Faz décadas que Dolores Claiborne trabalha para Vera Donovan, milionária dona de uma mansão na ilha Little Tall, no Maine. Determinada, com três filhos para criar, Dolores enfrentou desde o início a personalidade tempestuosa da patroa e, diferente de incontáveis antecessoras, conquistou a confiança da mulher e a estabilidade no emprego.
Quando Vera morre em um acidente, porém, todas as suspeitas caem sobre a funcionária. Questionada pelas autoridades, Dolores faz uma confissão e revela, durante seu testemunho, algo inesperado pela polícia: uma história sobre um relacionamento abusivo e a misteriosa morte de seu marido, que ocorreu trinta anos antes, em Little Tall.
No Brasil, DOLORES CLAIBORNE foi lançado pela primeira vez em 1995, recebendo o título de ECLIPSE TOTAL. Esse título, apesar de não destacar diretamente o nome da protagonista, Dolores, tem uma conexão profunda com a trama do livro. O motivo por trás dessa escolha é o papel crucial que um eclipse solar desempenha na história. Durante um momento chave da narrativa, um eclipse serve como pano de fundo para eventos dramáticos e revelações importantes.
A escolha do título ECLIPSE TOTAL não é apenas uma referência ao fenômeno astronômico, mas também carrega um significado simbólico. O eclipse representa temas de escuridão, ocultamento e a subsequente revelação de segredos, além de simbolizar as mudanças profundas na vida dos personagens. Esses elementos de transformação e revelação são essenciais para entender as camadas complexas da história e as motivações de Dolores Claiborne e de Vera.
O livro é contado pela própria Dolores, que narra sua vida durante um interrogatório policial depois da morte de Vera Donovan. Ao ser questionada pelos detetives, Dolores opta por revelar sua história pessoal, marcada por uma série de dificuldades, incluindo abuso e violência dentro de casa. Ela relata como era viver com Joe St. George, seu marido, que se mostrava violento e tinha problemas com álcool. Dolores aguentou essa situação por muito tempo, mas ao se deparar com aspectos ainda mais sombrios do comportamento de Joe, ela decide que precisa pôr um fim nesse ciclo de sofrimento de forma decisiva.
Porém, as decisões que Dolores toma para acabar com o abuso de Joe têm um preço alto: o distanciamento de sua filha mais velha, Selena. A relação entre mãe e filha se deteriora, pois Selena, ainda muito jovem, não consegue entender completamente as razões por trás das atitudes de sua mãe. Ela tem dificuldade em perceber a verdadeira natureza de Joe, não reconhecendo inteiramente o quanto ele era abusivo. Selena também luta para aceitar e processar o que ela mesma sofreu nas mãos do pai.
Enquanto conta sua história, Dolores tece também o relato de sua relação com Vera Donovan, uma ligação complexa e cheia de nuances, entrelaçada com momentos de tensão e uma conexão profunda. Iniciando como empregada doméstica na casa de Vera, Dolores, com o passar dos anos, constrói um relacionamento com ela que transcende o convencional vínculo entre empregador e empregado.
As interações entre Dolores e Vera evoluem para uma troca em que dependem fortemente uma da outra, embora de maneiras diferentes. Vera, com sua personalidade forte e por vezes dominadora, exerce uma influência significativa sobre Dolores, que, por sua vez, se torna uma das poucas pessoas em quem Vera confia e depende.
Vera é uma mulher rica, mas conhecida por ser complicada, por vezes abusiva e muito exigente. Em contraste, Dolores se mostra uma pessoa forte, resiliente e decidida. Apesar do comportamento severo de Vera, Dolores consegue enxergar aspectos da personalidade dela que muitos ignoram, como sua solidão e vulnerabilidade. Com o passar do tempo, as duas desenvolvem uma compreensão implícita, formando um tipo de respeito mútuo que raramente é verbalizado.
