SLÁINE: O DEUS GUERREIRO é uma história em quadrinhos com roteiro de Pat Mills (1949-) e ilustração de Simon Bisley (1962-) dividida em três livros publicada originalmente na revista 2000 AD entre 1989 e 1990. Sláine foi criado por Mills e Angela Kincaid e publicado pela primeira vez em 1983, na 2000 AD. O personagem foi elaborado tendo como referência Conan de Robert E. Howard (1906-1936) e os mitos celtas conforme descritos em seus textos tradicionais, como o Ciclo de Ulster, o Ciclo Mitológico, o Ciclo Feniano e o Ciclo Histórico. Vários dos personagens e divindades presentes na HQ são desenvolvidos a partir de elementos de personagens desses ciclos míticos, incluindo o próprio Sláine, que foi nomeado a partir de Sláine mac Dela, o primeiro Grande Rei mítico da Irlanda.

As primeiras histórias de Sláine, anteriores a O DEUS GUERREIRO, são mais próximas da tradição das narrativas de Conan e contam como Sláine foi expulso de sua tribo, passou por aventuras e provações ao lado do anão Ukko e finalmente retornou para seu povo tornando-se rei. É nesse ponto que O Deus Guerreiro começa, mudando um pouco o tom da série, como se as histórias contadas até então fossem apenas um prelúdio de uma juventude na qual o personagem ainda não estava apto a encontrar um propósito para sua existência antes de se tornar o rei das lendas.

Após uma pequena retrospectiva de suas aventuras pregressas, O DEUS GUERREIRO se inicia com Sláine como rei, às vésperas de um iminente ataque das tribos do sul seguidoras do Estranho Lorde e também dos fomorianos, criaturas que representam o caos da natureza vindas das profundezas do oceano. Sláine, possuidor de um dos quatro tesouros da Deusa — o Caldeirão de Sangue, que concede mantimentos infinitos, acesso ao mundo divino e regenera os mortos — considera reunir as quatro tribos do norte que seguem a deusa Danu, bem como seus quatro tesouros, para tornar-se o Grande Rei e conduzir as quatro tribos à vitória conjunta contra seus inimigos.

A tradição artística da História em Quadrinhos dos anos 1980 — a chamada Era das Trevas, segundo a terminologia apresentada por Mark Voger — apropria-se de características do Romantismo e do Expressionismo, estilos artísticos que possuem como fundamentos discussões a respeito da subjetividade. Tal perspectiva subjetivista está presente em SLÁINE: O DEUS GUERREIRO, não a só na estrutura formal da narrativa, como no fato dela ser composta em um mise en abyme a partir de um velho Ukko escrevendo o ciclo ou saga sobre os feitos de Sláine ocorridos muitos anos antes, bem como o tema de fundo central às principais discussões do Livro I tratar-se de perspectivas diferentes sobre uma mesma cosmogonia.

O Livro I de SLÁINE: O DEUS GUERREIRO segue essa tradição das histórias em quadrinhos britânicas e estadunidenses da década de 1980 e apresenta uma narrativa a partir de um confronto de perspectivas sobre a natureza dos deuses e dos reis na cultura celta. Na tradição das tribos da Deusa, mantida pelo discurso dos druidas, os reis são considerados Deuses Sol e maridos da Deusa. Enquanto a Danu representa as forças primitivas da vida e uma natureza cheia de potencial, mas caótica tendendo a ser imprevisível, cabe aos Reis-Sol serem a força que domina e controla este poder natural e o volta para o interesse dos homens. Quando Sláine planeja se tornar o Grande Rei e personificar não o deus solar, mas sim o Deus Guerreiro, seu druida o alerta sobre os perigos de se deixar levar pelas vontades não racionais da Deusa e teme o retorno de uma era perdida em que o povo era governado por bruxas. O discurso dos druidas é que a verdadeira paz e salvação só pode ser encontrada no pós-vida, que o sofrimento é parte do processo natural e uma ferramenta para o aprendizado e que a função do rei como deus solar é coordenar as forças naturais.

