Embora seja o segundo volume da trilogia de As Crônicas da Abadia Vermelha, sendo MARESI o primeiro volume, cuja resenha pode ser lida aqui, recomendo que NAONDEL seja lido primeiro, uma vez que conta a história das mulheres que fundaram a Abadia, décadas antes do que acontece no primeiro volume, e esse conhecimento deixará a história de MARESI ainda melhor.

Kabira é a filha mais velha da principal família da região de Ohaddin. Ela detém o segredo do poder de Anji, uma fonte de água que fica escondida na propriedade de seus pais, que na lua cheia pode dar a quem beber o poder sobre a vida e um conhecimento sobre o presente e o futuro, e na lua minguante, o poder sobre a morte e a destruição. Um dia, a família visita o Palácio do Soberano e conhece Iskan, o filho do vizir, que demonstra visível interesse por Lehan, uma das irmãs de Kabira, a mais bonita delas. Mas Kabira se apaixona por Iskan e utiliza a curiosidade dele sobre Anji para despertar seu interesse por ela. E isso era tudo o que Iskan desejava, acesso à fonte e ao seu poder.

Garai era uma guerreira do deserto, até que ela e suas irmãs foram sequestradas por exploradores e vendidas como escravas. Garai era jovem, muito bonita, e escapou da morte ao ser comprada por um homem rico e bonito. Mas ela se enganou ao pensar que estava salva. Iskan leva Garai para o palácio do Soberano, onde a transforma em sua concubina, a mulher que ele visita todas as noites, mesmo sendo casado com Kabira.

Orseola morava nas nas árvores à beira do rio e, como sua mãe, ela tecia sonhos. Ou seja, ela conseguia entrar na mente das pessoas quando elas dormiam. Mais ainda, ela podia conduzir os sonhos da forma que desejasse, mas isso era proibido. Por causa de um deslize, ela acaba cometendo um erro, é julgada, expulsa e deixada em um barco à deriva no mar. Ela não ficou muitos dias vagando, apenas o suficiente para considerar morrer, mas foi salva quando avistou um navio. Orseola achou que teria uma segunda chance, até que viu os sonhos do capitão do navio e, no dia seguinte, ela falou o nome que ele repetia: Anji. Foi assim que Iskan descobriu os poderes de Orseola e a levou para o palácio para que ela tecesse os sonhos do Soberano

Sulani era uma guerreira poderosa, de pele marcada pelas lutas, matou dezenas de soldados antes de ser capturada pelo exército inimigo e ser levada à barraca do comandante. Ele quebrou todos os seus ossos usando um poder que nenhum homem poderia ter, mas mesmo assim ela não morreu. Iskan descobriu que ela já tinha em seu corpo uma parte pequena das águas da fonte, que desaguavam no rio onde Sulani nasceu. Então, Iskan dá mais de Anji para Sulani para que ela se recupere e a leva para o palácio do Soberano.

Clarás trabalhava como meretriz no porto, mas sua falta de beleza não ajudava nos negócios. Até que um homem rico a escolheu. Ele era violento e parecia sentir um prazer com as mais feias. Ele a levou para seu palácio, onde já possuía várias mulheres. Iskan tinha planos para Clarás.

Iona era a mais diferente. Ela vagou por várias ilhas, até ficar em uma específica de onde vinha um poder diferente. Junto a si, ela trazia sempre um crânio. Um dia, um homem desembarcou na ilha e ficou sedento para conhecer os segredos de Iona e do crânio que ela carregava preso na cintura. Iskan levou Iona para seu palácio, onde ela passou a ser uma aliada imprevisível.

E temos Estegi, a serviçal que está presente e é cúmplice de todas, que detém um segredo que só é revelado nas últimas páginas do livro, e Daera, a última mulher a se juntar ao grupo, mas da qual não posso falar, porque é uma surpresa.

NAONDEL é o nome do navio que irá levar essas oito mulheres até a ilha de Menos, onde será fundada a Abadia Vermelha, e onde será o refúgio de qualquer mulher que seja perseguida, maltratada ou injustiçada. Isso nós sabemos quando lemos MARESI. O que não sabemos, é o que elas sofrem durante uma saga que compreende mais de 50 anos nas mãos de Iskan, um dos piores vilões que eu já conheci nas páginas de um livro.

