Alguns cientistas realizaram a seguinte experiência no cérebro humano: colocaram sensores na cabeça de uma pessoa e pediram para que ela chupasse uma laranja. Enquanto ela fazia isso, eles mapearam toda a atividade cerebral dessa pessoa. Depois, pediram para ela fechar os olhos, relaxar, e pensar na laranja que chupou, como se estivesse fazendo tudo novamente. O mapeamento da atividade cerebral foi exatamente igual à anterior. Ou seja, para o cérebro, a lembrança do que ocorreu é a mesma do que realmente ocorreu.

Jake dirige o carro em direção à casa de seus pais, na fazenda. Ele leva consigo a sua nova namorada. Ela, apesar de gostar de Jake, acha muito cedo para conhecer sua família. Até porque existe o pensamento. O pensamento de acabar com tudo. Durante as horas de viagem entre a cidade e o interior, por estradas desertas cercadas por florestas e escuridão, as lembranças e as dúvidas lhes servirão como companhia. Mas há algo errado. Uma tensão que pode ser sentida no ar, nos movimentos e nas convicções. Talvez eles não se conheçam o suficiente. E talvez seja tarde demais para voltar.

Algumas narrativas são construídas de forma a enganar o leitor com o objetivo de surpreendê-lo, para que se lembre da história durante bastante tempo. Isso acontece em EU ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO. Desde as primeiras páginas, eu percebi que algo estava errado. Não apenas pelo ambiente claustrofóbico do interior de um carro, onde o casal principal conversa sobre suas vidas e sobre a viagem que estão fazendo, mas por alguns detalhes que a protagonista e narradora repassa ao leitor.

Os sinais de algo errado são tênues, e alguns podem até ser confundidos com erros de revisão ou tradução, mas não são. Principalmente as repetidas trocas do prenome pessoal, ou a descrição de algumas pessoas, que mudam na página seguinte, ou na localização de objetos, que mudam de posição, ou até mesmo na referência a uma pessoa que insiste em ligar para o celular da protagonista e que muda sempre de nome. Nenhuma dessas inconsistências são erros, todas têm um propósito e servem para dar ao leitor a chance de juntar todas as peças e descobrir o que está acontecendo de verdade. Verdade essa que pode ser encontrada se o leitor prestar atenção nos pequenos detalhes das descrições, principalmente na segunda parte da história, que se passa na casa de Jack.

A história se divide em quatro acontecimentos principais: dentro de um carro; na casa dos pais de Jack, onde as estranhezas atingem um clima quase de terror; na parada em uma sorveteria; e, por fim, em um colégio fechado, onde tudo é revelado. Apesar de não existir praticamente nenhuma ação, apenas conversas e descrições de locais, preste atenção em tudo, porque, como disse lá em cima, tudo tem um objetivo e a todo momento são jogadas pistas para o leitor. E deixe sua imaginação fluir, porque as respostas até são bem simples.

Mas EU ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO não é apenas uma boa história pela surpresa que entrega no final, mas por toda a sua construção narrativa. Tudo é impregnado de uma atmosfera sufocante, opressora, que deixa claro a narradora (que não tem nome) e Jack possuem diferenças para acertar, que ambos possuem algum problema e que aquela viagem não vai terminar bem. A dúvida fica apenas sobre o que dará errado, e em qual momento. Não considere o que lê uma verdade dentro do que está sendo contado. A narrativa é em primeira pessoa, feita pela namorada de Jack, mas nem por isso ache que ela é a personagem principal. Inclusive ela parece mudar sua personalidade e seus pensamentos vezes demais.

Para acentuar o clima de estranheza, existem algumas páginas onde acontecem diálogos sobre algo que aconteceu em algum lugar. Aos poucos, o leitor descobre que se trata de alguma tragédia, mas não é possível entender o que é, nem com quem e nem sequer onde. Vale a suspeita de que pode ser com Jack ou sua namorada, mas os fatos não batem, tudo indica que é uma terceira pessoa. Mas quem?

EU ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO é um drama sobre solidão, sobre escolhas erradas, sobre abnegação, sobre arrependimento, sobre como é chegar ao fim da vida, olhar para trás e descobrir que não se soube viver, ou que a vida não teve significado algum, que todos os que passaram perto, na verdade, sequer notaram. Esse é o principal terror da história, a constatação de que alguém pode viver por toda a vida e morrer sem qualquer traço que lhe conceda alguma singularidade. É não ser lembrado, porque não existe ninguém que se importe em lembrar.

Por essas coisas acima, eu comecei este texto com aquele parágrafo lá em cima. Às vezes o terror de nossa insignificância é tão grande, tão desesperador, que o que resta é criar uma realidade que consiga dar motivos para acordar todos os dias e continuar a viver. Mesmo que não seja uma realidade para os outros, pelo menos para a pessoa é suficientemente real para lhe dar motivação. Até que não dá mais.

E a adaptação cinematográfica de EU ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO teve a sorte de cair nas mãos do diretor e roteirista Charlie Kaufman. Alguém que é extremamente competente em lidar com histórias onde a mente dos personagens está totalmente quebrada, bem como a realidade em que vivem. Exemplos são seus melhores filmes, QUERO SER JOHN MALKOVICH e BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS. Kaufman consegue fazer uma adaptação que respeita o livro e mantém toda a singularidade da narrativa. Mais ainda, ele altera levemente o final da história para dar um pouco de redenção a um personagem, que no livro, termina de forma deprimente e sem qualquer esperança. Kaufman dignifica o personagem em questão, transforma o fim em algo mais significativo que o seu início.

Jesse Plemons cria um Jack que reflete quem ele realmente é, com uma voz arrastada, baixa, riscada, e com um comportamento que beira a sensação de que vai explodir em algum momento, por estar sempre em desconforto com algo. Jessie Buckley é a namorada de Jack e ela consegue transmitir toda a estranheza que a personagem do livro transmite na narrativa. Por diversas vezes, ela parece ser mais de uma pessoa, com personalidade diferente, profissões diferentes, humor diferente. E esse comportamento errático é uma das pistas para quem ela é de verdade.

O formato da tela, quadrado, as cores apagadas em diversos momentos, o clima de nevasca que nunca permite que se veja além de alguns metros de onde os personagens estão, a decoração da casa, os momentos em que a namorada faz um diálogo olhando diretamente para a tela, para o espectador, os cortes rápidos e estranhos, com mudança de posição dos personagens ou mesmo dos objetos em cena, entre muitas, muitas outras coisas, transformam o filme em algo único e desafiador de ser decifrado. Livro espetacular, filme igualmente. Leia e assista! Logo!

OBSERVAÇÃO: a resenha de EU ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO foi publicada aqui no blog em 2017, depois republicada em janeiro deste ano e agora novamente por causa do filme. Eu decidi manter os comentários da época. Assim, quem estiver participando do TOP COMENTARISTA deste mês e já tiver comentado, não precisa fazer de novo para concorrer ao prêmio. Claro que pode fazer com relação ao filme, adoraria saber o que achou.


AUTOR: Iain REID
TRADUÇÃO: Santiago NAZARIAN
EDITORA: Fábrica231
PUBLICAÇÃO: 2017
PÁGINAS: 224


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DIREÇÃO: Charlie KAUFMAN
DISTRIBUIÇÃO: Netflix
DURAÇÃO: 1 hora e 34 minutos
ELENCO: Jesse PLEMONS, Jessie BUCKLEY