Há três caminhos para subir até Castle View a partir da cidade de Castle Rock: pela rodovia 117, pela Estrada Pleasant e pela Escada Suicida. Em todos os dias do verão de 1974, Gwendy Peterson, de doze anos, vai pela escada, que fica presa por parafusos de ferro fortes (ainda que enferrujados pelo tempo) e sobe em ziguezague pela encosta do penhasco.

Certo dia, um estranho a chama do alto: “Ei, garota. Vem aqui um pouco. A gente precisa conversar, você e eu”. Em um banco na sombra, perto do caminho de cascalho que leva da escada até o Parque Recreativo de Castle View, há um homem de calça jeans preta, casaco preto e uma camisa branca desabotoada no alto. Na cabeça tem um chapeuzinho preto arrumado. Vai chegar um dia em que Gwendy terá pesadelos com isso.

O homem se chama Richard Farris. No parque, ele entrega uma caixa com botões para Gwendy. A menina deve protegê-la de todos, mantê-la em segredo, até que, em algum dia no futuro, Farris venha buscar a caixa. Ela é de madeira e tem seis botões em fileiras de dois e um botão solitário em cada ponta, oito no total. Os pares são verde-claro e verde-escuro; amarelo e laranja; azul e violeta. Um dos botões da ponta é vermelho e o outro é preto. Há também uma pequena alavanca nas laterais da caixa, e um buraco no meio.

Farris informa a Gwendy que os botões são muito difíceis de apertar, é necessário fazer força, para que a ação não aconteça acidentalmente. E essa precaução é porque os botões têm poder. Cada um deles representa algo em relação ao mundo. O verde-claro representa a Ásia; o verde-escuro, a África; o laranja, a Europa; o amarelo, a Austrália; o azul, a América do Norte; o violeta, a América do Sul. O botão preto, representa tudo. E o botão vermelho, faz o que a pessoa desejar. Com exceção do vermelho, que pode ser usado diversas vezes, todos os outros só podem ser apertados uma vez.

As alavancas possuem outra finalidade. A alavanca da direita, ao lado do botão preto, libera uma moeda de prata com a data de 1891 que é muito valiosa. E a alavanca da esquerda, ao lado do botão vermelho, libera um pequeno chocolate em formato de animal, que nunca se repete. O sabor do chocolate é incrível, absoluto, e além do prazer de degustar, ele libera algumas substâncias que melhoram a pessoa, física e mentalmente, de alguma forma.

A responsabilidade da pessoa que fica com a caixa não se restringe a protegê-la. A tarefa mais difícil, como aos poucos se mostra, é segurar a tentação de usá-la. E quanto mais é usada, mais a caixa detém o poder sobre a vontade de quem a protege. É isso que Gwendy descobre. E esse é seu maior medo.

A PEQUENA CAIXA DE GWENDY, obviamente, é uma versão moderna e atualizada da Caixa de Pandora. No mito grego, Pandora foi a primeira mulher criada por Hefesto e Atena, a pedido de Zeus, com o fim de agradar os homens. Pandora é enviada à Terra para se casar com Epimeteu e leva consigo uma caixa com a recomendação de que jamais seja aberta. Mas Pandora não resiste à tentação da curiosidade e abre a caixa, liberando todos os males que ela continha, como doenças, guerras, entre outras pragas. Pandora consegue fechar a caixa, mas tarde demais e mantém em seu interior apenas a esperança.

Na introdução do segundo livro dessa trilogia, A PENA MÁGICA DE GWENDY, Stephen King conta como começou a escrever o primeiro livro e de como não soube como terminar. Após anos com o manuscrito não finalizado guardado, em uma conversa com o escritor Richard Chizmar, King teve a ideia de pedir para que ele finalizasse a história. Ambos gostaram muito da parceira, tanto que tempos depois, Richard veio com o roteiro para uma continuação, que ficou apenas a seu cargo, e, por fim, os dois dividiram, novamente, o último volume, A ÚLTIMA MISSÃO DE GWENDY.

Em A PEQUENA CAIXA DE GWENDY, o leitor é apresentado à personagem com a idade de doze anos e acompanha como ela conseguiu se conter para não destruir o mundo com o poder da caixa. Isso não quer dizer que ela não a tenha usado. Ela o faz em mais de um momento específico, o tentador botão vermelho, e sofre suas consequências. Ou algumas consequências, uma vez que os três livros tocam no ponto de ação e reação, mas deixam de lado o fator responsabilidade e castigo, que falarei mais para a frente.

A PENA MÁGICA DE GWENDY traz a menina transformada em mulher, com mais de trinta anos de idade, com um cargo alto no governo, morando na capital do país, e recebendo novamente a responsabilidade de cuidar da caixa por algum tempo. Há uma mudança perceptível de tom na história, principalmente em relação ao que eu mencionei acima, responsabilidade, mas também se torna mais emotiva e pessoal. Não é de se estranhar, afinal, desta vez, a criação é apenas de Chizmar, e ele se esforça para manter a narrativa próxima do estilo de King, mas não consegue. Isso não é uma coisa negativa, pelo contrário, eu até gostei mais, exatamente pelo intimismo que ele dá à história.

