Quando Chiamaka e Devon, alunos da Academia Particular Niveus, são selecionados como parte da alta hierarquia escolar e passam a ser chefes de turma, parece um excelente começo de ano para os dois. Afinal, isso representa muito em seus currículos para entrar em boas universidades. Pouco tempo depois da importante nomeação, no entanto, alguém chamado “Ases” começa a enviar mensagens para todos os alunos da escola, revelando segredos dos dois jovens. São detalhes íntimos de suas vidas, ameaçando seus futuros planejados com tanto esforço. E o que parecia apenas uma brincadeira de mau gosto, rapidamente se transforma em um jogo perigoso e assustador. Com todas as cartas contra eles, Chiamaka e Devon serão capazes de parar Ases?

A narrativa da história é feita pelos dois personagens principais, Chiamaka e Devon, alternadamente. Através dos olhos e pensamentos dos dois, acompanhamos seus conflitos, seus interesses, seus sonhos, a relação deles com os amigos, com as famílias, com os ataques que sofrem diariamente do misterioso grupo Ases. Por mais da metade do livro, Chiamaka e Devon não se encontram, não dividem seus medos e nem suas suspeitas. Cada um reage da sua maneira ao que acontece. Apenas depois da metade, quando a situação fica insustentável, que eles começam a conversar e a tentar, juntos, descobrir quem está por trás dessas tentativas de destruir o futuro dos dois.

ÁS DE ESPADAS funciona como um thriller de suspense, mas não de mistério. Chiamaka e Devon não são apenas dois alunos de Niveus, eles são os dois únicos alunos negros de Niveus. Isso já é um gatilho de que existe algo de errado nesse colégio. E logo nas primeiras páginas, no primeiro capítulo narrado por Devon, acontece uma apresentação para os alunos dos valores do colégio, e no documento está o símbolo do ás da carta de baralho. Devon chama a atenção do leitor para esse detalhe, ele afirma ser estranho, uma novidade do novo diretor. Não precisa de muito esforço cerebral para compreender o que se passa naquele lugar. Assim, o mistério é eliminado e sobra apenas o suspense dos conflitos e do perigo subsequente.

Isso não é um problema e nem afeta o prazer da leitura. ÁS DE ESPADAS funciona muito bem como suspense. Entretanto é necessário criar uma certa suspensão de descrença devido algumas situações e decisões que escapam da racionalidade e do que, normalmente, duas pessoas sob ataque fariam. Devon e Chiamaka estão sendo atacados com fofocas, fotos e vídeos que expõem a vida particular e íntima dos dois. Tudo adquirido de maneira não consensual. Entretanto nenhum dos dois conta para a família, para as autoridades, ou mesmo para a direção escolar. Isso sem qualquer justificativa. Apenas nas últimas páginas, na conclusão da história, eles procuram ajuda dos adultos e resolvem a situação rapidamente. É fácil compreender o motivo da autora ter ido por esse caminho, uma vez que se os personagens fizessem o que a lógica manda, o que eles finalmente fazem no final, a história teria bem poucas páginas.

Mas se a história não funciona como um mistério e tem esses problemas de suspensão de descrença, em contrapartida, ela funciona muito como denúncia do comportamento racista e misógino de grande parte da sociedade. Devon e Chiamaka são os únicos alunos negros do colégio, mas eles não demonstram incômodo por essa situação e nem sentem qualquer racismo por parte dos professores, funcionários ou colegas. Inclusive, eles são escolhidos como chefes de turma para o ano letivo, Devon pela primeira vez e Chiamaka pela terceira vez. Algo que só acontece com os melhores e mais prestigiados alunos da instituição. Devon vem de uma família humilde que passa por dificuldades financeiras, e ele nunca sentiu alguma discriminação quanto a isso. Chiamaka vem de uma família com posses, acima da média, é uma das garotas mais populares do colégio, admirada e invejada. Tudo parece em ordem para eles. Parece.

