A LONGA MARCHA é um dos primeiros romances escritos por Stephen King sob o pseudônimo Richard Bachman. Apesar de King ser um dos escritores mais prolíficos e famosos do mundo por suas histórias de terror e suspense, no início de sua carreira, ele adotou o pseudônimo porque na década de 1970, era uma prática comum na indústria editorial limitar autores a um livro por ano. Isso se baseava na crença de que publicar mais frequentemente poderia saturar o mercado e, potencialmente, reduzir as vendas. King, sendo um escritor excepcionalmente produtivo, sentiu-se restringido por essa norma e decidiu usar um pseudônimo para publicar mais do que o permitido.
King também estava curioso para saber se seu sucesso era um acaso ou se ele realmente tinha talento como escritor. Usando o nome de Richard Bachman, ele queria ver se seus livros ainda venderiam bem sem a notoriedade de seu nome verdadeiro, como J. K. Rowling fez depois do sucesso de Harry Potter, só que com menos sucesso. Embora os livros de Bachman caiam no reino da ficção especulativa, muitos deles têm um tom ou abordagem ligeiramente diferentes das obras tradicionais de King. O pseudônimo permitiu-lhe experimentar e explorar diferentes facetas da escrita.
Sob o nome de Richard Bachman, King publicou apenas 5 obras, uma vez que sua identidade foi descoberta em 1985. Um livreiro chamado Steve Brown notou semelhanças entre os estilos de escrita de King e Bachman e, após investigar os registros de direitos autorais, confirmou suas suspeitas. Após a revelação, King decidiu “matar” Richard Bachman, afirmando que ele morreu de “pseudonimia”, uma forma fictícia de câncer.
Publicado em 1979, A LONGA MARCHA é uma distopia sombria que combina a visão de King sobre a natureza humana com uma premissa perturbadora. O enredo segue uma competição anual que é aberta para jovens entre 18 e 21 anos. A marcha se inicia no estado do Maine, nos Estados Unidos, um local que se tornou recorrente nas obras do autor, e tem regras simples mas mortais.
1. Os marchadores devem manter uma velocidade de pelo menos 4 milhas por hora, pouco mais de 6 quilômetros por hora. Se um marchador cai abaixo desta velocidade, ele recebe um aviso;
2. Avisos acumulam e também podem ser removidos ao marchar por uma hora sem receber um aviso adicional. Se um marchador acumula três avisos, ele recebe o “ticket” (um termo eufemístico para ser abatido) e é imediatamente executado na estrada por soldados;
3. Os marchadores não podem interferir com os outros marchadores de forma a impedi-los de seguir. A interferência resulta em um aviso imediato ou, em alguns casos, pode levar à execução instantânea dependendo da gravidade da interferência;
4. Enquanto os marchadores são regularmente fornecidos com comida e água, eles não podem aceitar nenhum suprimento do público ou de fontes externas. Aceitar suprimentos externos resulta em um aviso;
5. Um marchador nunca pode sair da estrada, seja por qualquer motivo. Deixar a estrada, mesmo que temporariamente, resulta em execução instantânea;
6. A marcha continua até que reste apenas um marchador. Todos os outros devem receber um “ticket”. O último marchador restante é o vencedor e é agraciado com o “Prêmio Maior” – um desejo que, supostamente, o Estado irá conceder, qualquer que seja ele. Todos os outros marchadores, independentemente de quão longe tenham ido ou quão bem tenham se saído, enfrentam a penalidade máxima: a morte.
Estas regras rígidas, juntamente com as severas penalidades, contribuem para o clima tenso e opressivo do livro. Elas também são um lembrete constante dos altos riscos da marcha e da crueldade do Estado que a organiza. A natureza brutal da competição e as consequências de não seguir as regras são o que fazem a leitura ser intensa e envolvente.
O mundo de A LONGA MARCHA é um futuro distópico em que o evento se tornou um esporte nacional transmitido pela televisão. Não há uma explicação clara sobre como a sociedade chegou a esse ponto, mas há indícios de que os EUA se tornaram um governo totalitário, com um público sedento por entretenimento, independentemente da crueldade envolvida.