Entretanto Sláine, ao passar por uma experiência de revelação com a Deusa, passa a acreditar no Deus Guerreiro como uma alternativa para o sistema vigente dominado por conflitos. Enquanto o Deus Sol representa uma perspectiva de masculinidade que tenta se legitimar através de suas virtudes competitivas valendo-se delas para superar adversidades e oponentes, realizar conquistas e moldar o mundo natural de acordo com seus desígnios, o Deus Guerreiro é uma perspectiva masculina que não tenta controlar as forças da natureza, mas as aceita e se coloca como parte dela, que não tenta construir sua imagem a partir de vitórias, mas entende a vida como um processo lúdico não definido por vitórias e derrotas.

A deusa Danu é apresentada por Mills a partir das teorias de Johann Jakob Bachofen (1815-1887) sobre a religiosidade e a ordenação social das culturas pré-históricas europeias se organizaram com base em estruturas matriarcais, bem como as teorias da historiadora da ciência Donna Haraway (1944-) publicadas na mesma época de O Deus Guerreiro que revisavam as hipóteses que superestimavam a importância do homem-caçador no desenvolvimento das sociedades pré-históricas. A deusa Danu é uma divindade que representa a alegoria das forças primordiais da vida e um dos — se não “o” — arquétipos mais antigos do inconsciente coletivo humano. Já os deuses solares são mostrados como representações coletivas, princípios arquetípicos já lapidados como uma construção racionalizada, com uma função social específica e com um discurso pelo menos em parte intencional. As crenças druidas das tribos da Deusa esperam que Sláine se torne um Deus Solar e temem que uma postura diferente possa fazer sua sociedade regredir para um estado de caos e desorganização social que os leve de volta a um mundo natural incivilizado, mas Sláine entende que a sobrevivência de seu povo depende dele conseguir estabelecer uma ruptura na postura do rei que personifica o Deus Sol e destrói e conquista. Essa postura seria justamente do Deus Guerreiro, que não teme ser visto como fraco ou perder sua masculinidade ao buscar a conciliação ao invés do confronto e a integração com a natureza ao invés de controlá-la. Ou seja, Sláine vê a ruptura não como um retrocesso, mas sim como uma renovação necessária. Essa discussão abordada por Mills em Sláine: O Deus Guerreiro a respeito da tradição matriarcal nas culturas pré-históricas europeias e numa construção posterior de imagens de divindades dominantes masculinas como um dispositivo para ocultar a origem das religiões em forças primordiais femininas foi, inclusive, posteriormente retomada por Alan Moore (1953-) nas notas da edição comentada de seu Do Inferno (From Hell), publicado originalmente de 1989 a 1996.

Já os drunes do Estranho Lorde também cultuam a Deusa e creem na salvação no pós-vida e no sofrimento como aprendizado da mesma forma que os druidas, mas parte destas premissas para concluir que contribuem para a salvação dos indivíduos ao exterminarem toda a vida. O Estranho Lorde acredita que entende a natureza de Danu e da vida ao enxergar a beleza na morte.

A partir desse confronto de diferentes perspectivas de uma mesma religiosidade, no Livro II Sláine parte em busca de reunir os quatro tesouros da Deusa e suas tribos. Não como um rei-sol conquistador, mas seguindo o caminho do Deus Guerreiro que ele almeja se tornar, tentando superar suas paixões e orgulho e agindo como um conciliador. Já o Livro III é dedicado ao confronto entre as Tribos da Deusa e seus inimigos, no qual Mills dá uma resolução ao arco narrativo e estabelece ligações entre sua história e os mitos de fundação da Irlanda, como se sua história em quadrinhos foi um prelúdio para os ciclos da tradição imaginária e religiosa irlandesa.