Nesse segundo livro, Gwendy precisa lidar com a responsabilidade de não ceder à tentação da caixa, mas também precisa aceitar a doença fatal de sua mãe e a inevitabilidade da morte. É nesse ponto que Chizmar faz a personagem crescer e se mostrar próxima de uma pessoa real. Afinal quem não recorreria ao poder de uma caixa que pode prolongar, ou até salvar, a pessoa que mais ama? Mas a qual custo? O preço será maior do que é possível pagar? São essas questões que Gwendy precisa responder.

Finalmente, em A ÚLTIMA MISSÃO DE GWENDY, voltamos a encontrar a personagem em poder da caixa, desta vez quando Gwendy já passa dos sessenta anos, é Senadora dos Estados Unidos, e recebe a notícia de um Richard Ferris morimbundo, de que pessoas poderosas, obscuras, maléficas, estão prontas para fazer o necessário para conseguirem o poder da caixa. Gwendy precisa encontrar uma maneira de colocar o objeto mágico em um local inacessível para essas pessoas. Mas onde?

Não seria spoiler dizer qual é o local, uma vez que é fácil deduzir pela capa, além de que é revelado já na primeira página. Mas, mesmo assim, não é necessário, então vou deixar você descobrir. A ÚLTIMA MISSÃO DE GWENDY, dos três volumes, é o que contém mais fantasia e conexões com a mitologia de King. Várias ligações são criadas, referências a várias cidades conhecidas nos livros, a um determinado palhaço, e, inclusive, a caixa é desejada para destruir uma das mais longínquas criações do autor. É curioso e interessante, até faz bastante sentido dentro do universo de King, mas penso que coloca o livro em um local diferente dos anteriores. E isso não se refere à qualidade, mas apenas à quantidade do fantástico inserida no enredo.

Gwendy é uma personagem que o leitor passa a amar conforme acompanha seu amadurecimento e sua luta para se manter longe da influência de Ferris e da caixa. O leitor se torna íntimo da personagem no segundo livro, ganha empatia pela luta para salvar a mãe, e se questiona em diversos momentos se não teria as mesmas decisões que Gwendy, sejam elas certas ou erradas. É uma fantasia deliciosa de acompanhar, com princípio, meio e fim bem definidos, com algumas surpresas, e com um final nostálgico e triste.

A trilogia também traz duas discussões importantes. A primeira delas é em relação à responsabilidade dos atos. É algo recorrente nas obras de King, mas aqui penso que aparece com mais indiferença. Em alguns trechos, Gwendy acaba usando o botão vermelho. Em dois desses momentos, a consequência é a morte “acidental” de várias pessoas. A justificativa na história é que Gwendy não conseguiu prever que essas mortes aconteceriam. E apesar dela se sentir responsável, o assunto é deixado de lado, sem uma real consequência. Também acho que não teria como existir uma consequência, uma vez que as mortes são resultado do uso da caixa e elas acontecem sem um perpetuador físico, como fruto do acaso ou de algum evento da natureza. Não há provas de que foi resultado do uso da caixa e de Gwendy ter apertado o botão vermelho. Mas penso que o assunto merecia um tratamento mais extenso, mais profundo por parte de King. E me refiro apenas a King, porque essa falta de consequências está presente no segundo livro, escrito por Chizmar. Pelo contrário. O uso dos chocolates que a caixa entrega para prolongar a vida da mãe de Gwendy, é discutido pelo livro inteiro, por exemplo.

A segunda discussão é em relação à liberdade de se poder escolher como e quando morrer. No terceiro e último livro, Gwendy tem Alzheimer precoce e começa a perder as memórias e a noção da realidade. Em determinado ponto da história, ela diz preferir morrer a viver dessa forma. Seria como viver sem ter consciência de que está viva, como um vegetal, seria um sofrimento para alguém que sempre prezou pela inteligência e pela racionalidade. É uma posição difícil, importante, que muitas pessoas podem não compreender e aceitar. A vida é preciosa, mas o que a personagem transmite, é que a vida é dela e ela tem direito de preferir ter a escolha de encerrar a sua jornada do que viver sem a noção dessa jornada. O único porém é que essa discussão fica a cargo do leitor, na história as escolhas e dúvidas são apenas apresentadas, nenhum dos personagens aprofunda o assunto. É uma pena.

De qualquer forma, eu penso que não existe resposta certa. Depende do que cada pessoa vivenciou na sua existência, de como é sua relação com quem a rodeia, de suas crenças e religião. Mas a questão é importante, profunda, traz muita reflexão. Fez isso comigo.

Livros bons são assim.


AVALIAÇÃO:


AUTORES: Stephen King, Richard Chizmar
TRADUÇÃO: Regiane Winarski
ILUSTRAÇÕES: Ben Baldwin, Keith Minnion
EDITORA: Suma
PUBLICAÇÃO: 2018, 2022, 2023
PÁGINAS: 168, 352, 424