China, final dos anos 1960. Enquanto o país inteiro está sendo devastado pela violência da Revolução Cultural, um pequeno grupo de astrofísicos, militares e engenheiros começa um projeto ultrassecreto envolvendo ondas sonoras e seres extraterrestres. Uma decisão tomada por um desses cientistas mudará para sempre o destino da humanidade e, cinquenta anos depois, uma civilização alienígena à beira do colapso planeja uma invasão.
O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS inicia-se no contexto da Revolução Cultural na China, cenário onde a personagem Ye Wenjie presencia a morte trágica de seu pai por uma turba irada. Este evento traumático leva Ye a desenvolver um profundo ceticismo em relação à natureza humana. Com o passar dos anos, ela começa a trabalhar em uma estação secreta, destinada a estabelecer comunicação com civilizações extraterrestres. Durante seu trabalho, Ye intercepta um sinal, aconselhando-a a cessar todas as transmissões. A mensagem adverte que qualquer tentativa de resposta atrairá a atenção dessa civilização alienígena avançada, que procura um novo planeta para colonizar, representando uma ameaça potencial à Terra.
Paralelamente, na era contemporânea, o cientista Wang Miao encontra-se com um intrigante jogo de realidade virtual intitulado “Três Corpos”. O jogo revela os complexos desafios enfrentados pelos seres de Trisolaris, um planeta assim denominado devido à instabilidade gravitacional de seu sistema solar triplo. À medida que Wang se aprofunda no jogo, ele percebe que sua natureza é mais profunda e perturbadora, indicando uma iminente ameaça extraterrestre. O jogo serve como uma janela para as realidades científicas e políticas de Trisolaris, e Wang Miao se vê diante da iminente possibilidade de um confronto cataclísmico entre a Terra e os habitantes de Trisolaris.
As primeiras páginas do livro são marcantes e podem ser surpreendentes para quem não está familiarizado com a história da China, especialmente durante a Revolução Cultural. Este período, que se estendeu de 1966 a 1976, foi marcado por intensa turbulência social, política e cultural. Iniciada por Mao Tsé-Tung, líder do Partido Comunista da China, a revolução teve como meta consolidar seu poder e manter a pureza da ideologia comunista, eliminando influências capitalistas e tradicionais na sociedade chinesa.
A campanha empreendida buscava extinguir costumes, cultura, hábitos e ideias vistos como antagônicos aos ideais comunistas. Os Guardas Vermelhos, formados majoritariamente por jovens estudantes, emergiram como promotores fervorosos dessa transformação, frequentemente empregando violência para destituir as chamadas “autoridades burguesas” em escolas, órgãos governamentais e no meio cultural. Nesse processo, muitos intelectuais, funcionários públicos, artistas e outros foram estigmatizados como “inimigos do estado”, enfrentando humilhação pública, prisão, tortura e até a morte.
A veneração a Mao Tsé-Tung intensificou-se durante esse tempo, com a sua figura e palavras, notadamente através do “Livro Vermelho”, permeando todos os aspectos da vida na China. A Revolução Cultural teve repercussões profundas, interrompendo a economia e o sistema educacional e levando à destruição de inúmeras obras de arte e patrimônios culturais. O movimento começou a arrefecer somente após a morte de Mao em 1976 e encerrou-se oficialmente no mesmo ano com a detenção da “Banda dos Quatro”, grupo liderado pela esposa de Mao, Jiang Qing, acusados de serem os arquitetos dos aspectos mais extremos daquele período.
Compreender o cenário da Revolução Cultural é crucial para entender as motivações de Ye Wenjie, que se transformaram profundamente após testemunhar o assassinato de seu pai, um professor de física, pelas mãos dos Guardas Vermelhos. O crime ocorreu em público, motivado pela recusa de seu pai em renunciar aos princípios científicos estabelecidos por Einstein, considerados contrarrevolucionários pelo regime. Este evento traumático, aliado à perda de liberdade pessoal e intelectual que permeou esse período, moldou o caráter e as decisões de Ye Wenjie.
Essa experiência angustiante influencia Ye ao receber uma mensagem extraterrestre, que a aconselha a não responder para proteger a Terra de possíveis ameaças. Essa comunicação intergaláctica coloca-a em um dilema profundo: responder e estabelecer um contato, arriscando a segurança do planeta, ou manter silêncio, evitando potenciais riscos. As memórias de opressão e a perda que sofreu durante a Revolução Cultural são fatores determinantes em sua hesitação e reflexão sobre as consequências de suas ações.
