Estamos em 2018 e o mundo enfrenta uma nova doença, a Síndrome da Falsa Memória. Ninguém sabe como começou, quem foi o primeiro infectado, nem o que causa ou qualquer outra informação que leve a uma cura. De uma hora para outra, quem é contaminado, ganha lembranças de uma vida diferente, em detalhes, com todas as emoções resultantes. O choque de lembrar de uma vida em que se casou com outra pessoa, ou que teve outro filho, ou que perdeu alguém que amava, por exemplo, mesmo jurando que isso nunca realmente aconteceu, leva algumas pessoas a uma situação de depressão tão profunda, que elas decidem se matar.

Barry, um policial de Nova York, que perdeu a filha adolescente alguns anos atrás, atende um caso de ameaça de suicídio. Mesmo não sendo sua especialidade, ele é quem está mais perto. Uma mulher está no alto de um edifício, sentada na beirada do terraço, pronta para se jogar. Ela conta a Barry que ganhou memórias de uma vida em que amou um outro homem, que ele faleceu, e mesmo sabendo que sua vida real não é assim, ela não suporta a dor de tantos sentimentos ao mesmo tempo, e então ela se joga para a morte. E calma, não é spoiler, isso acontece nas primeiras páginas de RECURSÃO.

Embora não tenha sido seu primeiro caso de suicídio, Barry percebe algo de estranho quando descobre que o marido das lembranças dessa mulher existe e está vivo. Então, ele começa uma investigação para tentar descobrir porque existe essa incoerência nas lembranças e como a doença criou na mente da mulher uma pessoa que realmente existe.

Em paralelo, acompanhamos Helena, uma neurocientista que, em 2008, dez anos antes da linha do tempo de Barry, procura pela cura do Alzheimer, não apenas para tratar as pessoas com essa degeneração de mente, mas também para salvar sua mãe, que está em um estágio avançado. Ela tenta inserir em uma parte do cérebro, memórias gravadas da pessoa antes dela ficar doente. Assim quando a doença aparecesse, seria possível recuperar as memórias apagadas, ou mesmo impedir que elas fossem apagadas.

Entretanto, o avanço é lento e caro, a ponto dela estar para perder o patrocínio para o funcionamento de seu laboratório. É quando aparece Slade, um milionário que oferece locais e recursos ilimitados para que Helena avance em seus experimentos. A única coisa que ele cobra em troca, é total acesso ao que ela conseguir. Claro que ela aceita, muda-se para uma plataforma de petróleo modificada por Slade, no meio do oceano, e nos meses seguintes, junto com uma equipe, ela avança e consegue ir além do esperado: não só guardar memórias, mas modificá-las através da construção de uma nova realidade. Mas isso pode provocar consequências imprevisíveis, capazes de destruir o mundo como o conhecemos.

Eu vou precisar soltar um pequeno spoiler, apesar de eu não considerar realmente um spoiler, uma vez que ele está subentendido na sinopse e aparece logo no início da trama. Aliás, eu considero que é uma informação que até aguça a curiosidade para a leitura da obra. Mesmo assim, caso não queira saber, pule apenas os três próximos parágrafos.

Helena não descobre apenas como guardar e modificar memórias, ela consegue encontrar uma forma de voltar no tempo com sua memória intacta. Então, ao voltar, se ela modificar algo do que já aconteceu, a realidade é modificada como consequência daquilo que ela fez. Ao chegar na data em que ela retornou no tempo, todas as pessoas, do mundo todo, dessa nova realidade, recebem as memórias da realidade anterior, todas de uma só vez.

É semelhante à história de um outro livro de ficção-científica, A CURVA DO SONHO, de Ursula K. Le Guin. Nele, o personagem consegue modificar a realidade através de seus sonhos. Em RECURSÃO, acontece o mesmo, mas como consequência do que é alterado no passado. E a obra de Blake Crouch consegue passar com bastante realismo o quão perigoso seria ter a capacidade de se alterar o passado.

A descoberta de Helena traz uma gigantesca discussão sobre se aquilo que fazemos de errado, se pudesse ser desfeito, não seria pior. Qual a responsabilidade de uma decisão como essa? Ao salvar um vida, poderias estar a condenar uma outra, ou várias outras? E ao salvarmos milhares de vidas? O que essas pessoas poderiam interferir e gerar um futuro totalmente diferente, e nem por isso, melhor? Queria entrar mais em detalhes, mas seria estragar o prazer da leitura. E acredite, depois de terminar, você terá que conversar com alguém sobre.

Pronto, aqui já não tem qualquer spoiler. Claro que Slade já sabia disso que relatei no parágrafo anterior, e não vou dizer como, e claro que ele é o vilão da história, que tem um plano maquiavélico. Já está consolidado que qualquer personagem extremamente rico, que aparece para ajudar o personagem principal a construir algo, é um vilão com segundas intenções. Nesse ponto não existem surpresas e isso fica estabelecido logo no início da história. Entretanto, a forma como ele já sabia do que Helena seria capaz, e o que ele faz para conseguir que ela tenha sucesso em seus experimentos, é uma surpresa bastante inteligente.

Apesar das histórias de Helena e Barry acontecerem em períodos diferentes de tempo, narrados em capítulos alternados, chega um momento em que eles se cruzam e os dois passam a fazer parte da mesma época. A dinâmica dos dois é bastante gostosa de acompanhar, bem como, aos poucos, eles ganham confiança e intimidade. Tem uma certa altura da história, quando os dois precisam enfrentar uma onda de vários inimigos, que é uma verdadeira aventura cheia de adrenalina, onde, realmente, não dá para prever o que irá acontecer.

Outro detalhe bem construído é o sofrimento que Barry carrega pela perda da filha. Sem dar detalhes, é bastante cruel quando ele ganha uma chance de terminar com o sofrimento, e consegue por algum tempo, para depois tê-lo de volta. Qualquer pessoa ficaria quebrada, destruída. O mesmo pode ser dito de vários personagens secundários, principalmente mais para o fim da história, quando as coisas que acontecem atingem um patamar mundial.

RECURSÃO é uma ficção-científica raiz, uma aventura cheia de surpresas, de ação, de perigo, com trechos carregados de adrenalina, que direcionam a história para um clímax, onde o leitor não consegue antever uma saída para os personagens principais, e com um final que é digno com tudo o que aconteceu e, principalmente, uma recompensa pelo que os personagens precisaram passar. Apesar de ter gostado muito de sua obra anterior, MATÉRIA ESCURA, considero que RECURSÃO é melhor, mais maduro, mais bem escrito, o que demonstra como o autor está evoluindo no que escreve. Que venha a próxima, rápido! Ah, e tudo isso em uma edição de luxo, capa dura, amarela, com detalhes prateados e brilhantes, e com desenhos internos que fazem todo o sentido dentro da história.


AUTOR: Blake CROUCH
TRADUÇÃO: Sheila LOUZADA
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2020
PÁGINAS: 320


COMPRAR: Amazon