Acho difícil o leitor não saber, mas Robert Galbraith, autor dos livros de detetive O CHAMADO DO CUCO (resenha aqui), O BICHO-DA-SEDA (resenha aqui), VOCAÇÃO PARA O MAL (resenha aqui), BRANCO LETAL (resenha aqui) e agora SANGUE REVOLTO, é o pseudônimo de J. K. Rowling, autora dos livros de Harry Potter. Nos cinco livros, os dois personagens principais são os mesmos, Cormoran Strike e Robin Hellacott. A escrita viciante de Rowling, somada ao carisma e a uma construção perfeita dos dois personagens, tornam essa série uma das melhores que já li.
Através das resenhas dos livros anteriores, caso você já não tenha lido, consegue se inteirar de como a relação entre Robin e Cormoran é construída sem pressa, cuidadosamente, através do tempo. Ambos possuem cargas de traumas profundos e maneiras únicas de enxergarem a vida, que mantém um muro de incertezas entre eles, o que impede que avancem para uma relação romântica ou mesmo de uma amizade mais próxima. Mas é óbvio que eles estão apaixonados, como uma boa série de detetive.
SANGUE REVOLTO, dos cinco, é o livro mais pessoal de Cormoran. Nos anteriores, as atenções eram direcionadas, acertadamente, para a vida íntima de Robin. E digo acertadamente, porque a personagem vinha de um passado violento e estava em um relacionamento abusivo. Nos quatro primeiros livros, isso é resolvido, e agora, no quinto, o ciclo se fecha de forma definitiva, e Robin, finalmente, está livre para seguir com sua vida livremente, da forma que bem desejar.
Então, a atenção é desviada para a relação de Cormoran com sua família, uma relação intempestiva que enfrenta a doença fatal da tia e um passado de mágoas com o pai. Calculo que mais de metade das páginas de SANGUE REVOLTO são destinadas a discutir essa relação, e elas passam voando, porque é muito, muito gratificante acompanhar a luta psicológica de um homem que possui uma aparência de muralha inquebrável, ser desconstruído aos poucos, até chegar a uma altura de fragilidade que comove.
As outras páginas são destinadas à investigação que Cormoran e Robin realizam para descobrirem o misterioso desaparecimento de uma mulher, ocorrido há mais de 40 anos atrás. A trama é complexa e envolve astrologia, cartas de tarô e o envolvimento de um serial killer, agora preso, mas ativo na época do desaparecimento e que, tudo indica, seja o responsável.
Muitos capítulos são destinados à dupla de detetives obtendo depoimentos, lendo documentos antigos, além de desvendar pistas quase apagadas pelo tempo, enquanto batalham para conseguirem do estado, permissão para interrogarem o tal serial killer, preso em uma penitenciária federal. O que acontece no final do livro, quando Cormoran e Robin já conhecem o culpado e conseguem obter do criminoso as informações que desejam, sem que o assassino desconfie que as está fornecendo, é um dos pontos altos da história.. A conversa é muito inteligente e demonstra a criatividade da autora.
Rowling escreve sobre esses personagens com enorme prazer. Dá para notar, é bem óbvio. E isso contagia o leitor. Penso que ela pretende escrever muitos mais livros sobre Robin e Cormoran, pelo ritmo que ela coloca na evolução da relação dos dois. Após cinco livros, os avanços são pequenos, mesmo que muito bem-vindos. Em SANGUE REVOLTO, como nos livros anteriores, Rowling trata de assuntos importantes sobre machismo, e esse tema fica representado por um dos novos contratados na agência de detetives. As situações que Rowling apresenta são facilmente reconhecidas e a forma como Robin responde é incisiva.
Esse é um enigma que tento compreender. Como Rowling consegue escrever sobre situações de preconceito com tanta propriedade e ser uma pessoa preconceituosa e transfóbica ao mesmo tempo na sua vida pessoal, com uma atividade nas redes sociais com posts horrendos. Em SANGUE REVOLTO, o problema reside em que o assassino em série se veste de mulher para se aproximar de suas vítimas. Se fosse qualquer outro autor, seria encarado como uma escolha narrativa, mas no caso de J. K. Rowling, dado o contexto das suas opiniões sobre questões de gênero e direitos trans, fica impossível não considerar que a escolha do comportamento do assassino é uma extensão de suas opiniões pessoais. Isso perpetua os estereótipos negativos sobre pessoas trans como sendo “enganadoras” ou perigosas e reforça a transfobia sobre a comunidade trans. Há um longo histórico de mídia e literatura usando o padrão de “homem vestindo-se de mulher para enganar ou causar dano”, e SANGUE REVOLTO apenas perpetua esse clichê. Ou seja, é aquela mensagem, se importe com as histórias, ignore quem as escreve. Mas será que é possível ou mesmo coerente? Realmente não sei dizer. E se você não quiser ler algo da autora por conta de seus posicionamentos na vida, eu concordo totalmente.
De qualquer forma, SANGUE REVOLTO mantém a qualidade dos livros anteriores e ainda apresenta uma pequena evolução na trama dos dois personagens principais, com quem é impossível não se apaixonar. Sou fã de Robin e Cormoran, muito, e torço para que a autora chegue ao final da história de ambos com a mesma paixão e verdade com que os criou. Seria decepcionante se ela caminhasse para um destino que não fosse recompensador para os dois.
AUTOR: Robert GALBRAITH
TRADUÇÃO: Ryta VINAGRE
EDITORA: Rocco
PUBLICAÇÃO: 2021
PÁGINAS: 960
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