A título de curiosidade, nesse período, realmente foi identificada uma mensagem vinda do espaço a que deram o nome de WOW!. A mensagem foi um sinal de rádio incomum detectado pelo projeto SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence) em 15 de agosto de 1977. Captado pelo radiotelescópio Big Ear da Universidade Estadual de Ohio, o sinal se destacou por sua intensidade e duração, levando o astrônomo Jerry R. Ehman, que analisava os dados, a escrever a expressão “WOW!” ao lado do registro impresso do sinal.
O sinal foi detectado na frequência de aproximadamente 1.420 MHz, que é a frequência natural do hidrogênio, o elemento mais abundante no universo, e por isso é considerada uma frequência potencial para comunicações interestelares. O sinal durou 72 segundos, que é o período em que o radiotelescópio Big Ear, devido à sua construção e ao movimento da Terra, podia observar uma fonte fixa no espaço, e tinha uma intensidade 30 vezes superior ao ruído de fundo, o que o tornava notavelmente distinto e significativo.
Apesar de sua aparência promissora, a origem do sinal “WOW!” nunca foi definitivamente explicada. Ele não foi detectado novamente, apesar de várias tentativas de observação na mesma frequência e região do espaço. Isso levou a diversas especulações sobre sua origem, incluindo a possibilidade de ser uma transmissão de uma civilização extraterrestre, embora outras explicações, como satélites terrestres ou fenômenos astronômicos naturais, também tenham sido consideradas.
Grande parte da narrativa de O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS é exatamente sobre esse problema, que é abordado e discutido no jogo virtual descoberto por Wang Miao. Na física, o problema dos três corpos refere-se ao desafio de prever os movimentos de três objetos celestes, que interagem entre si através da gravitação. Originário da mecânica celeste, este problema busca entender como três corpos, como planetas, estrelas ou satélites, influenciam um ao outro em seus movimentos pelo espaço.
O problema começa com a aplicação das leis de Newton da gravitação e do movimento. Enquanto o movimento de dois corpos, como a Terra e a Lua, pode ser calculado com relativa facilidade usando estas leis (problema dos dois corpos), a adição de um terceiro corpo introduz uma complexidade que torna as equações muito mais difíceis de resolver.
Diferentemente do problema dos dois corpos, que tem soluções precisas e previsíveis, o problema dos três corpos não tem uma solução geral que possa descrever o movimento dos corpos para todas as configurações iniciais possíveis. Isso significa que pequenas variações nas condições iniciais podem levar a grandes diferenças no comportamento a longo prazo, um fenômeno conhecido como sensibilidade às condições iniciais ou efeito borboleta.
No livro, assim como na realidade, o problema dos três corpos não possui uma solução definitiva, o que sugere um enigma de natureza diferente. Esse desafio mais profundo, embora pareça mais simples e óbvio, destaca a importância crítica da Terra para os alienígenas. Revela-se a extrema determinação desses seres extraterrestres em sua missão de conquista, ao mesmo tempo em que sublinha a vulnerabilidade potencial da humanidade diante de tal ameaça. A narrativa usa a complexidade do problema dos três corpos para simbolizar a intrincada relação entre as civilizações humanas e alienígenas, enfatizando a urgência e a gravidade da situação, bem como o desafio iminente que a humanidade enfrenta em compreender e responder à ameaça extraterrestre.
O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS se destaca por suas constantes reviravoltas e revelações surpreendentes, mergulhando no âmago da capacidade humana de enfrentar o desconhecido e na complexidade das relações entre civilizações distintas. Este livro é frequentemente louvado por sua inovação, rigor científico e profundas reflexões filosóficas, consolidando sua posição como uma peça notável na ficção científica moderna. No entanto, não é uma leitura que eu recomendaria para todos indiscriminadamente. Acredito que para apreciar plenamente esta obra, o leitor deve ter uma inclinação para ficção científica de alta qualidade, aquela que é enraizada em complexidade, autenticidade e profundidade, entrelaçada com questões científicas reais. A narrativa, intrincada e cativante, reflete a complexidade da ciência que serve de base para a trama, exigindo um apreço por um estilo de ficção científica que é tanto intelectual quanto imaginativo.
Parafraseando Spock, um dos meus personagens favoritos de ficção científica: “Fascinante!”
AVALIAÇÃO:
AUTOR: Cixin Liu TRADUÇÃO: Leonardo Alves EDITORA: Suma PUBLICAÇÃO: 2016 PÁGINAS: 320 COMPRE: Amazon |