A narrativa é mantida principalmente sobre o personagem Raymond Garraty, um garoto do Maine que tinha uma relação próxima com seu pai, que foi “detido” por causas não reveladas e nunca mais foi visto. Essa tragédia ajudou a moldar a decisão de Garraty de entrar na Longa Marcha. Decisão essa que é contrária à vontade de sua mãe, ainda viva, e de sua namorada Janice, a única pessoa que representa um ponto de esperança e amor em sua vida. Ao longo da marcha, Garraty frequentemente reflete sobre seus momentos com Janice, usando essas lembranças como uma fonte de força e determinação, principalmente com a possibilidade de nunca mais vê-la.
A razão exata pela qual Garraty escolheu participar da marcha não é explicitamente dada no início. No entanto, à medida que a história avança, fica claro que mesmo ele não entende totalmente suas razões. Pode ser uma combinação de desejo de provar algo para si mesmo, a sedução do “Prêmio Maior”, ou talvez um reflexo mais sombrio do desespero e fatalismo que permeia a sociedade em que vive. Como a maioria dos marchadores, ele é atraído pelo “Prêmio Maior”, mas, para Garraty, não é tanto sobre o desejo de riquezas ou poder. Em vários pontos, ele reflete sobre o que realmente deseja e muitas vezes se vê desejando coisas simples, como estar com Janice novamente ou ter um futuro.
Muito do passado de Garraty é revelado através de flashbacks e conversas com outros marchadores. Ele viveu uma vida relativamente normal até a detenção de seu pai. Isso parece ter sido um ponto de virada para ele. Garraty pode ser resumido a uma representação de todos nós, enfrentando adversidades inimagináveis, lutando com seus próprios demônios internos e tentando encontrar um significado em um mundo que muitas vezes parece cruel e sem sentido. King, através de Garraty, explora a fragilidade e a tenacidade do espírito humano, tornando A LONGA MARCHA não apenas uma história de sobrevivência, mas também uma profunda meditação sobre o que significa ser humano.
Além de Garraty, a narrativa passa por outros personagens que desempenham, de maneira direta ou indireta, papéis cruciais, como McVries, que se torna um dos amigos mais próximos que Garraty faz durante a marcha. Ele tem uma cicatriz visível em seu rosto, que serve como um lembrete constante de seu passado complicado. Ele é um contraponto a Garraty em muitos aspectos, é cínico, mas também demonstra grande empatia.
Baker é outro marchador com quem Garraty forma uma amizade. Ele é sensato e atencioso e serve como um símbolo de esperança em meio ao desespero da marcha. Ele e Garraty muitas vezes discutem os motivos que os levaram a participar da marcha e o que esperam do futuro. Tem também Barkovitch que é inicialmente visto como um antagonista, sempre em conflito com os outros marchadores e com uma atitude explosiva que tem grande relevância para o clímax. Mas Stebbins é o personagem mais enigmático que, desde o início, parece ter um entendimento mais profundo da marcha do que os outros participantes. Sua presença contínua e sua abordagem calculada servem como um lembrete constante para Garraty (e para o leitor) de que há mais na marcha do que parece à primeira vista. O relacionamento dele com o Major traz uma reviravolta surpreendente no final.
O Major é a autoridade maior da marcha. Ele é um símbolo do poder e da opressão. Mesmo quando não está presente, sua influência é sentida a cada passo. Ele é a personificação do sistema que criou a Longa Marcha e continua a implementá-la anualmente. A relação entre o Major e Stebbins oferece uma perspectiva mais profunda sobre o próprio Major. Este vínculo dá ao personagem uma nuance adicional, sugerindo que, por trás da máscara de autoridade, ainda há emoções e motivações humanas. No fim, o Major não é apenas um homem, mas uma representação do poder do Estado em uma sociedade que perdeu sua humanidade. Ele simboliza o que acontece quando o poder é centralizado e quando a vida humana é valorizada menos do que o espetáculo e o controle.
Ao tentar deduzir qual a mensagem que King deseja passar com uma história que se passa inteiramente com os personagens correndo por estradas desertas e sendo mortos a cada capítulo, é possível fazer um paralelo com algumas partes da vida. A marcha, como a vida, é uma jornada inevitável. Uma vez que se começa, não há como desistir. A marcha é longa, implacável e cheia de obstáculos. Como a vida, é uma jornada com um começo e um fim inevitáveis. Cada um de nós enfrenta desafios, obstáculos e testes de resistência ao longo do caminho.
