Existe um limite para o horror? Até onde nossos olhos, corações e mentes estão dispostos a ir? Em um mundo onde a civilização desmoronou e a humanidade retornou às profundezas da selvageria, “Colapso” nos transporta para um cenário pós-apocalíptico onde a sobrevivência é a única tarefa a ser cumprida, um mundo em tons de vermelho no qual a lei do mais forte é a única lei a ser seguida. No rescaldo de um desastre global, pequenos grupos de sobreviventes enfrentam uma luta desesperada pela vida nesse ambiente estéril e hostil que se tornou nosso planeta.

O planeta finalmente reagiu e quase exterminou a humanidade. Os mares invadiram a terra, e o clima mudou drasticamente. Lugares antes quentes agora congelaram, enquanto regiões frias se transformaram em desertos áridos. O Rio de Janeiro desapareceu sob as águas, São Paulo virou um deserto, e o sul do país ficou coberto de gelo. As pessoas morreram de várias formas: calor extremo, frio intenso, doenças, fome ou pelas mãos de outros sobreviventes. A comida se tornou quase impossível de encontrar. Agora, os poucos que restaram se alimentam uns dos outros. Não existem mais leis nem regras. Quem é mais forte domina, sem medo de punição. Se você é forte, sobrevive até encontrar alguém mais forte. Se é fraco, ou serve aos mais fortes, ou acaba virando comida. Esse é o cenário que o livro “Colapso” apresenta. E, de certa forma, não está tão distante do que poderia acontecer em uma grande catástrofe real.

Colapso” apresenta as histórias de diferentes personagens, divididas por capítulos. Um dos grupos principais é liderado por Camargo, um homem grande e forte. Ele tenta ser justo com aqueles que o seguem, mas age com firmeza quando há perigo ou quando alguém desrespeita as regras. Junto com Camargo estão dois personagens centrais. Um deles é chamado apenas de Garoto, um adolescente sem nome. Quando bebê, ele foi encontrado em uma lata de lixo cheia de baratas pelo Velho, o membro mais idoso do grupo, que decidiu criá-lo. A outra personagem importante é Amanda, companheira de Camargo, uma mulher determinada e extremamente leal a ele.

Nêgo Ju e Samuel são dois homens que vagam em busca de um lugar para sobreviver, agindo de forma cruel e egoísta, sem demonstrar qualquer preocupação com os outros. Durante sua jornada, eles encontram outro grupo composto por Adriano, João, Bia e uma cadela chamada Rainha. Esse grupo veio da região amazônica e também busca um lugar onde a vida seja menos difícil. Adriano, João e Bia são jovens que, apesar das adversidades, ainda acreditam que há pessoas boas no mundo. Eles mantêm a esperança de que é possível viver de forma justa, mesmo em um ambiente tão hostil. O encontro desses dois grupos destaca como as interações entre as pessoas podem ser perigosas e imprevisíveis nesse novo mundo, onde a sobrevivência é a maior prioridade.

Samanta e Pedro são um casal, e Samanta está grávida. Pedro faz o possível para encontrar um lugar mais seguro para o nascimento do bebê, onde a criança possa ter uma chance de sobreviver. Em um mundo com recursos escassos e pouca esperança, essa tarefa é extremamente difícil. Durante sua busca, eles encontram um grupo formado exclusivamente por mulheres, que criaram um refúgio chamado Atenas. A líder do grupo é Diana, e ao seu lado está Anita, uma médica. Ter uma médica poderia ser uma grande ajuda para o nascimento do bebê. No entanto, nem sempre os lugares que parecem promissores são realmente seguros ou acolhedores.

Por fim, temos um personagem conhecido como Espanhol, embora ele seja argentino, vindo de Buenos Aires em busca de outros sobreviventes. No entanto, ao chegar ao Brasil, ele encontra um cenário desolado, sem vida e com pouca esperança. O Espanhol cruza o caminho do grupo de Camargo em um momento muito complicado para eles. Aos poucos, ele conquista a confiança do grupo e se torna uma figura importante, especialmente com uma grande guerra iminente. Ninguém deseja essa batalha, mas todos sabem que ela é inevitável e que terão de enfrentá-la.

