Ainda é madrugada e, em uma falida cidade do Meio-Oeste dos Estados Unidos, centenas de pessoas fazem fila em uma feira de empregos, desesperadas para conseguir trabalho. De repente, um único carro surge, avançando para a multidão. O motorista do Mercedes acelera, recua, acelera novamente e não descansa até atropelar o máximo de pessoas que consegue, deixando oito mortos e vários feridos. Ele escapa impune. Meses depois, ao receber uma carta de alguém que se autodenomina o Assassino do Mercedes, o ex-detetive Bill Hodges desperta de sua aposentadoria deprimida e resolve encontrar o culpado por conta própria.

MR. MERCEDES é o primeiro livro da trilogia de King que tem o detetive aposentado Bill Hodges como personagem principal. Os outros dois volumes são ACHADOS E PERDIDOS (2015), que é sobre o assassinato de um famoso escritos décadas atrás; e ÚLTIMO TURNO (2016) que finaliza a trilogia com o retorno de um personagem improvável do primeiro volume e também insere o fantástico e o sobrenatural na trama. Ambos os livros expandem o mundo e os personagens introduzidos em MR. MERCEDES e oferecem uma mistura de suspense policial com elementos sobrenaturais, típicos de Stephen King.

Diferente de muitos dos outros trabalhos de Stephen King, MR. MERCEDES não é uma história de terror sobrenatural, mas um thriller policial direto. King demonstra sua habilidade em mergulhar na mente de personagens perturbados e em criar um suspense palpável. A narrativa é fluida, com capítulos curtos que alternam entre a perspectiva de Hodges e de Hartsfield, criando um senso de urgência e mantendo o leitor ansioso pelo próximo capítulo.

Bill Hodges lida com a depressão pós-aposentadoria, não se enquadrando no molde tradicional de herói. Ele é um homem mais velho, enfrentando problemas de saúde e o peso do tédio e da melancolia típicos da aposentadoria. Quando Mr. Mercedes começa a provocá-lo, Hodges encontra um renovado sentido de propósito. Embora teimoso, impulsivo e por vezes descuidado – colocando em risco aqueles que ama – sua capacidade de conectar-se profundamente com as pessoas se destaca na narrativa. A complexidade de Hodges reflete a maestria de Stephen King em esculpir personagens que ressoam com os leitores. Ele não é apenas um detetive em sua jornada por justiça, mas também um homem confrontando sua mortalidade, arrependimentos passados e buscando fazer a diferença no tempo que ainda possui.

Brady Hartsfield, o assassino de MR. MERCEDES, é um sociopata. Enquanto sua inteligência e habilidades técnicas são indiscutíveis, sua falta de empatia e seu desejo de causar dor e sofrimento são igualmente evidentes. Ele é impulsionado por um mix tóxico de vingança, raiva e um desejo profundo de ser reconhecido e temido. A relação que ele mantém com sua mãe, Deborah, é profundamente perturbada e incestuosa. Deborah é retratada como negligente, abusiva e, em muitos aspectos, tão psicótica quanto o próprio Brady. Ambos são responsáveis por um dos trechos mais repugnantes do livro, onde cometem um ato hediondo contra uma criança. Brady Hartsfield é um antagonista que é mais do que um assassino. Através de flashbacks e introspecções, King nos dá uma visão perturbadora de como a combinação de trauma, negligência e abuso pode criar uma tempestade perfeita de malevolência.

Jerome é um adolescente inteligente, astuto e com grande aptidão para a tecnologia. A relação entre Jerome e Hodges começa como uma relação profissional, com Jerome fazendo pequenos trabalhos para Hodges, mas rapidamente evolui para uma amizade genuína e uma parceria de investigação. Ele frequentemente auxilia Hodges em assuntos tecnológicos, especialmente quando Hodges se sente fora de seu elemento em um mundo digital. Ele é amável, leal e possui um senso de justiça próprio de quem ainda está amadurecendo, com uma boa dose de ingenuidade. Jerome tem uma irmã mais nova, Bárbara, e ela tem uma participação tensa na história. A menina é inteligente e perspicaz como seu irmão e, em certo ponto, se torna crucial para a trama devido à sua interação direta com Brady Hartsfield.

Então chegamos na quarta personagem principal de MR. MERCEDES e aquela que se transforma no elo mais interessante e que ganha uma importância que lhe rende um livro próprio, HOLLY, lançamento da Suma que pretendo ler e resenhar em breve. Holly é inicialmente apresentada como uma mulher profundamente traumatizada com problemas sociais e uma série de transtornos, que possivelmente incluem o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e aspectos do espectro do autismo. Ela é meticulosa, detalhista e tem uma memória fotográfica, características que, obviamente, se revelam extremamente úteis em investigações. Ela também tem uma relação tumultuada com sua mãe, que frequentemente a subestima, exacerbando seus problemas de autoestima. No entanto, ao longo da história, Holly demonstra uma força interior e uma determinação que desafiam as expectativas iniciais do leitor.

King é mestre em apresentar personagens interessantes quando a história já está na metade, depois que o leitor pensou que já conhecia todos, mas aí leva uma surpresa. Holly Gibney é uma das criações mais memoráveis e amadas de Stephen King. Ela se destaca não apenas por sua personalidade única e habilidades distintas, mas também por seu desenvolvimento ao longo das obras em que aparece. Sua trajetória de uma mulher atormentada por seus próprios demônios internos a uma investigadora resoluta e capaz é uma das transformações de personagem mais gratificantes nas obras de King. Além da trilogia de MR. MERCEDES, Holly também aparece no livro OUTSIDER para ajudar na investigação de um crime chocante, e suas habilidades únicas são essenciais para descobrir a verdade; e no livro COM SANGUE, uma coletânea de quatro novelas, e a história titular, “Com sangue”, segue Holly em uma investigação independente, solidificando ainda mais sua posição como uma das principais investigadoras do universo de Stephen King.

MR. MERCEDES virou uma série de televisão de relativo sucesso, mas com algumas diferenças em relação ao livro, como é comum de acontecer. Há algumas mudanças na ordem dos eventos e em como certas cenas são apresentadas para se adequar ao formato episódico da televisão. A natureza episódica da televisão permitiu que alguns personagens secundários tivessem mais desenvolvimento do que no livro. Isso deu à série a oportunidade de explorar mais profundamente certos aspectos de seus passados e personalidades. A aparência de Brady na série é um pouco diferente da descrição no livro. Alguns relacionamentos são mais aprofundados ou ligeiramente ajustados na série. Mas o resultado final, na minha opinião, agrada muito. Ela consegue ser encontrada no streaming, mas atualmente está bloqueada, por motivos que desconheço, na nossa região pelo Prime Vídeo.

Em resumo, MR. MERCEDES é uma obra que destaca a versatilidade de Stephen King como escritor. Ele abandona o sobrenatural em favor de um thriller policial, mas mantém sua marca registrada de desenvolvimento de personagens e tensão crescente. O jogo de gato e rato entre Hodges e Hartsfield é envolvente e o desfecho abre caminho para o futuro de todos os personagens nos volumes seguintes. É um livro altamente recomendado para fãs de suspense e, claro, para os fiéis leitores de King.


AVALIAÇÃO:


AUTOR: Stephen King
TRADUÇÃO: Regiane Winarski
EDITORA: Suma
PUBLICAÇÃO: 2016
PÁGINAS: 400