Em DESPERTAR, o primeiro volume da série Xenogênese (resenha aqui), acompanhamos a trajetória de Lilith, uma mulher de trinta e dois anos que é uma das poucas remanescentes da humanidade. Resgatada por seres alienígenas e mantida em animação suspensa por 250 anos, ela foi desperta para seus captores poderem estudar seu comportamento e compreenderem como o homem quase destruiu o planeta e todos que nele habitavam. Os Oankali são seres de aparência distinta da nossa, com tentáculos e espinhos espalhados pelo corpo, e engenheiros biológicos que alteram formas de vida para que sirvam a seus propósitos, e sobrevivem à base do que chamam de permuta genética.

Eles salvaram a Terra ao preservarem e reconstruírem quase toda a fauna e flora, embora com algumas diferenças, deixando o planeta novamente habitável para os seres humanos que eles conseguiram resgatar após a última grande guerra. Mas antes de os devolverem ao planeta, os Oankali e os Ooloi querem ter certeza de que a humanidade conseguirá sobreviver, além de realizarem a tal permuta genética. Acontece que a permuta, aparentemente benéfica, irá alterar geneticamente os descendentes dessas pessoas a um ponto que elas não serão mais humanas, mas uma nova raça. A função de Lilith nisso tudo, é convencer os humanos a colaborarem e ensiná-los a sobreviver nesse ambiente selvagem e sem qualquer traço de tecnologia. Ou seja, começar do zero, como nossos ancestrais, quando não exista nada além de terra e rochas.

Sem dar spoilers que possam estragar o prazer da leitura, DESPERTAR termina com uma espécie de combinação que assegura a coexistência entre a humanidade e os alienígenas. Parte dessa combinação é que os humanos têm as doenças erradicadas e um aumento de longevidade, entretanto não poderão mais se reproduzir, até que exista uma certeza de que não partirão para uma nova sequência de eventos que os levará para mais guerras e uma nova possibilidade de extinção. E a partir desse ponto que começa o segundo volume, RITOS DE PASSAGEM, que dá sequência à história, mas sob a perspectiva de um novo personagem, Akin, que não vou dizer quem é, porque seria um enorme spoiler do primeiro livro.

Basta dizer que a história de Akin começa ainda dentro da barriga de sua mãe e que prossegue até seu amadurecimento. Ou seja, RITOS DE PASSAGEM, como o título sugere, é um romance de formação, porque acompanhamos parte da vida e da formação física e psicológica do personagem principal e os acontecimentos que fazem parte dessa transformação.

Akin é uma criança híbrida, nascida da combinação de uma mãe humana com um Oankali e um Ooloi, que teve uma alteração genética ainda na gestação para ter uma aparência o mais próxima possível de um humano. Sua única característica física que o diferencia é a língua cinza com capacidades sensoriais. Entretanto, ele já nasce com dentes e com consciência e inteligência avançadas. Antes de completar um ano e de conseguir andar, ele já tem capacidade de raciocínio e se comunica totalmente através da fala.

Como os humanos foram esterilizados, uma grande parte se rebela, formam comunidades independentes e passam a sequestrar, das vilas Oankali, as crianças que ainda não sofreram alteração genética. Akin é uma dessas crianças sequestradas, ele passa a viver em um local chamado de Fênix, onde aprende as diferentes facetas do ser humano, enquanto lida com o desenvolvimento de seu lado alienígena: ao atingir a adolescência, ele sofrerá uma mutação que o deixará com uma aparência mais próxima dos Oankali.

RITOS DE PASSAGEM tem uma mudança de narrativa e de perspectiva: no primeiro, temos uma visão feminina, com temas pesados centrados no abuso, estupro, machismo, violência entre gêneros; neste segundo, passamos para temas como racismo, mutilação, transgênero, cisgênero, subjugação, escravidão. E como ponto comum em ambos os livros, a sexualidade e um profundo e extenso contexto social. Todas essas discussões são inseridas de forma natural na história, sem levantar bandeiras, sem a autora dar sua opinião, mesmo com o desfecho de algumas situações, com muita simplicidade, com tanta sutileza, que muitas delas sequer são percebidas pelos leitores.

