Talvez a maior vergonha da raça humana seja a escravidão. O conceito de possuir, vender e explorar outro ser humano para benefício próprio é quase tão antigo quanto a nossa própria existência. Neste livro, o primeiro volume de uma trilogia, acompanharemos toda a origem dessa calamidade que, por muito tempo, foi um dos negócios mais lucrativos de todo o mundo, tendo o Brasil como um dos protagonistas de todo esse lucro.
Sobre a escravidão, é basicamente de conhecimento geral que ela foi de extrema importância para todas as potências europeias na época onde cada uma tinha um império para chamar de seu. E como se constrói um império? Com colônias e escravos. O livro já se prova relevante logo nos primeiros capítulos, onde é trabalhado a origem do conceito da escravidão, onde ela possivelmente nasceu e como se destacou. Porém o grande diferencial da narrativa é colocar a África como um dos protagonistas da narrativa, mostrando para o leitor o panorama geral de como era esse continente durante os anos em que a América foi “descoberta” e muito antes disso, pois o contato dos europeus com os africanos é muito, mas muito antigo.
Portugal foi, durante muito tempo, uma das potências mais poderosas do mundo e dominava completamente o grande negócio que a escravidão se tornou. Depois de “descobrir” o Brasil, perceber que a Terra é rica e próspera, uma colônia foi montada e com ela já se iniciou a escravidão em massa dos índios. Porém o povo nativo era difícil de se controlar. Como eles conheciam muito a terra, que era deles, fugas e rebeliões eram constantes. Precisando revolver esse problema, os portugueses viraram seus olhos para a África, e se iniciava assim, um dos sistemas comerciais e financeiros mais macabros que esse mundo já viu. Por mais de 350 anos, o povo negro foi arrancado de sua terra natal para ser arrastado para um lugar estranho, onde o que lhe esperava era uma vida eterna de trabalhos e castigos. O livro não poupa o leitor e nos entrega todos os detalhes sórdidos desse comércio, que se estendeu literalmente para todo o mundo, porém o Brasil sozinho foi responsável por consumir mais de 48% de todas as 12 milhões de pessoas que foram levadas da África.
As passagens emocionantes ficam a cargo das descrições de como eram as viagens nos navios negreiros. Viagens essas que duravam, às vezes, meses e que eram literalmente um pedacinho do inferno para população negra. Os navios eram insalubres, lotados e sem recursos para todos. Era normal a morte de uma grande porcentagem dos tripulantes e tinham seus corpos arremessados ao mar. O oceano Atlântico foi, e ainda é, um grande cemitério de tormentos, e algo que eu nunca irei esquecer é de uma passagem em especial, onde o livro descreve com detalhes o que aconteciam aos corpos arremessados ao mar. Eles eram instantaneamente devorados por tubarões, e isso acontecia com tanta frequência e por tanto tempo, que alterou o ecossistema, fazendo os tubarões literalmente seguirem as rotas dos navios negreiros, pois eles sabiam que seguir essas coisas no mar, era garantia de comia, às vezes comida ainda viva.
O livro também apresenta muitas curiosidades para o leitor, como a origem de várias palavras que dizemos todos os dias e de como elas carregam uma carga histórica horrível, como por exemplo a palavra boçal, que era para designar escravos que não sabiam o português. Hoje essa palavra é uma ofensa comum, como era antigamente. A expressão “grana preta” também é algo carregado de dor, pois se referia ao dinheiro da venda de escravos, algo muito lucrativo e ainda hoje esse termo é usado para se referir a grandes quantidades de dinheiro. Esses são apenas alguns poucos exemplos dos que estão presentes no livro, toda a hora eu me chocava com a origem de certas palavras, aposto que você também vai ficar.
Uma das coisas mais irônicas presentes no livro é sobre a troca de aprendizado e de cultura. Tanto os indígenas, como os africanos, eram tachados como selvagens, primitivos e atrasados pelos europeus que se achavam donos do mundo. Mas foi apenas pelo contato com esses povos que a população branca aprendeu várias coisas que são fundamentais nos dias de hoje. Coisas que são triviais hoje como a alimentação com farinhas e fermentações, preservação de alimento e descoberta de frutas tropicais, só foram aprendidas com as populações locais dos lugares onde os brancos “conquistavam”. E o aprendizado mais importante foi absorvido aqui no Brasil com os indígenas, a descoberta da mandioca. No começo foi confundida com um inhame pelos europeus, mas depois eles rapidamente descobriram o segredo desse alimento, que sozinho era capaz de nutrir uma grande quantidade de pessoas, por crescer rápido, em grandes quantidades, ser extremamente durável e versátil. O desenvolvimento da farinha de mandioca revolucionou tudo e foi vendida para vários lugares do mundo, gerou grandes lucros e era um dos mais importantes alimentos dos escravos, tanto nos navios, quanto na sua vida como cativo nos enormes e pavorosos engenhos de açúcar.
