Escrito em 1974, em plena Guerra Fria, OS DESPOSSUÍDOS é uma ficção-científica utópica e distópica, sobre dois planetas gêmeos separados por conflitos e desconfianças, e um homem que arriscará tudo para reuni-los. Urras é um mundo de abundantes recursos dividido em vários estados-nação. Em meio a extremos de riqueza e pobreza, dois deles estão em guerra para estender sua influência – e seu sistema político – sobre os demais.

Anarres, por sua vez, é o planeta recluso e anarquista gêmeo de Urras, cuja visão utópica de seus colonizadores acabou criando uma ilusão de sociedade perfeita. Essa ilusão só é quebrada quando Shevek, um jovem físico brilhante de Anarres, descobre a Teoria da Simultaneidade, uma ideia que pode acabar com o isolamento de seu planeta e, ao mesmo tempo, como consequência, avivar as guerras do planeta vizinho.

A síntese da história é uma parábola sobre o Comunismo e o Capitalismo, mas sem tomar lados, expondo da forma mais imparcial possível, os louros e as agruras de cada um. A autora utiliza até mesmo a analogia de muros que separam pessoas e ideias. Na época da escrita, o muro de Berlim ainda estava de pé e era muito mais do que apenas uma construção que separava duas cidades, era o símbolo máximo da divisão entre liberdade e ditadura. Da mesma forma, já nas primeiras páginas de OS DESPOSSUÍDOS, fica claro que o muro alegórico será usado pelo personagem principal, Shevek, para separar as ideias sobre o que ele considera certo e o que ele considera errado.

Em Anarres não existem leis, não existe o conceito de propriedade, material ou pessoal, ou seja, ninguém é realmente dono de algo ou de alguém. Não existe o conceito de casamento, de monogamia, cada pessoa decide com quem vive, onde vive e por quanto tempo vive, sem julgamentos morais e cívicos. Inclusive os filhos não precisam ficar com seus pais, porque consideram isso propriedade. Não existe hierarquia política, social ou trabalhista. Cada pessoa ajuda numa tarefa, ou em diferentes tarefas, com iguais conceitos de importância e responsabilidade, seja homem, mulher ou qualquer outro gênero, todos estão em pé de igualdade de inteligência e capacidade. Mas é uma sociedade fechada, que não aceita ser contestada e não possui interesse em compartilhar contatos ou conhecimentos, onde não existe privacidade ou individualidade.

Shevek é um físico e decide viajar para Urras e apresentar sua teoria do tempo contínuo, algo que permitirá que os dois planetas estabeleçam uma comunicação instantânea pelo espaço. Em Anarres, seu planeta, não há interesse em algo que os aproxime do planeta vizinho. Assim, Shevek quebra a hegemonia e os ânimos ficam exaltados, a ponto de haver violência física contra sua partida. Mas o desejo dele de apresentar sua teoria é maior do que o medo por sua segurança.

Urras é um planeta muito semelhante ao nosso, à Terra, em termos físicos, e a sociedade segue os princípios da maioria dos nossos países do ocidente, com empregos, monogamia, hierarquia, riqueza, luxo, higiene, beleza, mas também no excesso de consumo, na pobreza, desigualdade, injustiças, inveja, egoísmo, individualidade, preconceito, machismo. O papel da mulher é o mesmo da nossa de décadas atrás, onde cada mulher é responsável apenas pelo cuidado da casa, dos filhos e do marido, considerada incapaz para realizar qualquer outra tarefa de responsabilidade ou inteligência.

Esses contrastes, evidentemente, assustam Shevek. E aos poucos, com o passar do tempo, ele começa a compreender mais do que as diferenças entre Anarres e Urras, ele compreende os defeitos de cada modelo de sociedade, bem como sua limitação individual para conseguir interferir e modificar qualquer um desses modelos. A autora não deseja que o leitor escolha qual sociedade é melhor ou mais justa, mas que o leitor vislumbre que não depende do modelo para se obter sucesso, mas, sim, de quem o executa e de como executa.

Anarres e Urras possuem civilizações controladas por conceitos que teoricamente poderiam funcionar, mesmo sendo tão diferentes entre si. Entretanto, é a pessoa individual, mesmo numa sociedade unificada, como Anarres, onde a individualidade não deveria existir, que corrompe o sistema e o desmorona. O ser, o querer, o desejar, a vontade, seja por materialidade, seja por unidade, se sobrepõe, sempre, à coletividade, seja de forma direta ou indireta. Nós, pessoas que somos, tememos e afastamos o que é diferente. Somos seres dotados de ódio pelo que vai contra nossas crenças e nossos conceitos pré-estabelecidos. E isso, Shevek reconhece em ambos os planetas.

Não existe perfeição, não existe o mundo perfeito, e nunca vai existir, por mais que se tente. O ser humano é imperfeito por natureza, e imperfeição gera imperfeição, independentemente da intenção. E Shevek, ao finalizar sua história, descreve perfeitamente o que cada um de nós ganha e leva da vida: ele, Shevek, chegou de mãos vazias a Urras; e retornou a Anarres de mãos vazias.


AUTORA: Ursula K. LE GUIN
TRADUÇÃO: Susana L. de ALEXANDRIA
EDITORA: Aleph
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 384


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