Quanto às características formais da HQ, para se entender a contexto em que as ilustrações de Bisley foram criadas é preciso conhecer a conjuntura das Artes Visuais no período em que foram produzidas. Após o auge do movimento conhecido como Expressionismo Abstrato durante a década de 1950, surgiu no cenário artístico um discurso teórico de que a pintura já havia esgotado seu potencial, e a partir dos anos 1960 surgiram vários movimentos que produziam arte a partir de objetos, proposições e contextos, como a Pop Art, o Minimalismo, as produções de performances artísticas e outras. Durante a década de 1980 surgiu na Europa uma tendência que ficaria conhecida como Retorno À Pintura cuja proposta era resgatar a pintura como linguagem artística e mostrar todo o seu potencial ainda existente para o desenvolvimento da Arte. Nesse contexto surgiu o movimento chamado Neoexpressionismo, que, sob influência das tradições do Romantismo e do Expressionismo e da cultura pós-modernista, propunha a retomada da produção de imagens que ainda eram representações — portanto ainda tinham uma referência do mundo real a qual queriam remeter —, mas que não pretendia-se que fossem representações naturalistas que tendem a imitar a percepção óptica real dos objetos e sujeitos que representavam. Como no Romantismo e no Expressionismo, permitia uma representação de formas a partir de uma perspectiva subjetivista que as deformava de acordo com a carga emocional que o autor projetava sob aquilo que era representado ou a que ele queria induzir seu público. Tal tradição do Neoexpressionismo acabou influenciando ilustradores de histórias em quadrinhos do período, entre eles Bisley e outros, como Bill Sienkiewicz (1958-), bem como se mostrou de acordo com a tradição temática da Era das Trevas, que também tinha como principal referência uma leitura pós-modernista do Romantismo e do Expressionismo.

Assim, as ilustrações de Bisley para SLÁINE: O DEUS GUERREIRO são pinturas neoexpressionistas, que mantêm um vínculo com as formas que pretende representar não perdendo-se completamente em abstrações, mas nas quais permite criar distorções nas formas moldando-as em cada cena de acordo com o efeito emocional pretendido em cada quadro. Bisley segue ainda uma tradição estilística do período de compor a imagem com tons contrastantes, mas não primários, aproximando as cores da paleta usada por pintores do romantismo e evitando as cores primárias puras ou muito intensas comumente associada às histórias em quadrinhos da Era de Prata. As ilustrações de Bisley, como as de Sienkiewicz, são uma das mais marcantes e influentes do estilo tradicional das histórias em quadrinhos britânicas e estadunidenses dos anos 1980.

A edição brasileira da Mythos traz os três livros que contemplam o arco The Horned God em capa dura contendo algumas ilustrações para capas feitas por Bisley, além de um prefácio e um posfácio comentando algumas cenas escritos por Mills. O único grande problema na edição brasileira talvez seja a tradução do título, já que tradicionalmente os deuses guerreiros são divindades conquistadoras que se provam pelo combate, pela violência, controle e autoridade e que tendem a tentar moldar o mundo conforme suas pretensões, justamente a postura tradicional de rei-sol com a qual Sláine pretende romper. Já o arquétipo do Horned God, que em português costuma ser traduzido como “Deus Cornífero”, é uma divindade com uma postura mais lúdica, que é masculina, mas, ainda assim, representa a fertilidade, a vida e em sincronia com a natureza e se reconhecendo como parte dela. Ao traduzir “Horned God” como “Deus Guerreiro”, Sláine acabou recebendo o título daquilo que ele justamente pretende combater.

SLÁINE: O DEUS GUERREIRO é uma excelente obra da tradição da História em Quadrinhos britânica e ocidental dos anos 1980, tanto em suas características formais quanto temáticas. E um bom exemplo para o leitor que quer conhecer a arte do período e ter sua iniciação na cultura celta.


AVALIAÇAO:


AUTOR: Pat MILLS
ILUSTRADOR: Simon BISLEY
TRADUÇAO: Antonio TADEU e Helcio de CARVALHO
EDITORA: Mythos
PUBLICAÇAO: 2018
PÁGINAS: 212


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