MEDICINA DOS HORRORES foi publicado recentemente pela editora Intrínseca nessa edição primorosa, contendo capa dura, ótima diagramação e notas da autora. A obra foi escrita por Lindsey Fitzharris, médica com doutorado em história da ciência e da medicina na Universidade de Oxford, criadora do site  The Chirurgeon’s Apprentice, apresentadora da série Under the Knife no YouTube e escritora para veículos como The Guardian, The Huffington PostThe LancetNew Scientist.

Mesmo com todas as limitações de saúde pública no Brasil atual, nada se compara à carnificina dos procedimentos cirúrgicos anteriores ao século XX. Até meados do século XIX, as cirurgias eram feitas de modo “sujo” e muitos pacientes iam a óbito por infecções generalizadas, considerando que o ambiente estava longe de ser estéril, com resíduos de todos os pacientes anteriores, haviam plateias assistindo ao “espetáculo” sanguinolento e os instrumentos eram usados em várias pessoas sem ao menos serem lavados. Dessa forma, as infecções por microrganismos se espalharam rapidamente e era mais fácil um ser humano sobreviver à guerra do que a uma cirurgia, mas mesmo os que sobreviviam, raramente alcançavam a recuperação completa.

O prólogo intitulado “A era da agonia“, situa o leitor quanto à ambientação da época, em que anfiteatros de universidades de medicina se tornavam palcos com uma mesa de madeira ao centro e tinham suas arquibancadas lotadas por cidadãos curiosos ao redor do enfermo, a iluminação era feita por velas e o chão era coberto por grossas camadas de serragem a fim de conter o sangue derramado. Naquele tempo, o trabalho de um cirurgião era visto como imundo (o que realmente era) e, consequentemente, era muito desvalorizado; assim, pouquíssimos médicos tinham interesse pela função. Diferentemente de nossa realidade, em que cirurgiões são vistos como deuses da ciência que ganham salários exorbitantes, nas primeiras décadas do século XIX, muitos deles eram pessoas analfabetas que não passaram pela universidade, pois era vista como um trabalho braçal, que exigia força e precisão, e não conhecimento teórico.

O famoso cirurgião Robert Liston ficou popular nos anfiteatros médicos devido à sua força e rapidez na amputação de membros, sendo capaz de amputar uma perna em menos de 30 segundos, chegando a segurar a faca com os dentes quando necessitava usar ambas as mãos. Porém, como nem tudo são flores, já decepou acidentalmente o testículo de um paciente juntamente com a perna, assim como três dedos de seu assistente, que morreu de gangrena pouco tempo depois. Liston também foi um dos primeiros médicos a usar o éter líquido para testar se este era capaz de acabar com a dor dos pacientes, o que se confirmou em 1846 numa amputação da perna de um mordomo com osteomielite crônica. Apesar da conquista do éter, as próximas décadas foram dominadas por péssimos resultados cirúrgicos e um aumento da mortalidade, pois, os cirurgiões se tornaram mais confiantes em seus procedimentos por não estarem infligindo dor e tornaram-se mais descuidados com o bisturi, o que provocou um aumento de infecções e choques sépticos.

A partir do primeiro capítulo do livro, a autora nos apresenta a história de Joseph Lister, um médico que desde jovem tinha um olhar aprimorado para as ciências da saúde e que transformou o curso de desenvolvimento da medicina. Desde criança era fascinado por dissecação de animais e pelo microscópio do pai, no qual ele passava horas estudando diversos tecidos anatômicos. Ele foi um dos primeiros cirurgiões a realizar um procedimento de correção de lesão abdominal, com perfuração de intestino, sem que a paciente morresse por sepse; a mulher era Julia Sullivan, que havia sido agredida pelo marido com uma faca e levada às pressas para a universidade onde Lister trabalhava. E o que me surpreendeu positivamente foi que Lindsey ainda foi além… Ao longo de sua abordagem dos temas médicos no contexto histórico, ela faz diversas críticas à política e aos comportamentos sociais da época, como a violência contra as mulheres e a visão de que a mulher era posse de seu marido, tendo como maior exemplo o caso de Sullivan.

Os hospitais eram chamados de “casas da morte” devido aos seus altíssimos números de óbitos por infecções. Eram ambientes sujos, com péssima ventilação, pouco acesso a água potável, cheiro forte de urina, fezes e vômito, onde os enfermos viviam amontoados em leitos sem os devidos cuidados (considerando as condições locais, poucas pessoas aceitavam o trabalho em hospitais). O resultado disso era que a morte era tão inevitável que os doentes só eram internados se levassem dinheiro para cobrir as despesas de seu funeral.

É impossível abordar todos os temas mencionados na obra, mas garanto que, nessas 320 páginas, o leitor irá se deparar com muitos fatos notáveis que irão contribuir para seu conhecimento da área médica. MEDICINA DOS HORRORES é um livro fascinante e muito bem escrito que aborda temas  interessantes acerca da medicina, com ênfase na evolução dos procedimentos cirúrgicos, tendo informações técnicas adaptadas para uma linguagem acessível para leigos. Devido ao conteúdo mais pesado e repleto de ciência, a leitura não é tão fluída, porém, isso não foi um problema para mim. Recomendo a leitura para todos os estudantes e profissionais da área da saúde, assim como para pessoas que gostem da temática abordada, pois é uma obra muito rica que vale a pena ser explorada!


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Lindsey FITZHARRIS
TRADUÇÃO: Vera RIBEIRO
EDITORA: Intrínseca
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 320


COMPRAR: Amazon