Um livro que de primeira parece uma coisa e que, logo nas suas primeiras páginas, se prova outra. A autora Alice Walker, a mesma que eternizou seu nome na história com o emocionante A COR PÚRPURA, já mostrava talento e extrema qualidade técnica no seu livro anterior, A TERCEIRA VIDA DE GRANGE COPELAND, uma obra que deixa uma marca no leitor. Quer saber mais?

Inicialmente acompanhamos Brownfield, um menino negro humilde e traumatizado que tenta sobreviver à morte da sua mãe e ausência do pai. O mesmo abandonou a família para tentar a sorte no norte dos Estados Unidos, um lugar em que, segundo ele, haverá oportunidades de crescimento, possivelmente sem o forte preconceito racial que ele sofre no lugar onde vive. Mas ele se foi e deixou sua família para trás. Logo, o jovem Brownfield também parte para tentar construir uma vida para si, o tempo passa e o menino se torna homem e seu caráter vai para um lugar totalmente sem volta.

A narrativa caminha por uma incrível e longa linha do tempo, que começa com Brownfield jovem e abandonado, caminha pelo amadurecimento do rapaz e tem o seu ápice na vida adulta do mesmo. Entre vários relacionamentos, ele conquista a mulher que desejava e com ela constrói uma família. Mas o trauma da perda moldou um ser humano extremamente ruim. Bêbado, abusivo e violento. O livro caminha, em menos de cento e cinquenta paginas, por um amadurecimento sem precedentes, a construção literal de um mostro. É muito difícil para o leitor acompanhar essa jornada, que toca e destrói a vida de tantas pessoas e que no final termina em algo trágico.

O outro ato do livro é sobre o personagem título, Grange Coperland, o pai que abandonou o menino e sua mãe há tanto tempo. A narrativa começa por quem ele foi, por onde ele andou e quem ele é hoje. É uma virada riquíssima na cabeça do leitor, que já no inicio acha que sabe por quem torcer e quem odiar. Grange é um homem negro que odeia brancos, um trauma forte que ele carrega graças a eventos do seu passado. Ele se casou, construiu, sim, uma vida nova, num lugar mais próspero, mas ele fez isso sozinho, sem a sua primeira família. É outro ponto de vista que fica ainda mais rico quando o caminho dele se cruza com Ruth, a filha menor de Brownfield, que ele pega para criar, quase sem querer.

Uma amizade entre ambos cresce e o relacionamento de avô e neta gera um novo ser humano que tem uma visão totalmente diferente do que já vimos. Ruth não quer ter contato com seu pai e ela gosta realmente do avô. O companheirismo entre eles cresceu em paralelo a algo muito ruim, e cresce até onde a vista não alcança. São passagens incríveis que passam voando, com uma geração moldando a outra, com o desejo de que o lado ruim não cresça nessa nova vida. Mas o que parecia ser bom demais para ser verdade, de fato é bom, mas não demora para forças de fora tentarem quebrar essa atmosfera, que foi construída com tanto companheirismo e diálogo.

Todos os personagens principais do livro são negros e, nas palavras, da pra sentir a opressão e o racismo, cada um com sua vivência própria. A autora constrói uma história extremamente densa e incômoda. São vidas difíceis e cheias de traumas, eles se explodem e machucam um aos outros. De fato, tudo é muito triste e chocante de se acompanhar, principalmente todo o arco envolvendo um Brownfield mais velho e sua esposa. Tais passagens podem despertar gatilhos em quem não estiver num momento bom, então fica o aviso. Claro que nada é romantizado e normalizado, mas é um retrato forte da realidade que acaba indiretamente machucando o leitor.

São um pouco mais de trezentas páginas que acompanham várias gerações, o tempo avança de uma maneira surreal, você sente indo, mas não percebe. Nada é brusco e nem apressado. Os capítulos se alternam entre pequenos e grandes, cada um com suas peculiaridades e todos tem um propósito claro, esse é o tipo de livro que você sente que tudo era necessário para a construção da história. Uma narrativa extremamente ágil e bem desenvolvida, mas que não é fácil. Dói absorver tanta coisa pesada, porém a mensagem que ela passa faz tudo valer a pena.

Uma coisa que poderia ser diferente era o seu desfecho, que para mim ficou um pouco corrido demais, senti falta de um desenvolvimento mais poderoso. O impacto que eu senti durante toda a leitura, eu não senti nas ultimas vinte páginas, mas nada disso prejudica o resultado final, que se encerra, sim, em algo chocante e impactante.

Um questionamento que pode ficar no leitor é o por quê da autora, que também é negra, querer desenvolver uma narrativa tão pesada e triste, que também envolve pessoas negras. A própria responde essa questão da melhor maneira possível em um posfácio extremamente rico, que deixa a trama ainda mais poderosa, quando o leitor começa a poder enxergar tudo por todos os pontos de vista possíveis.

Um livro que tem um título peculiar, uma capa belíssima e uma trama cortante, se prova uma das leituras mais ricas e difíceis que eu fiz em 2020 e cada uma das suas trezentas e trinta páginas me impactaram de uma forma diferente. Quer se impactar também?


AUTORA: Alice WALKER
TRADUÇÃO: Carol SIMMER e Marina VARGAS
EDITORA: José Olympio
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 336


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