um jovem paulista de classe média alta, muitas namoradas, estudante de Engenharia Agrícola na Unicamp vê sua vida se transformar em um pesadelo em questão de segundos. Durante um passeio com um grupo de amigos, Marcelo, de farra, resolve dar um mergulho no lago, em estilo Tio Patinhas. Meio metro de profundidade. Uma vértebra quebrada, o corpo não responde. Começa ali, naquele mergulho, um relato do acidente que deixou o escritor Marcelo Rubens Paiva tetraplégico, a poucos dias do Natal de 1979.

Eu li FELIZ ANO VELHO por volta dos quinze anos de idade. Foi uma das leituras de avaliação, na escola, daquele ano. Lembro que partes do relato de Marcelo me impactaram. Aconteceu uma identificação, principalmente nos trechos em que ele lembra de sua insegurança diante da vida, sua relação com os amigos e com as namoradas. Afinal, eu era adolescente, exatamente a época em que passamos por esses sentimentos e essas experiências.

Agora, mais velho, eu resolvi que desejava realizar uma releitura, mesmo com a possibilidade de afetar minha relação com o livro e estragar minhas memórias. Adianto que isso não aconteceu. Ainda sinto profundo carinho pelo livro, mas de uma maneira diferente, um carinho localizado para a época, mas com a noção de tudo o que não compreendi da leitura aos quinze anos e a certeza de que FELIZ ANO VELHO é uma história datada, que não consegue mais ser consumida sem o leitor considerar a época em que foi escrita. Do contrário, possivelmente, não irá gostar.

FELIZ ANO VELHO foi publicado por Marcelo aos 23 anos de idade, apenas três anos depois do acidente no lago. A narrativa reflete a imaturidade inerente à idade, bem como a maneira de agir, de pensar e de se expressar dos jovens de classe média alta dos anos de 1980. Então existem muitos trechos preconceituosos, machistas, racistas, homofóbicos e uma completa falta de visão de consciência de classes e de inclusão social. Era uma época em que esse comportamento era normalizado e copiado pelas classes menos favorecidas. Principalmente nas duas maiores capitais do país, Rio de Janeiro e São Paulo.

Marcelo afirmava ser socialista, usava um discurso de igualdade e de oposição ao governo, como muitos jovens da época, principalmente de sua classe social, mas apenas como teoria, como conversa de barzinho ou de roda de amigos, uma forma de se mostrar rebelde. Entretanto não pensava e nem agia segundo esses ideais. Mantinha-se isolado em suas regalias sociais e econômicas, utilizava de sua vantagem de homem branco hetero, tratava as mulheres futilmente e se gabava de suas aventuras sexuais.

Vale observar que todos esses posicionamentos são narrados de maneira totalmente casual e orgânica dentro do estilo de vida dos anos de 1980 e não como uma ofensa pretendida. Para essa parcela de pessoas, era normal, correto, não existia um problema a ser resolvido. Em vários momentos, Marcelo confessa que suas posições e comportamentos preconceituosos eram errados, mas logo a seguir ele completa que não fazia mal, a pessoa nem se importava, que ele era assim mesmo e tudo bem. E esse era o “espírito” dessa época: o conhecer do errado, mas o não se importar com esse conhecimento. Já hoje, felizmente, coisas assim não são mais aceitas, permitidas, e se acontecem, são punidas. Teoricamente, óbvio. Não evoluímos tanto.

Existe uma pequena parte de FELIZ ANO VELHO que se destoa de todo o resto: a prisão e o desaparecimento do pai de Marcelo, o Deputado Federal Rubens Paiva. Embora sejam poucas as páginas que ele separa para contar sobre o assunto, a tragédia afeta a vida de Marcelo de maneira intensa e permanente, como seria de se esperar. Aos onze anos de idade, em 1971, Marcelo presenciou seis homens, vestidos de oficiais da Aeronáutica, armados com metralhadoras, invadirem sua casa sem um mandado judicial ou de prisão. Rubens Paiva acalmou os invasores, pediu que guardassem as armas, vestiu-se e saiu guiando seu próprio carro. Nunca mais foi visto.