No final de “Colapso”, todos esses personagens, ou pelo menos os que sobrevivem, acabam se encontrando. A história culmina em uma grande luta, que não é apenas pela sobrevivência, mas também, e talvez principalmente, por vingança. Neste mundo, as pessoas já não têm esperança nem expectativas de viver por muito tempo. Isso faz com que muitos sejam consumidos pela raiva e pelo ódio. Em um ambiente sem regras, esses sentimentos levam as pessoas a agir de forma selvagem, sem pensar nas consequências. Ninguém se importa mais com o que pode acontecer depois, ou com o bem-estar de outras pessoas. Isso vale até mesmo para aqueles que amam.

Colapso” é um livro difícil de ler. Algumas partes são tão intensas que alguns leitores podem querer abandonar. Duas partes do livro são especialmente difíceis: a história de Nêgo Ju e Samuel com Adriano, João e Bia; e a história de Pedro e Samanta com Diana. Essas partes mostram coisas como violência sexual, canibalismo, desmembramentos, tortura física e mental, além de outras atrocidades. O autor descreve todas essas coisas em detalhes. Ele não tenta esconder nada ou tornar as ações menos chocantes para o leitor. É importante que os leitores saibam disso antes de começar o livro, para que possam decidir se querem ou não ler algo tão intenso e violento.

Colapso” é também um livro tecnicamente bem escrito. A narração, possivelmente de forma intencional, mantém certa distância emocional, evitando que o leitor crie uma conexão demasiadamente profunda com os personagens. Isso, por sua vez, ameniza o impacto emocional das cenas de tortura e morte. No entanto, o texto não é tão frio a ponto de fazer o leitor perder completamente o interesse pelos personagens. Apesar desse equilíbrio, é impossível ficar indiferente diante de certos eventos. O leitor acaba torcendo para que alguns personagens consigam se vingar de seus algozes, enquanto se sente abatido quando outros são mortos.

Colapso” tenta demonstrar que quando as instituições caem e não há mais lei ou ordem, a perda da razoabilidade e da humanidade se torna quase inevitável. O que antes eram princípios fundamentais da convivência – como respeito, solidariedade e empatia – se dissolvem em um cenário onde o medo e a necessidade de sobrevivência tomam o lugar da razão. Sem um sistema que regule o comportamento, os indivíduos se veem forçados a agir por impulso, focados apenas na própria sobrevivência, sem pensar no bem coletivo.

Nesse tipo de mundo, o que prevalece é a força bruta, a capacidade de impor sua vontade sobre os outros. As noções de justiça, igualdade e direitos humanos desaparecem, porque não há quem as defenda ou as faça valer. A convivência pacífica, baseada no diálogo e na cooperação, cede lugar à desconfiança e ao conflito constante, onde cada um está por si, sem espaço para compaixão ou solidariedade.

Com o colapso das instituições, a humanidade perde aquilo que a torna única: a capacidade de criar e sustentar um ambiente onde as pessoas possam viver em harmonia, protegidas por um conjunto de regras e normas que garantem a segurança de todos. Sem isso, o que resta é um ambiente selvagem, onde a vida humana perde seu valor e a sobrevivência de um depende da eliminação ou dominação do outro.

No posfácio, o autor explica que, por mais cruel que sua narrativa possa parecer, ela está longe de ser tão brutal quanto a realidade. Ele menciona crimes reais que refletem o destino de alguns personagens, além de citar eventos históricos onde a brutalidade humana anula qualquer traço de civilidade, razoabilidade ou compaixão. Com essas evidências, o autor desarma possíveis críticas sobre a violência na história, que, em muitos momentos, parece exagerada ou irreal. Ele mostra que, infelizmente, o comportamento cruel e desumano retratado no livro não está tão distante do que seres humanos já foram capazes de fazer na vida real.

Compreendo a intenção do autor e reconheço que as crueldades perpetradas por alguns personagens não são meramente ficcionais, mas sim reflexos de realidades possíveis e, infelizmente, abundantes no mundo real. Contudo, ao construir uma narrativa ficcional, é crucial saber dosar as ações e a construção dos personagens.

Em “Colapso”, poucos personagens possuem um passado bem delineado. Camargo, Garoto, Velho e Diana são os únicos que recebem uma tentativa de explicação para suas ações ou para as circunstâncias que os levaram ao ponto em que a história se desenrola. Mesmo assim, esse desenvolvimento é superficial, fornecendo apenas o mínimo necessário para que o leitor compreenda melhor algumas de suas decisões. Por isso fica difícil escrever sobre a personalidade de cada um deles. O leitor acaba se afeiçoando mais pelo que eles sofrem do que propriamente pelo que eles são.