Um exemplo é quando uma personagem Oankali é ameaçada de ter seus tentáculos cortados para que se pareça mais humana. Um paralelo com crianças negras que tinham seus cabelos afro cortados, e por mais absurdo que pareça, isso ainda acontece nos dias de hoje, com um caso relativamente recente que causou uma enorme revolta. Esse mesmo exemplo pode ser usado para o uso de cirurgias estéticas não consensuais em crianças intersexuais.

Outro exemplo é a esterilização humana, uma medida de cautela dos Oankali que tem como justificativa a educação e preservação da humanidade, mas que também pode ser interpretada como subjugação e prisão, algo semelhante ao que acontecia com comunidade negras nos Estados Unidos escravagista de séculos atrás, ou mesmo no Brasil e em outros países colonialistas.

E de certa forma, esse é o tema central deste segundo volume: liberdade e controle. Quando cuidar de algo deixa de ser benéfico? Em que ponto a preocupação vira controle autoritário? Qual o limite da liberdade? Até onde se pode ir para garantir a proteção de alguém? Por que a aparência continua a ser regra para aceitação? Por que a diferença incomoda tanto? Qual o preço da evolução?

Akin é um personagem sem lado. Ele conhece os humanos e os alienígenas e encontra em ambos pessoas que aprende a amar, a respeitar. Mas ele também aprende que o homem tem por natureza a necessidade de liberdade, de livre arbítrio, e que mesmo quando é óbvia sua inferioridade diante de uma força superior, ele persiste, por mais irracional e perigoso que seja. Akin, como a autora, não forma opiniões, ele segue o fluxo dos acontecimentos, sem interferir, sem julgar, sempre procurando soluções que beneficiem ambas as espécies, mesmo que isso custe mais do que pode fornecer. Akin não é um herói, não é um mártir, mas apenas um sobrevivente que possui dentro dele a essência de duas espécies e que procura uma coexistência pacífica. Afinal, ele é o resultado, mesmo que fabricado geneticamente, de duas espécies.

Embora não existe na história um posicionamento da autora, fica claro que determinadas situações são terrivelmente cruéis e inaceitáveis. Isso não é dito em diálogos, mas em consequências. Se um personagem faz algo abominável, seu castigo é na mesma medida. E não é considerado dessa forma moralmente, mas logicamente. Mutilação não é algo moral, mas uma violência; subjugação não é algo moral, mas um corte de liberdade primordial; racismo não é algo moral, mas uma discriminação baseada em diferenças biológicas; e assim a história é construída sem lados, mas nem por isso alheia ao que é certo e o que é errado, independentemente de qualquer posicionamento social ou pessoal.

RITOS DE PASSAGEM mantém a qualidade do primeiro volume e até a aleva em algumas partes, mesmo com a mudança do personagem principal. Aliás, essa é uma das razões da imparcialidade da autora, sem abandonar seus princípios, dando voz para um personagem diferente, de um gênero diferente, sem manipular a visão dos acontecimentos, o que seria natural caso mantivesse Lilith como a narradora. Verdades não são verdades se contadas apenas por uma pessoa. E o uso de Akin para construir uma convivência, durante anos, com diferentes espécies, presenciando atos de bondade e de crueldade, formando seu caráter e definindo sua escolha de forma de vida, dá ao leitor um aprendizado social que é facilmente interpretado dentro de nossa realidade.

Como em DESPERTAR, ao final de RITOS DE PASSAGEM, temos algumas páginas com questionamentos sobre a leitura, abrindo discussões em salas de aula ou em clubes de leitura. É muito interessante ler essas perguntas e tentar respondê-las, ainda mais em grupos, para vermos os diferentes pontos de vista, e mesmo para compreendermos certos detalhes que abrem um leque enorme de possibilidades e de interpretações. Excelente!


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Octavia E. BUTTLER
TRADUÇÃO: Heci Regina CANDINI
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2019
PÁGINAS: 368


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