A novela narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo amoroso.

A obra de Carla Madeira tem um estilo narrativo próprio, quase poético, meio chulo em vários momentos. Não de forma pejorativa, mas como escolha para igualar a vida dos personagens, ou mesmo como maneira de aproximar o leitor da vida mundana que os personagens compartilham. A escrita é tão singular que, por vezes, o leitor pode ter sua atenção desviada da história para admirar a forma como as frases são compostas. E nessa composição, também por vezes, o leitor pode se surpreender ou mesmo se chocar com as escolhas das composições das palavras.

A leitura é um deleite, um prazer que nem sempre é encontrado na maioria dos livros. Essa escolha de escrita é tão singular, que poderia se tornar exagerada caso TUDO É RIO tivesse mais páginas. Não é o caso. Quando a leitura começa a mostrar traços de cansaço, ela termina. Alegoricamente seria como comer um doce. Se exagerar na quantidade, o estômago pode reclamar.

Todavia, na minha opinião, a história não compartilha da mesma qualidade. A partir deste ponto, irei comentar o que me incomodou na leitura, quais os problemas de construção de personagem, de narrativa e de aceitação e motivação de atos de violência e abuso. Para esse fim, irei resumir os principais pontos da história, passar vários spoilers, inclusive da conclusão. Caso prefira, retorne a este texto após a leitura.

Dalva e Venâncio são casados e se amam desde a adolescência. Venâncio é marceneiro, um homem corpulento, ciumento, rude na educação e no comportamento, algo tipificado por quem vive em uma cidade do interior. Dalva é doce, carinhosa e empática. Dalva fica grávida. Compartilhar a esposa com o filho, causa ciúme em Venâncio. Ciúme que é externado quando a criança nasce. Ao vê-la saciar a fome nos peitos da esposa, Venâncio tem um rompante de violência e mata o filho, jogando-o de encontro à parede da casa. Em ato contínuo, Venâncio espanca Dalva. Após isso, Venâncio leva o filho até Francisca, uma mulher que cuida dos animais da cidade, uma veterinária, e pede para enterrar a criança.

Lucy perdeu os pais muito cedo. Foi morar com uma tia, Duca, que é casada com Brando e tem duas filhas. Embora Duca tente suprir a falta da família de Lucy, ela não consegue disfarçar a evidente preferência pelas filhas. Isso causa em Lucy uma solidão e uma revolta que se transforma em vingança conforme ela amadurece. Já adolescente, dona de uma beleza e de uma sensualidade sem igual, Lucy descobre o desejo e o prazer pelo sexo. Como materialização de sua vingança, ela seduz Brando, o tio, bem como todos os homens que conhece, resultando na sua expulsão de casa e na ida para um prostíbulo, onde se estabelece e se torna famosa na cidade.

Após o assassinato do filho, o casamento de Dalva e Venâncio se transforma em ódio e culpa. Dalva ignora o marido e tem uma vida à parte. Venâncio se mostra consumido pela culpa e passa a ter uma vida sem propósito. Ele frequenta o prostíbulo e se deita com a primeira mulher que avista, menos com Lucy. E essa indiferença desperta em Lucy uma enorme frustração. Ela fica obcecada com o desafio de seduzir Venâncio, e todas as vezes que não consegue aumentam sua raiva. O sentimento é direcionado para Dalva, uma vez que Lucy considera ser a esposa a culpada pela indiferença do marido.

Lucy consegue seu intento em um determinado momento, quando em uma das tentativas de seduzir Venâncio, solta os cabelos da mesma maneira que Dalva. Venâncio imagina Lucy como Dalva, e os dois consumam o ato sexual. Lucy fica grávida e entrega o filho para Dalva criar. Venâncio se comove e trata o filho com a atenção que não dispensou para a criança que pensou ter matado. Aos poucos, Dalva tem seu ódio abrandado, e no final da história, revela que o filho não morreu, mas ficou aos cuidados de Francisca, e perdoa Venâncio.