O restante da narrativa se concentra predominantemente em cenas de violência e morte, deixando pouco espaço para uma construção mais profunda dos personagens e suas motivações. Essa abordagem, embora possa ser eficaz para retratar um cenário caótico, corre o risco de simplificar demais a complexidade das relações humanas em situações extremas.

Compreendo a decisão do autor em adotar uma abordagem descritiva quanto aos eventos físicos que acometem os personagens. As cenas de tortura e morte são retratadas sem amenizações, apresentando a brutalidade em sua forma crua. No entanto, algumas dessas descrições parecem ultrapassar os limites do necessário, especialmente aquelas que envolvem abuso sexual.

Essa minuciosidade excessiva corre o risco de transmitir uma mensagem equivocada, podendo ser interpretada como uma espécie de fetichização da violência. Para um livro que aborda uma temática tão delicada e impactante, essa abordagem pode se tornar problemática, desviando a atenção do leitor das questões centrais da narrativa e potencialmente banalizando o sofrimento retratado.

É importante ressaltar que, embora o realismo seja uma ferramenta poderosa na literatura, deve-se ponderar cuidadosamente sobre o nível de detalhamento gráfico, especialmente em cenas de extrema violência. O desafio reside em encontrar um equilíbrio entre a representação fidedigna da brutalidade e a manutenção da integridade narrativa, sem cair na armadilha da exploração gratuita ou sensacionalista do sofrimento humano.

Posso dar um exemplo do meu raciocínio crítico: em determinado trecho da obra, o autor descreve uma cena de iminente abuso sexual com um nível de detalhamento que suscita questionamentos sobre sua pertinência narrativa. A descrição minuciosa do órgão sexual do agressor, incluindo detalhes como a coloração e a pulsação das veias devido à excitação, parece desviar-se do propósito principal de narrar os eventos.

Essa abordagem levanta a questão de onde reside o limite entre a representação realista e a potencial erotização de um ato de violência. A narrativa, neste ponto, aparenta distanciar-se do objetivo de contar uma história coesa e impactante, arriscando-se a transformar um momento de tensão e horror em algo que beira o voyeurismo. Tal nível de detalhamento gráfico em uma cena de violência sexual pode ser interpretado como uma tentativa inoportuna de adicionar elementos eróticos a um contexto extremamente delicado. Isso não apenas compromete a integridade da narrativa, mas também pode diminuir o impacto emocional e moral que a cena deveria provocar, potencialmente trivializando a gravidade da situação retratada.

Em outro episódio da narrativa, uma personagem, após ser submetida a diversos abusos e torturas, recebe alimento. Inicialmente aliviada por saciar sua fome, ela logo descobre estar consumindo partes de outro personagem. Este momento, já intrinsecamente chocante, é intensificado pela descrição meticulosa do autor. O texto detalha minuciosamente o conteúdo do prato, enfatizando sua viscosidade e o formato dos pedaços.

A cena prossegue com a personagem vomitando e sendo forçada a ingerir novamente o que expeliu, com o autor mais uma vez se detendo nos pormenores do conteúdo regurgitado. Enquanto o intuito possa ser transmitir o horror extremo da situação, o nível de detalhamento corre o risco de transformar uma experiência de leitura reflexiva em um exercício de resistência ao conteúdo explícito.

É possível que a linha entre a representação da brutalidade e a exploração gratuita do sofrimento tenha sido ultrapassada devido à inexperiência do autor, considerando que “Colapso” é sua obra de estreia. No entanto, essa suposição não é conclusiva. Essa característica impede que a obra seja considerada uma leitura excepcional.

Quando a narrativa transita do realismo para o sensacionalismo, há uma perda significativa de força e qualidade. Um processo editorial mais rigoroso poderia ter evitado essa falha, mas é importante reconhecer que, no Brasil, a função de editor, no sentido pleno do termo, não é tão desenvolvida quanto em outros países.

Apesar dessas limitações, “Colapso” ainda merece ser recomendado. Contudo, é prudente alertar leitores mais sensíveis sobre o conteúdo gráfico e por vezes excessivo da obra. A narrativa, embora impactante, ocasionalmente cruza a fronteira entre o chocante necessário e o gratuito, o que pode comprometer a experiência de leitura para alguns.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Roberto Denser
EDITORA: Darkside
PUBLICAÇÃO: 2023
PÁGINAS: 448
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