A mãe de Marcelo, Eunice, também foi detida no mesmo dia, juntamente com a irmã de Marcelo, Eliana, de apenas quinze anos de idade. Eliana foi liberada no dia seguinte, já Eunice permaneceu presa e incomunicável durante doze dias. Após a soltura, Eunice procurou pelo marido, mas as autoridades desconheciam seu paradeiro, afirmando que ele nunca fora preso. A única prova contrária, era o carro que Rubens dirigia e que estava no estacionamento da polícia.

A morte de Rubens Paiva só foi confirmada 40 anos depois, com a criação da Comissão Nacional da Verdade e o depoimento dos ex-militares envolvidos no caso. Rubens foi torturado e assassinado nas dependências de um quartel militar entre 20 e 22 de janeiro de 1971. Seu corpo foi enterrado e desenterrado diversas vezes por agentes da repressão até ter seus restos jogados ao mar, na costa do Rio de Janeiro, em 1973. Esses eventos não são narrados por Marcelo em FELIZ ANO VELHO, obviamente, mas fazem parte da história brasileira e do absurdo que foi a ditadura militar.

Com exceção desse pequeno trecho sobre o sequestro do pai, o restante da narrativa trafega entre o presente, com Marcelo na UTI e, posteriormente, sua adaptação em casa, e o passado, com lembranças da sua infância, adolescência, até o dia do fatídico acidente. Todos esses eventos são fora de ordem cronológica, são pedaços de memória que surgem dependendo do que Marcelo vive no presente. Apesar dessa aleatoriedade, não há como o leitor se perder ou ficar confuso. São como episódios independentes de uma série, ora com Marcelo jovem, ora com Marcelo mais velho.

E fugindo do comum onde a narrativa se foca na conquista da força do personagem principal para superar sua condição, Marcelo praticamente não descreve essas dificuldades. Há uma ou outra passagem em que ele conta como era sua fisioterapia, como tomava banho, como fazia suas necessidades fisiológicas, mas todas breves e acrescidas de um certo bom humor. A essência de FELIZ ANO VELHO está nas experiências de Marcelo antes do acidente, e não em uma busca para se descobrir, e sim como uma maneira de reviver e se lamentar pelo que não poderia fazer novamente. Disso vem o título do livro, onde Marcelo comemora os anos que se passaram, uma vez que não consegue vislumbrar nada de novo ou feliz nos anos que estão por chegar.

Em minha primeira leitura de FELIZ ANO VELHO, deixei escapar o comportamento tóxico do autor, seus preconceitos, sua maneira limitada e privilegiada dentro da sociedade, sua situação financeira confortável e que lhe permitiu o melhor tratamento possível, suas relações fúteis com as mulheres, e mais uma série de detalhes que representam perfeitamente a sua geração e a classe em que se encaixava. Quando somos jovens demais, essas informações passam por nós sem destaque, são corriqueiras ou sem importância, ainda mais quando não nos afetam e nem afetam quem nos rodeia ou nossa família.

Entretanto, hoje em dia, é perceptível como o autor pode ser facilmente odiado se o leitor não considerar o contexto e a época da narrativa. FELIZ ANO VELHO atualmente é uma leitura que ajuda a compreender os anos de 1980, a ter uma percepção bem realista da falta de senso crítico e da noção de que tudo é permitido. Mais ainda, ajuda a compreender como era a juventude rica e as irresponsabilidades acobertadas pelos pais que poderiam resultar em tragédias. Ainda é uma leitura impactante, singular, mas que deve ser realizada na fase adulta, sem qualquer dúvida.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Marcelo Rubens Paiva
EDITORA: Objetiva
PUBLICAÇÃO: 2006
PÁGINAS: 272