Antes de enumerar o que eu considero problemático na obra, gostaria de salientar que é pertinente abordar temas polêmicos sobre violência e abuso e finalizar com o perdão. Nós somos seres complexos e imperfeitos. O mais comum, mesmo que revoltante, é perdoar quem se ama, ou se pensa amar. Personagens bem construídas podem refletir essa realidade e não há problema nenhum nisso, pelo contrário. Porém, quando as situações de violência são conduzidas pelo autor com o aval do amor, romantizadas, e os personagens que as cometem têm suas ações justificadas e validades pela narrativa, é perigoso e corrobora quem comete tais atos. É nesse ponto onde residem os problemas de TUDO É RIO.

Ao final da leitura, eu me questionei sobre algumas decisões criativas. Uma delas foi: qual a importância da personagem Lucy para a história? Ela é uma mulher belíssima, extremamente sensual, de corpo perfeito. Quando Venâncio, ao contrário de todos os outros homens, se recusa a deitar com Lucy, é possível compreender o ego ferido de Lucy e sua posterior ira que se transforma em paixão. Mas por que Lucy existe? Formar um triângulo amoroso? Também não, uma vez que Dalva e Venâncio praticamente ignoram a personagem. Não existe uma relação entre Lucy e Venâncio, com exceção do único ato sexual que compartilham. Então, novamente, qual o propósito de Lucy dentro da trama? A resposta até que é simples: Lucy existe para absolver Venâncio.

Lucy é insistentemente representada como alguém irresistível para qualquer homem. A autora evidencia isso repetidas vezes, e reforça, e insiste. Venâncio frequenta o prostíbulo de maneira mecânica, uma vez que não escolhe com quem se deita pelo desejo, mas pela necessidade biológica, quase como se masturbar. Homem precisa transar. Isso fica subentendido. Lucy é a representação absoluta do desejo, e Venâncio recusa Lucy, ele se torna casto, fiel a Dalva, ele ama Dalva. Mas Lucy consegue ter uma relação com Venâncio. E isso apenas ocorre, quando ela se torna parecida com Dalva aos olhos de Venâncio. Quando ele faz sexo com Lucy, na sua mente, segundo a narração, ele se imagina fazendo sexo com Dalva. Quando a traição é consumada, ela é apagada pela imaginação do homem. Ele ama tanto, que mesmo a maior das tentações não consegue fazer com que se esqueça da amada. É o primeiro ponto de redenção de Venâncio.

Depois da relação sexual, conforme plano de Lucy, que em nenhum momento é previamente anunciado pela narração, ela fica grávida de Venâncio. Quando a criança nasce, Lucy não deseja criar o filho e entrega o bebê para Dalva. A mulher sente medo que Venâncio se torne novamente violento por ciúmes. Mas isso não acontece. Venâncio se mostra, aos poucos, com pequenos e constantes gestos, um pai presente e preocupado. Após a entrega do filho para Dalva, Lucy desaparece da história. Tem apenas uma ou outra menção. O amor que ela havia descoberto por Venâncio? Esquecido. O filho de Lucy é a maneira que a autora criou para demonstrar a mudança de comportamento de Venâncio. O bebê é um menino, como o primeiro, e agora Venâncio não sente mais ciúmes de ver outro macho nos braços da esposa. A função de Lucy terminou na história, e seu filho é o segundo ponto de redenção de Venâncio.

Dalva começa como vítima, ela tem o filho morto pelo esposo, é surrada, e passa a ter uma vida vazia e cheia de dor. Depois do conflito que envolve Lucy, Dalva decide que vai embora da cidade e vai voltar a viver com a mãe. O ponto de virada não acontece quando Lucy deixa o filho na porta da casa de Dalva, mas quando Venâncio começa a tratar a criança com atenção. Dalva não abandona o marido pelos filhos ou por ela mesma, ela tem a decisão de abandonar Venâncio quando descobre que Lucy se deitou com ele. E quando ela se redescobre a dona do amor de Venâncio, quando confirma que Venâncio permite que ela cuide de uma criança, ela abandona os planos de ir embora, revela que o primeiro filho não morreu e perdoa o esposo. Dalva não esperava se salvar, ela esperava pela aceitação do homem que bateu nela e jogou o filho na parede. Dalva é o ponto final de redenção de Venâncio.

