Samantha era uma total alienígena no conceituado e altamente seleto curso de artes da Universidade Warren. Localizada na Nova Inglaterra, a instituição é famosa por receber herdeiros acostumados a todos os privilégios reservados apenas para a elite. Tímida por natureza, Samantha só está ali porque conseguiu uma bolsa de estudos. Ela não se enquadra naquele lugar, de forma que prefere conviver com a própria imaginação sombria a ter que lidar com outras pessoas, em especial suas colegas da turma de escrita criativa, um grupo de garotas ricas, lindas e mimadas que chamam umas às outras de “Bunny”.

No entanto, tudo muda quando Samantha recebe um convite para uma das famosas festas das Bunnies. De imediato, ela é conquistada pelo estilo de vida das colegas. Mesmo que não entenda os motivos pelos quais foi aceita por uma turma tão esnobe, ela fica cada vez mais fascinada, chegando até mesmo a deixar de lado Ava, sua única amiga até então. À medida que se torna íntima das meninas, sua intuição lhe diz que há algo de muito errado ali. Essa desconfiança é confirmada quando é finalmente convidada para um dos “workshops” das Bunnies, uma fachada para algo de muito mais sinistro, que vai mudar a vida de Samantha – e de toda a Universidade Warren – para sempre.

Dois alertas importantes. Primeiro é desconsiderar o tom da sinopse como se fosse um thriller. “BUNNY” é um terror psicológico, provocativo, que mergulha nas profundezas da imaginação e da loucura. O leitor precisa estar ciente de que irá passar por uma narrativa em primeira pessoa, onde tudo pode ser uma mentira, fruto da imaginação da protagonista. O segundo alerta é que é impossível analisar a história sem mencionar o que acontece nela. Então, a partir daqui, eu irei comentar várias partes da trama, menos o final.

O livro é dividido em três partes, todas elas narradas por Samantha. A primeira começa em um nível crescente de mistério e desconfianças. Quando Samantha participa do ritual das Bunnies, ela é recebida com bebidas estranhas e comprimidos, entrando em um estado em que não consegue ter certeza do que é real ou não. O que ela testemunha, é as quatro garotas realizando uma cerimônia onde transformam coelhos em garotos. A transformação se dá através da explosão dos animais, trechos descritos com bastante detalhe e sangue, e o aparecimento do garoto em algum local da casa onde realizam o encontro. Ele sempre vem mal formado, com lábios cortados, ou patas no lugar das mãos, e seus membros sexuais não funcionam. Quando a má formação é muito extensa, as garotas matam a criação com o uso de um machado, o que também é descrito nos detalhes.

A segunda parte é a mais confusa e se torna quase impossível saber o que é real ou não. Samantha é totalmente inserida no grupo e começa a falar e a pensar de maneira coletiva, usando plural para todas as frases e perdendo seu nome e individualidade, passando a tratar e ser tratada apenas por bunnie. Aos poucos, ela é resgatada por Ava, sua amiga, mas nesse processo, consegue fazer sua própria criação, não com coelhos, mas com um cervo, e surge Max, um garoto perfeito, misterioso, a criação almejada pelas Bunnies, mas nunca alcançada pelas mesmas.

A terceira parte é o clímax da história, quando algumas revelações são feitas. Mais especificamente em relação a Max, Ava e qual o papel das Bunnies e de Samantha em todo o enredo.

Minha PRIMEIRA TEORIA seria a mais simples e literal: uma história que mistura o terror e o fantástico. Samantha e as Bunnies realmente teriam a capacidade de transformar animais em seres humanos. Sam de maneira mais completa e eficiente, enquanto as Bunnies de maneira imperfeita e incompleta. As criações das Bunnies seriam mortas e enterradas ou abandonadas em algum ponto remoto da cidade, o que explicaria as notícias de pessoas assassinadas e decapitadas. Ava seria a primeira criação inconsciente de Sam, e Max a segunda. Ao final, Sam se gradua e vai embora.

Eu penso que vários pontos corroboram essa teoria, mas muitos mais vão contra ela. Não há uma explicação para o que é feito com os corpos, que são muitos, nem o que acontece com as criações abandonadas. Com tantos corpos sendo encontrados e considerados assassinatos, haveriam investigações, mesmo dentro de Warren. E os garotos abandonados em algum momento seriam encontrados e haveriam investigações, algo que certamente levaria às garotas. Todas as faltas de consequências apontam para que o que acontece não seja real.

A SEGUNDA TEORIA seria uma metáfora para o processo criativo da escrita. Os coelhos transformados em garotos imperfeitos, que são mortos em seguida, seriam as tentativas de produzir algo de qualidade e seu descarte posterior quando não se consegue. Samantha seria convidada para fazer parte das Bunnies, porque as quatro garotas reconhecem em Samantha a capacidade de criar algo completo e com qualidade e querem absorver essa capacidade.