Para todos os brasileiros, existe dois panoramas: ou você tem escravos na sua descendência, ou escravistas. Pois a escravidão era o que a indústria representa hoje, tudo o que nos cerca. O Brasil foi construído à base da força negra. Sem os escravos, o Brasil não era e não seria nada do que é hoje. Um dos momentos mais interessantes da leitura é quanto o assunto sobre a culpa é posto para debate. Muito se tem comentado nos dias de hoje sobre as cotas em universidades e etc, se elas são justas ou não. Mas é um fato inquestionável que a população branca tem uma dívida eterna com a população negra. Pois até hoje, eles são marginalizados e tudo para eles é duas vezes mais difícil. Se você não concorda com isso, te convido a ler esse livro e refletir melhor sobre os seus conceitos.
Uma coisa que está muito presente no livro para o leitor é o aviso para entender a época onde os fatos se passaram, para poder compreender melhor tudo antes de julgar. Um detalhe que é muito comentado pelos racistas é que na época da escravidão, os próprios africanos, vendiam outros africanos para os europeus e isso tudo é verdade. Mas nada disso justifica a prerrogativa de que foi na América que o racismo nasceu. Por 350 anos, no continente americano cresceu o conceito de que a pessoa negra poderia ser escravizada pela cor da pele, além é claro dos charlatães na época que divulgavam falsas verdades sobre o povo negro ter sido amaldiçoado segundo a Bíblia, que eles são geneticamente feitos para serem domados e vários outros absurdos. Mas também existe algo no livro que esses mesmos racistas esquecem de mencionar, que é o fato de que a Igreja Católica foi uma das maiores financiadoras da escravidão, além é claro da própria ter lucrado horrores durante esse período e ter também seus próprios escravos particulares. Não só a Igreja Católica participou desse movimento macabro, a aristocracia foi de extrema importante para tudo isso ser possível, os judeus também participaram dos investimentos e dos lucros e também a população humilde, que em certo momento no Brasil colônia, até mesmo a família mais pobre tinha vários escravos. Por isso o autor nos alerta o quão importante é sabermos interpretar os fatos, olhando todo o panorama, não só o lado que nos convém, porque por centenas de anos, todos tiveram as mãos sujas com o sangue africano.
Uma leitura com uma importância sem igual, o trabalho editorial faz esse enorme recorte da nossa história ser algo muito palpável e acessível. O livro é dividido em diversos capítulos, cada um com um tema próprio, autoexplicativo e o mais importante, todos em ordem cronológica. Começamos na antiguidade, caminhamos pelo primeiro leilão de escravos e terminamos na morte de Zumbi dos Palmares e a descoberta de ouro em Minas Gerais. O livro também nos traz muitos números e gráficos que fazem a compreensão ser extremamente sólida. Claro que tudo isso tem um preço, o leitor vai se chocando gradativamente conforme vai absorvendo todos os números desse negócio mundial, que por 350 anos condenou e ceifou a vida de milhares de inocentes.
ESCRAVIDÃO é um livro muito difícil de se ler, são conceitos, histórias e fatos apavorantes que seguem o leitor até mesmo quando ele fecha o livro e vai seguir com sua vida. Faz a gente refletir como nunca antes o quão podre foi a raça humana, em quanto sofrimentos nós causamos com os nossos iguais. No final do livro, a história não acaba e deixa para as suas continuações abordar todo o resto desse panorama da escravidão que se seguiu na descoberta do Ouro em Minas gerais, nas independências da America espanhola, dos Estados Unidos e do Brasil império, não esquecendo é claro da África, pois a escravidão “acabou” aqui, mas o que aconteceu com os africanos no seu continente? Um projeto tão bem montado e escrito que deveria ser leitura obrigatória nas escolas e também na vida. Todos temos que manter a memória viva para nunca mais cometermos os mesmos erros.
AVALIAÇÃO:
AUTOR: Laurentino GOMES
EDITORA: Globo Livros
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 433
COMPRAR: Amazon
Rafael!
Livro importantíssimo de ser lido, primeiro para se saber nossas origens, porque as vezes tenho impressão que as pessoas não lembram das nossas origens negras, índias e européias, ninguém é puro no Brail, e, depois, para sabermos as atrocidades que eram impingidas ao povo negro, doloroso, né?
Gosto muito do assunto, pois morei em Alagoas e trabalhei em União dos Palamares, onde Zumbi foi uma das personagens principais na libertação da escravidão.
Já quero poder ler.
cheirinhos
Rudy
Realmente é uma leitura muito importante e necessária. Aquele tipo de palavra que realmente toca e nos faz refletir.
Realmente a escravidão é a maior vergonha da humanidade. Mercantializar outra vida, sob o falso e infundado pretexto de superioridade é de lamentar profundamente. E a consequência real disso é o preconceito racial que existe ainda tão latente.
O livro Escravidão pode até ser difícil de ser digerido, por mostrar a realidade nua e crua mas ainda assim deveria ser uma leitura obrigatória para todos.