Os marchadores devem seguir regras específicas e qualquer desvio delas resulta em consequências graves. Da mesma forma que a vida, a sociedade impõe regras e expectativas. Aqueles que se desviam muitas vezes enfrentam consequências, seja por meio de julgamentos sociais, legais ou pessoais. Apesar da competição mortal, muitos marchadores formam laços de camaradagem, compartilhando histórias, esperanças e medos. Em meio aos desafios da vida, as conexões humanas são vitais. Amizades, relações familiares e parcerias muitas vezes nos fornecem o suporte necessário para superar adversidades.
Cada marchador tem um motivo ou desejo que o impulsiona, seja o “Prêmio Maior” ou algo mais intangível. Da mesma forma, todos nós temos sonhos, objetivos e aspirações que nos motivam a seguir em frente, mesmo quando as circunstâncias são difíceis. A sociedade assiste à marcha como entretenimento, muitas vezes desapegada do sofrimento real dos marchadores. Em nosso mundo, muitas vezes somos espectadores de eventos globais, notícias e até mesmo das lutas de outras pessoas, vendo-os de uma posição desapegada ou através de telas, o que pode levar à dessensibilização.
A marcha é uma constante lembrança da morte iminente. Cada passo, cada aviso é um lembrete da fragilidade da vida. Embora não enfrentemos circunstâncias tão extremas, a vida é efêmera. Cada um de nós, em algum momento, confronta a ideia de nossa própria mortalidade e o valor que damos à vida. Os marchadores enfrentam pressões físicas e psicológicas durante a marcha, muitas vezes impostas pelos soldados e pelas regras da competição. Na vida real, enfrentamos pressões sociais, culturais e pessoais que moldam nosso comportamento, decisões e perspectivas.
Mas não é apenas com a vida que é possível criar um paralelo. A história pode ser vista como uma crítica à fascinação da sociedade moderna com reality shows e entretenimento baseado na exploração e no sofrimento dos outros. Um exemplo é o Big Brother brasileiro, onde os momentos de maior audiência sempre são os conflitos e brigas entre os participantes. Todos os participantes são jovens, estando na fase de transição entre a adolescência e a idade adulta, e sofrem as pressões que a sociedade coloca, a necessidade de competir, de se adequar, de atender às expectativas e o medo do fracasso. No entanto, dentro desse sistema, os jovens ainda tentam expressar sua individualidade e humanidade, seja através de amizades, revolta ou simplesmente compartilhando suas histórias.
Esse paralelo com a juventude é que os marchadores não estão apenas marchando por si mesmos, mas também sob o olhar atento da sociedade, representada pelo público que assiste à marcha e pelos soldados que a aplicam. Esta pressão para desempenhar e cumprir as expectativas é semelhante à pressão que muitos adolescentes sentem para atender às expectativas de pais, professores e sociedade em geral. Durante a marcha, há uma constante comparação entre os competidores. Quem está liderando? Quem está atrasado? Quem está lutando? Na adolescência, muitos jovens sentem uma competição implícita ou explícita com seus pares em várias áreas: acadêmicos, esportes, aparência e popularidade. A marcha intensifica essa sensação de competição à vida ou morte.
Durante a marcha, eles são forçados a refletir sobre quem são, o que valorizam e o que desejam para o futuro. Da mesma forma, a adolescência é um período de profunda autodescoberta, onde os jovens tentam entender seu lugar no mundo. Sob as condições extremas da marcha, os relacionamentos se formam rapidamente e podem ser intensamente emocionais. Na adolescência, as amizades e os romances muitas vezes têm essa mesma qualidade de intensidade, já que os jovens formam laços profundos e experimentam emoções de maneira vívida.
Em vários pontos da história, os marchadores questionam as regras, desafiam a autoridade e até mesmo consideram a revolta. Esta rebeldia é semelhante à que muitos adolescentes sentem quando começam a questionar as normas e valores estabelecidos e a buscar sua própria autonomia. A marcha é um caminho incerto rumo a um futuro desconhecido. Da mesma forma, muitos adolescentes encaram o futuro com uma mistura de antecipação e ansiedade, incertos sobre o que a vida adulta reserva para eles.
Mais um paralelo seria em relação ao existencialismo, que é uma corrente filosófica que se concentra na existência individual, na liberdade, na escolha e na responsabilidade. Uma das principais ideias do existencialismo é o conceito do absurdo, a ideia de que a vida não tem sentido inerente e que as pessoas devem criar seu próprio significado. A marcha em si é um exercício absurdo: um evento sem propósito claro, onde a única certeza é o sofrimento e eventual morte. Os marchadores, como os seres humanos em um universo indiferente, devem encontrar ou criar significado em sua jornada, seja através de amizades, objetivos pessoais ou simplesmente sobrevivendo.