O diferencial de Samantha se destaca na sua incapacidade de usar a mesma matéria prima para produzir algo que as Bunnies, no caso, os coelhos, mas sim outros animais maiores, mais complexos e mais bonitos, como o cervo e o cisne. Além de que para produzir com base nesses animais, Samantha não os destrói, mas os transforma, ao contrário das Bunnies, que precisam explodir os coelhos. Ou seja, para Samantha, o processo criativo não é destruidor, traumático, mas transformador, natural. E para as Bunnies, acontece o contrário, é um processo doloroso, traumatizante, violento, porque elas não conseguem de maneira natural.

E o fato de todas as criações serem incapazes de produzir prazer sexual, uma vez que seus membros não funcionam, pode ser uma crítica sobre os limites da criação artística e científica. Assim como os coelhos transformados, as criações humanas – sejam elas artísticas, literárias ou científicas – podem imitar a forma, mas não necessariamente capturar a essência ou a complexidade da realidade.

A minha TERCEIRA TEORIA é a que mais me satisfaz e vou me estender mais nela para tentar explicar minhas percepções. Na verdade, Samantha não está em uma Universidade, mas em uma instituição psiquiátrica para tratar de sua esquizofrenia. Em qualquer teoria, é bem óbvio que Samantha passa por problemas psicológicos e que sua narrativa é permeada por mentiras e fantasias. Ela mesma afirma isso em diversos trechos. Muitos deles são compostos por ações que ela afirma estar imaginando antes que eles realmente aconteçam. E muitas vezes não acontecem, e fica apenas na mente de Samantha.

Perto do final da história, Samantha vê uma pessoa dentro do ônibus, que parece sua avó falecida, lendo um panfleto sobre esquizofrenia e falando em voz alta quais os sintomas que ela tem. O trecho termina com uma insinuação de que Samantha já tem todos os “ingredientes da receita”. Pessoas com esquizofrenia podem parecer como se tivessem perdido o contato com a realidade, mas não é uma desordem de múltiplas personalidades. Elas passam por alucinações (ver ou ouvir coisas que não estão presentes), delírios (crenças falsas persistentes), pensamento desorganizado e comportamentos agitados ou anormais, sintomas que Samantha apresenta por toda a narrativa.

Também perto do final do livro, há dois capítulos particularmente interessantes. Ambos envolvem a ida de Samantha à Caverna, uma espécie de auditório, para participar de um Seminário Emergencial Obrigatório. Na convocação é dito para ir preparada para Cutucar a Ferida, assim mesmo, com letras iniciais maiúsculas. No capítulo em que Samantha vai pela primeira vez, as Bunnies também vão. Por todo o livro, Samantha chama as Bunnies por apelidos que representam suas personalidades: Kira é a Boneca Sinistra; Victoria é Vinheta; Eleanor é Duquesa; e Caroline é Cupcake. Mas esse é o único capítulo em que as quatro são chamadas por seus nomes reais e não pelos apelidos.

Todo esse capítulo se parece muito com uma terapia em grupo, onde as cinco mulheres precisam dar algo consistente que comprove que estão melhorando de alguma maneira. Por isso deixam a fantasia de lado e usam seus nomes reais. Cada uma delas apresenta parte dos textos que produziram e são avaliadas pelos professores, como o resultado de um tratamento. Samantha é a única que deixa a desejar e isso causa um desapontamento. Então, apenas um capítulo depois, Samantha precisa voltar à caverna, desta vez sozinha, e é agarrada à força, amarrada e após sentir uma pontada na nuca, perde os sentidos, o que também se assemelha a quando é necessário medicar um doente mental que não correspondeu ao esperado.

As Bunnies realmente existiriam, mas seriam pacientes de Warren. Os encontros de Samantha com as quatro são regados de bebidas estranhas e comprimidos, realçando que o que acontece depois, é fruto de delírio. São eles os trechos mais confusos da narrativa e onde Samantha se comporta de maneira mais perdida, longe da realidade. Os coelhos e os homens em que se transformam, parecem longe de serem reais, não apenas pela aparência, mas pelo comportamento. Já a incapacidade sexual seria a representação de estarem presas em uma instituição mental onde o sexo é proibido e por isso as criações reproduzem esse estado emocional.