Na construção da narrativa, Venâncio se transforma no personagem principal e foco da história. As duas mulheres que o rodeiam são transformadas em redentora e em acusadora. Dalva sabe que o filho não morreu, mas esconde do marido. Ele se torna o coitado que se martiriza sem motivo. O caminho de Venâncio se aproxima da jornada do herói, que conquista sua amada, cai no inferno, e passa a enfrentar uma jornada de desafios até conseguir alcançar o céu. Não há problema quando a narrativa transforma o vilão em um personagem simpático. Mas quando a narrativa manipula os eventos para criar empatia, aí, sim, reside o perigo de se corroborar a violência. E mesmo essa construção maniqueísta se mostra superficial, uma vez que após ter pensado matar o filho como resultado de sua intempérie, Venâncio tem outros momentos de violência.

Lucy não foi criada apenas para redimir Venâncio. Existem algumas nuances que flertam diretamente com o machismo e a imposição da fidelidade e castidade feminina. Quando descobre sua sensualidade, Lucy sente desejos. Ela não se relaciona com homens como vingança para com a indiferença da tia. Sua vingança para com a tia é consumada quando ela se deita com o tio. Todos os outros, é desejo, é vontade. E ao contrário da visão de que se um homem se deita com várias, é porque é homem, quando Lucy se deita com vários, ela é puta. Isso está na narração. É uma afirmação do narrador da história, não é uma constatação de quem lê. Lucy não vai para o puteiro porque se deita com vários, mas porque não tem onde morar. É uma consequência. Mais longe. As reações dos homens quando são abordados por Lucy, são de vítimas. A narração insiste nisso diversas vezes. Os homens se sentem indefesos, compelidos, Lucy é irresistível, eles não têm culpa de se renderem a seus encantos, é ela quem ataca, é ela a responsável por suas infidelidades. Até mesmo o tio de Lucy. Ele se deita com Lucy quando ela ainda não tem 18 anos. Duca, a tia, expulsa Lucy de casa, mas não se separa do marido. A culpa dele é aceita, a de Lucy, jamais. É um reflexo da sociedade? Sim. Mas quando o narrador intensifica, romantiza e justifica, não é a sociedade, é uma posição do narrador.

A alegoria do título, TUDO É RIO, reside em afirmar que como as águas de uma corrente, ora fortes e perigosas, ora brandas e seguras, mas que nunca se desviam de seu curso, a vida segue o exemplo. Não é verdade. Nós passamos pela vida com momentos bons, momentos ruins, alguns mais do que outros, mas a vida não tem uma rota definida, quem define qual curso nossas águas seguem, somos nós. Se sofremos violência, se presenciamos violência, não há nada certo em aceitar. Somos pessoas com livre arbítrio, somos nós quem definimos para onde ir. A mensagem do livro é de conformismo, é de uma aceitação incontestável. Você sofre porque a vida é assim e você tem que aceitar.

O problema que reside em TUDO É RIO não é o tema abordado, mas como ele é abordado. É possível alguém perdoar quem pensa amar, mesmo que o objeto de afeição seja o assassino do filho? Uma mulher é vista como puta pela sociedade em geral só porque tem relações com vários? As pessoas são machistas em sua maioria? Sim, sim, sim. Nossa realidade tem vários exemplos disso. É revoltante, mas é real. É uma pergunta válida que gera debate. Mas é uma pergunta que deve ser questionada e respondida pelos personagens, debatida pelos leitores. Não pode ser respondida pelo narrador onisciente e onipresente, mas é o que acontece no livro. Após o perdão de Dalva para os crimes de Venâncio, o narrador rejubila e termina a narrativa com a frase: “Deus estava de volta”. Com quatro palavras, as últimas quatro palavras do livro, o narrador se apropria da religião e transfere suas crenças para afirmar que Dalva fez o certo. A resposta é dada, o narrador aponta o dedo para o leitor que discorda e faz o impensável, pergunta disfarçadamente como é possível discordar de algo que Deus corrobora?


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AUTORA: Carla Madeira
EDITORA: Record
PUBLICAÇÃO: 2021
PÁGINAS: 210