Exatamente, é difícil, mas essa é uma história que precisa estar no nosso imaginário.
Uma das grandes vergonhas da humanidade. E infelizmente, tão as sequelas deste horror ainda perduram até hoje. Vivemos numa sociedade hipócrita que prefere fechar os olhos as nossas origens, ao nosso passado que corre sim, em nossas veias.
Por isso, leituras assim deveriam ser meio que obrigatórias a todos nós, para nunca nos esquecermos desta época, não somente como base de história, mas como base de vida. De como o dinheiro escravizou homens, mulheres e crianças por tanto tempo.
E dá um nó na garganta só de imaginar, de longe, muito longe, o que eram essas viagens nos navios.
Com certeza, por mais dolorido que seja, quero muito conhecer esta obra!!!
Beijo
Pois é, além de ser um livro bem organizado e acessível, deveria ser leitura nas escolas, as bases precisam ter esses conceitos vivos na memória.
Olá Rafael!
Durante os ensinos fundamental e médio, os alunos estudam a história do Brasil e a escravidão tanto nas aulas de história como na de literatura, mas ouso dizer que essa obra explora o tráfico negreiro por um viés muito mais aprofundado, e sem o tom excessivamente didático encontrado nos livros escolares. Isso por si só já torna a obra de Gomes uma ótima fonte de conhecimento, porém é necessário elogiar também todo o enfoque que é dado para a estrutura política e organizativa no próprio continente africano, algo que os livros didáticos parecem ignorar quase que completamente. Além disso, Escravidão apresenta uma carga emotiva essencial para causar a devida comoção ao leitor, uma estratégia interessante para uma real assimilação do que está escrito nas páginas.
Realmente a escravidão é um retrato sólido da crueldade humana, e obras como essa são preciosos registros para que se tenha em mente o que nunca mais deve ocorrer, embora alguns danos sejam irreparáveis.
Beijos.
Sim, nas escolas o tema da escravidão está presente, mas o conhecimento lá não é apresentado com toda a carga que ele tem, precisamos além de saber o que foi, entender as origens e principalmente entender a Africa, sem conhecer a Africa, todo o conhecimento fica sem bases.
Olá!
Um livro mais que interessante e que com toda certeza tem que ser lido. Nunca fui de ler algo que seja relacionado a historia dos passados mas alguns que vejo por ai me chama bastante atenção pelo fato de trazer historias reais, que realmente aconteceram, não seria diferente com esse livro. Fiquei um tanto curiosa por ele, provavelmente seria difícil de ler e ao mesmo tempo sentir o que está acontecendo nele. Espero em algum momento ler!
Meu blog:
Tempos Literários
Imagino que seja uma leitura diferente para muita gente, porém é um desafio que eu acredito que todos devem aceitar. Entender a nossa historia atual é entender a escravidão, é conhecer a Africa. E agora tudo isso está acessível de forma super prática num livro bem escrito e estruturado.
Laurentino Gomes é um historiador excelente. Li 1808 dele e amei a escrita e todo o estudo que ele faz para nos trazer a história. Acho que esse livro não vai ser diferente.
A escravidão é uma vergonha para o Brasil e ainda tem a participação da igreja Católica. Realmente o que essas pessoas passaram deve ter sido muito doloroso, triste, angustiante. Nem tenho palavras.
Quero muito conhecer toda a história sobre a escravidão e ter ainda essa parte sobre a África que os portugueses ainda achavam que podiam dominar. Aff!
Já passei a gostar bastante do autor e quero poder conferir mais obras de sua autoria. Esse 1808 é extremamente elogiado, talvez seja minha pŕoxima aposta de leitura.
Olá! Nossa, admiro muito o autor e esse livro só vem confirmar mais uma vez o quanto ele é incrível. Sem dúvida trata-se de uma leitura obrigatória e mesmo sabendo que deveria ser sim trabalhado em sala de aula, sei também que “nossos” governantes não fazem questão nenhuma em trazer conhecimento a nossas crianças e a população em geral. Definitivamente é uma leitura que incomoda, mas também que abre os olhos para aquelas verdades que pode até doer, mas fazem de nós (ou pelo menos deveriam) pessoas melhores.
O interesse precisa vir de cima né, infelizmente, livros como esse deveriam ser comentado em escolas e cursos, esse tema precisa ser debatido sempre, ainda mais nos tempos de hoje onde o racismo ainda existe forte em muitos lugares.
Uma leitura mais que obrigatória!!! Eu vou colocar esse livro como prioridade pra ler ano que vem, eu adorei a resenha.
Oi, Rafael
Uma leitura fantástica, assustadora que se faz necessária para todos, nas escolas, bibliotecas públicas.
Não conhecia o livro é gostei muito apesar de contar um passado triste.
Como você disse nos brasileiros somos uma mistura de raças, eu tenho tanto escravizados como escravistas no sangue.
Quero muito esse livro é mesmo sem ler vou indicar para um monte de amigos.
Beijos