Vera, reconhecendo algo especial em Dolores, passa a confiar nela mais do que em qualquer outra pessoa. Ela compartilha segredos e detalhes pessoais que mantém ocultos dos demais, e até orienta Dolores em questões íntimas, como no enfrentamento do abuso de seu marido. Apesar das muitas contradições e desafios em sua relação, marcada por episódios de tensão e conflito, existe um reconhecimento recíproco de suas forças e capacidade de superação. Essa percepção compartilhada fortalece a ligação entre Dolores e Vera, construindo um vínculo profundo e persistente até os últimos dias de vida de Vera.
O reconhecimento e o respeito mútuo entre as duas mulheres se manifestam de maneira sutil, através de olhares significativos, frases de duplo sentido e pequenos atos cotidianos, mais do que por conversas diretas. Essa abordagem do autor é particularmente eficaz, pois a comunicação implícita entre elas consegue transmitir respeito mútuo, cumplicidade e intimidade. Essa capacidade de se entenderem profundamente, captando as nuances do comportamento e dos sentimentos uma da outra sem palavras explícitas, destaca a profundidade da conexão entre elas. Essa conexão é tão intensa que gestos e olhares são suficientes para expressar uma gama complexa de emoções e pensamentos, demonstrando um nível de entendimento que só é possível em uma relação de profunda conexão e entendimento mútuo.
DOLORES CLAIBORNE confirma a versatilidade de Stephen King como escritor, mostrando que ele vai além da criatividade. A forma como a história é contada, de maneira direta, sem divisão em capítulos, pausas ou diálogos tradicionais entre personagens, reflete de maneira astuta e perspicaz a personalidade marcante e dominadora de Dolores. Na narrativa, os leitores não têm acesso às perguntas feitas pelos detetives, conhecendo-as apenas quando Dolores as repete para esclarecer sua compreensão, deixando-nos inferir muitas delas pelas respostas que ela dá. Esse método não só constrói um suspense intrigante, mas também amplifica a força da personagem, tornando Dolores ainda mais impactante e complexa, evidenciando seu papel central e seu controle sobre a própria história que está sendo desvendada.
Além da estrutura narrativa, a habilidade do autor se destaca na criação de um antagonista para Dolores: um detetive que a segue obstinadamente desde a morte de Joe, convencido de que ela foi a responsável, apesar das aparências de um acidente. Esse detetive, anos mais tarde, tenta usar a morte de Vera como uma oportunidade para acusar Dolores de dois assassinatos, demonstrando uma obsessão pela verdade. No entanto, como a história é contada unicamente do ponto de vista de Dolores, percebemos o detetive apenas através das descrições que ela faz, incluindo suas perguntas e comportamentos durante o interrogatório. Esse aspecto da narrativa realça a percepção de Dolores e como ela enfrenta as acusações de maneira poderosa e controlada, evidenciando o talento do autor em construir a tensão e complexidade de um personagem através dos olhos de outro.
DOLORES CLAIBORNE revela rapidamente, nas suas primeiras páginas, os fatos essenciais sobre as mortes de Joe e Vera. Isso pode dar a impressão de que a única coisa que resta é entender como tudo aconteceu. No entanto, isso é um engano. A narrativa não apenas desenrola os eventos que levaram a esses desfechos, mas também reserva surpresas impactantes na parte final. Essas revelações não são aleatórias; elas se apoiam em pistas cuidadosamente distribuídas ao longo do relato de Dolores. Esses segredos revelados tocam fundo no coração do leitor e adicionam camadas de complexidade a Dolores e Vera, transformando-as em personagens fascinantes e memoráveis. A maneira como esses elementos são entrelaçados enriquece a história, deixando uma impressão duradoura e um brilho na narrativa que cativa e emociona.
DOLORES CLAIBORNE é uma exploração intensa da moralidade, do abuso, da sobrevivência e das complexidades das relações humanas. Stephen King cria uma narrativa poderosa e emocional, onde o verdadeiro horror reside nos atos cruéis que as pessoas cometem umas contra as outras, e não no sobrenatural. Uma das minhas melhores leituras da vida.
AVALIAÇÃO:
AUTOR: Stephen King TRADUÇÃO: Regiane Winarski EDITORA: Suma PUBLICAÇÃO: 2024 PÁGINAS: 240 COMPRE: Amazon |