A Universidade Warren em nenhum momento parece uma universidade. Há casas e quartos dispersos que não correspondem ao que conhecemos de alojamentos estudantis. Aliás, quase nenhum estudante é descrito ou se relaciona com os personagens. A cidade fora de Warren é inacessível e considerada perigosa. Samantha só tem uma aula, que divide com as Bunnies, como seria um tratamento psico-social com outros pacientes. Os professores nunca aparecem dando aulas, apenas realizando acompanhamentos e cobrando resultados. Não há provas ou testes.

Ao final da história, acontece uma formatura, onde é dito várias vezes que o diploma é falso, apenas decorativo. Samantha recebe o seu, mas quando indagada sobre o que fará agora, ela apenas diz que não sabe e que talvez fique mais um tempo em Warren. Nenhum aluno fica em uma Universidade após a conclusão do curso, mas uma pessoa internada em um hospital tem essa prerrogativa.

Penso que Ava, Max e Jonah são produtos da imaginação esquizofrénica de Samantha. Não sou estudioso da psicologia, mas os três personagens se assemelham aos componentes da psique humana, que pode ser dividida em três partes principais: o id, o ego e o superego. Essas três partes interagem entre si e desempenham papéis importantes na formação do comportamento.

Max seria o id, a parte mais primitiva da psique. É a fonte dos impulsos biológicos e desejos primitivos, como a agressão e o impulso sexual. Max é misterioso, desperta a libido de Samantha, que fica desapontada quando descobre que ele está se relacionando com Ava. Aliás, Max é desejado pelas quatro Bunnies, de uma maneira compulsiva e obsessiva.

Ava seria o ego, que atua como o mediador entre o id e as demandas do mundo externo. O ego opera principalmente no nível consciente e pré-consciente e é regido pelo princípio da realidade, ajudando a tomar decisões racionais e a planejar ações. Ava é a personagem mais racional da história, que consegue manter Samantha dentro de uma possível realidade e que a tenta proteger das Bunnies e de qualquer ameaça externa. Ava é razão pura e a âncora que mantém Samantha equilibrada, quando está por perto.

Jonah seria o superego, que atua como uma espécie de consciência moral. Ele desenvolve-se a partir das normas, valores e regras que uma pessoa aprende. O superego pode punir o ego através da culpa e da vergonha quando as regras não são seguidas, ou pode recompensar com sentimentos de orgulho e satisfação quando o comportamento é adequado. Jonah sempre aparece em alguns momentos e faz com que Samantha perceba que algo não está certo, ele meio que é um farol. No final da história, na última página, acontece um diálogo de Samantha com Jonah, onde ela faz uma pergunta, e quem responde deixa de ser Jonah e passa a ser outra coisa. É a parte da história que mais evidencia de que todos os três personagens são fruto da imaginação de Samantha.

Minha QUARTA TEORIA, e última, seria a mais irônica. Toda a história seria um desabafo de Mona Awad sobre sua própria experiência durante seus estudos na Brown University nos Estados Unidos, onde recebeu um MFA em Escrita Criativa, e seu PhD em Escritura Criativa e Literatura Inglesa da University of Denver. Há vários trechos e diálogos no livro que comentam que alguns textos criados pelos Bunnies são confusos, complicados, cheios de metáforas, de uma maneira que apenas quem os escreveu seria capaz de compreender.

Os garotos criados através dos coelhos poderiam ser uma metáfora para a incapacidade masculina de dar um real prazer sexual para a mulher, que o homem é mais útil em cortejar e se manter presente como um apoio emocional. Por isso veem do coelho, um animal que reproduz em quantidade, mas não em qualidade. E isso poderia ser um reflexo de relacionamentos da autora durante o ensino ou mesmo de maneira mais pessoal.

Todo o resto, seria apenas um ensaio com muita subjetividade, muitas partes que reproduzem momentos da vida da autora, pensamentos, mensagens, que são impossíveis de relacionar ou compreender completamente, porque são experimentos pessoais que servem mais como desabafo e deixam o leitor aberto para criar as teorias que quiser, se nunca ser possível concluir com certeza sobre o que realmente é a história, uma vez que a mesma é uma reprodução pessoal que só pode ser absorvida por quem escreveu.

Qual teoria seria a correta? É impossível dizer. Só a autora poderia responder isso. Mas talvez nem mesmo ela saiba, porque um autor perde o controle sobre sua obra assim que as pessoas começam a lê-la. “BUNNY” é um livro que cada pessoa interpreta de um jeito diferente, influenciado por sua própria vida, experiências e imaginação. Livros assim são abertos a várias interpretações, provocam muitos debates e todas as opiniões contam. Acho que é o tipo de literatura que realmente faz pensar. É um livro excelente.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Mona Awad
TRADUÇÃO: Gabriela Peres Gomes
EDITORA: Globo Livros
PUBLICAÇÃO: 2024
PÁGINAS: 336
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