Faridah Àbíké-Íyímídé, a autora, tem a habilidade de demonstrar através de curtos diálogos, discretas descrições de reações dos personagens que rodeiam Devon e Chiamaka, de que o racismo está presente por todos os lados de Niveus, mas os dois garotos não conseguem reparar. Muito devido à imaturidade e ao desejo de serem aceitos da maneira que acham que são, como se precisasse disso, quando não precisam, como descobrem mais para a frente. Um exemplo é quando o melhor amigo de Chiamaka lhe dá um beijo na testa e sente o gosto de óleo de coco, produto que Chiamaka utiliza para tratar seus cabelos e torná-los lisos, sem o cacheamento natural. Ele se afasta. É algo simples, quase imperceptível, mas que demonstra que aquela pessoa sentiu repulsa sem qualquer motivo que não o racismo.

Um outro exemplo acontece novamente com Chiamaka, quando ela não consegue alisar seus cabelos e precisa ir para a aula com seus cachos naturais. Ela percebe que começam a encará-la, ela percebe os cochichos, e até mesmo ouve uma ou outra palavra de reprovação. É compreensível o sentimento que Chiamaka demonstra por não compreender o motivo das colegas, que até então se mostravam tão próximas e admiradoras, mudarem de postura quando ela passa a representar de maneira mais visual o valor de sua natureza. Quer dizer, Chiamaka até sabe, tanto que ela reluta em ir à escola quando não consegue alisar seus fios, mas prefere manter essa percepção longe da sua mente, como uma maneira de defesa, uma vez que a verdade é muito absurda e machuca.

Existem vários e vários trechos com essas amostras de comportamento racista. Fica fácil criar um paralelo entre o que acontece no livro com o dia-a-dia da nossa realidade. Os comportamentos racistas dos alunos de Niveus são representações vivenciadas diariamente por Devons e Chiamakas de todos os lugares do mundo. Não apenas nos colégios, mas também nas empresas, lojas, shopping, supermercados, transportes públicos, restaurantes, na rua, em qualquer lugar. E aqueles que percebem esses tratamentos, esses olhares, esses cochichos, quando não é algo direto e violento, são aqueles que são julgados pela cor da pele que possuem. É impossível para qualquer outro compreender o que é esse sentimento.

Por sua vez, Devon, além do racismo, enfrenta outro ataque, uma vez que ele é homossexual. Nesse contexto, a história não se debruça tanto sobre o tema, como faz com o racismo, mas não deixa passar vários momentos de preconceito direto ou indireto e de como isso afeta Devon de maneira devastadora. O garoto reúne os problemas financeiros da família, os problemas de ser colocado à margem social no colégio, a mágoa de seu amor manter o relacionamento afetivo dos dois escondido por medo de sofrer represálias, e ainda precisa lidar com o Ases. Qualquer um pira.

O maior valor de ÁS DE ESPADAS reside nessa denúncia, nesses exemplos de racismo e de homofobia, tão disfarçados por quem os pratica. Então mesmo não sendo um bom exemplo de livro de mistério, ou tendo alguns problemas de veracidade quanto ao suspense, ÁS DE ESPADAS é uma leitura obrigatória, um livro que deve ser compartilhado e discutido. Os Devons e Chiamakas que são diariamente agredidos precisam disso. Nossa sociedade precisa dessas discussões, porque apesar de termos avançado na evolução do comportamento preconceituoso, homofóbico, machista, misógino e racista, ainda são poucos metros diante de uma estrada com vários quilômetros.

Uma vez, em uma conversa com uma pessoa amiga, ela me confidenciou que seu maior desejo, era poder entrar em um ambiente e se sentir segura. A possibilidade de não ter medo de estar em um local público. Apenas isso. Parece tão pouco… só parece.


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Faridah Àbíké-Íyímídé
TRADUÇÃO: Jim Anotsu
EDITORA: Plataforma 21
PUBLICAÇÃO: 2021
PÁGINAS: 448