Mesmo em condições extremamente restritas, os marchadores ainda têm um grau de liberdade: a escolha de continuar marchando ou desistir, a escolha de como interagir com os outros, e a escolha de como interpretar e responder ao seu sofrimento. Isso ecoa a crença existencialista de que, mesmo em circunstâncias adversas, os indivíduos têm liberdade de escolha e são responsáveis por suas decisões. No contexto da marcha, os participantes são inicialmente definidos pelo evento em si, mas, à medida que a história se desenrola, suas personalidades, escolhas e ações revelam quem realmente são.
A marcha é, em muitos aspectos, uma constante meditação sobre a morte. A presença da morte é iminente e inescapável. Este confronto direto com a mortalidade reflete a preocupação existencialista com a “angústia” da existência e o inevitável encontro com o nada. Apesar de estarem rodeados por outros marchadores, muitos dos personagens experimentam sentimentos intensos de isolamento e solidão, uma representação da condição humana em um universo indiferente. A busca por conexão autêntica, seja com outros marchadores ou consigo mesmo, é um tema recorrente.
Um último paralelo possível, seria em relação ao militarismo. Assim como no exército, os marchadores são constantemente supervisionados e controlados por uma força autoritária (neste caso, os soldados que acompanham a marcha). Eles são forçados a seguir um conjunto estrito de regras, sob pena de morte. Isso reflete a disciplina rígida e a hierarquia que os soldados experimentam, onde a desobediência pode resultar em severas reprimendas ou punições.
A idade dos marchadores é importante. Eles são todos meninos jovens, no limiar da vida adulta. Isto pode ser visto como uma representação dos jovens soldados enviados para lutar em guerras, muitas vezes não completamente compreendendo os perigos ou as razões políticas por trás dos conflitos. Em ambos os cenários, os jovens são sacrificados pelas decisões de uma autoridade superior. Como acontece especialmente durante tempos de guerra, pode haver uma desumanização do inimigo para justificar a violência. Os marchadores são lentamente desumanizados à medida que a marcha avança. Eles são reduzidos a números, estatísticas e, em última análise, descartáveis.
Uma característica notável tanto em ambientes militares quanto em A LONGA MARCHA é o desenvolvimento de laços estreitos sob condições extremas. Em cenários de vida ou morte, as amizades e lealdades se formam rapidamente. Garraty e os outros marchadores formam conexões intensas e significativas, assim como os soldados no campo de batalha. Tanto no livro quanto no serviço militar, observamos a psicologia da obediência. Por que os marchadores continuam marchando, mesmo sabendo das terríveis consequências? Da mesma forma, por que os soldados seguem ordens que podem não concordar? A influência da pressão do grupo, a esperança de recompensa e o medo de punição são motivadores poderosos em ambos os cenários.
A LONGA MARCHA captura diversas essências, como a turbulência da adolescência, ampliando-a em uma competição literal de vida ou morte, refletindo as lutas internas e externas que muitos adolescentes enfrentam enquanto tentam navegar no complicado terreno do crescimento. Ela pode ser vista como uma crítica à forma como as guerras são, às vezes, tratadas como espetáculos ou justificadas para o público, onde a mídia pode desempenhar um papel na glorificação ou justificação da violência, assim como a marcha é apresentada como um evento de entretenimento. Pode ser interpretada como uma profunda exploração da condição humana, brutal e sem sentido, como uma metáfora para a jornada da vida, onde os indivíduos devem navegar em um mundo muitas vezes indiferente e absurdo, fazendo escolhas e buscando significado ao longo do caminho. Além desses, cada leitor pode encontrar diferentes significados e paralelos. Como muitas das melhores obras de ficção, o livro serve como um espelho, refletindo as preocupações, medos e esperanças que todos nós experimentamos em nossas vidas.
AVALIAÇÃO:
AUTOR: Richard Bachman (Stephen King) TRADUÇÃO: Regiane Winarski EDITORA: Suma PUBLICAÇÃO: 2023 PÁGINAS: 288 |
Ótima resenha, Carl. Fiquei muitíssimo curiosa com o enredo do livro e já estou adicionando-o à minha lista de leituras (e olha que não sou uma grande fã da narrativa de King), mas este parece ser um livro realmente interessante.
Oi, Fran!
Nem parece de King. Narrativa ágil, poucas descrições, nada de terror.