Iskan deseja apenas uma coisa: poder. Para isso, ele precisa depor o Soberano; o Vizir, que é seu pai; e conquistar todas as regiões vizinhas. Anji é sua arma. A fonte de água transforma Iskan em mais do que um homem, em um monstro capaz de abusar de todas as mulheres que encontrar e matar qualquer um que ele pense que vai contra os seus planos. Qualquer um, mesmo que seja do seu sangue. Ele não é um vilão que existe apenas para a maldade e para ser o algoz das mulheres. A maldade do personagem é construída devagar, aos poucos, conforme cada uma das personagens entra em sua vida, ao longo de décadas. E sua crueldade aumenta nessa proporção de tempo, a um nível que beira a completa loucura.

Kabira é a personagem principal, a primeira mulher de Iskan, com quem ele se casa, que tem seus filhos e filhas – das quais também não posso falar -, que perde tudo e que suporta todos os anos futuros, com todas as outras mulheres que vão sendo trazidas para o palácio, e que espera o momento certo para colocar em prática um plano que a mantém equilibrada, longe do desespero e da necessidade de se matar. Tudo começa com ela, é ela quem dá a chave para Iskan conseguir o poder que precisava para a realização de seus planos de dominação. Kabira representa todas as garotas que já se apaixonaram pelo homem errado. Aquele homem que chega com fala mansa, promessas de futuro, mas apenas até conseguir o que deseja e, então, tira sua máscara e mostra o monstro que é nada verdade.

A força dessas oito mulheres representa a sororidade feminina em sua essência, em sua plenitude, em seu estado bruto e conceitual. Elas são totalmente diferentes entre si, sofreram abusos, estupros, torturas, abortos, tiveram a liberdade suprimida, são escravas sem futuro, mas, mesmo assim, diante de uma oportunidade, conseguem conquistar a confiança uma da outra para confrontarem o diabo em pessoa. Elas vão além disso, e constroem uma utopia onde todas do mesmo gênero podem se sentir seguras. Um paraíso longe do sofrimento e da injustiça.

A habilidade da autora, Maria Turtschaninoff, em construir uma narrativa recheada de crueldades, sem parecer apelativo, mas algo totalmente orgânico, dentro do contexto, é incrível. O que mais existe em NAONDEL é respeito pelas personagens, pelo que elas sofrem, e pela mulher que está lendo. Em momento algum, nem sequer em uma pequena parte, nem em uma frase ou um parágrafo, a autora excede o estritamente necessário para fazer o leitor compreender o que está acontecendo. Existe estupro? Vários. Abusos? Muitos. Nenhum deles é descrito com detalhes, apenas mencionados em curtas frases, pouquíssimas palavras, e muitas vezes apenas insinuado. O que move a história não é o que as personagens sofrem, mas a força que elas criam para continuarem vivas e se salvarem. O importante é contar quem elas são e no que elas se transformaram, e não o que Iskan fez com cada uma delas. E essa decisão vai de contra o que a maioria das autoras faz, quando utilizam o estupro, o sexo, como uma atração dentro da história, uma forma de prender a atenção do leitor.

Eu gostaria de comentar muito sobre o que acontece em NAONDEL. Falar sobre o que Kabira sofre, o que acontece com suas filhas, o que acontece com seus filhos, como Iskan vai se tornando cada vez mais louco, mais cruel, qual o papel de cada uma das personagens dentro do palácio e qual a diferença delas para Iskan, o que elas planejam, entre muitas outras coisas, mas isso iria tirar a surpresa que o leitor recebe a cada página. E são muitas. Então, depois que você ler NAONDEL, volte aqui e comente o que achou. Acredite, você vai precisar discutir sobre.

NAONDEL é uma saga sobre sororidade, construída com muita inteligência, competência e respeito. Demonstra a força da mulher, não apenas para vencer, mas para suportar crueldades até vencer. E como unidas, elas são capazes de superar qualquer força física que seja imposta. A melhor leitura do ano, e uma das melhores da vida. Não se atreva a deixar de ler.

Ah, e como não teria muita lógica sortear NAONDEL sem MARESI, e vice-versa, para concorrer a um exemplar dos dois livros, acesse a resenha de MARESI aqui e se inscreva no formulário, sem esquecer de ler todas as regras.


AVALIAÇAO:


AUTORA: Maria TURTSCHANINOFF nasceu em 1977 e escreve contos de fadas desde os cinco anos de idade. Suas histórias têm sempre uma reviravolta: o fazendeiro pobre e a princesa que ele acabou de salvar não se casam, porque eles “não estavam a fim”. Seu maior desapontamento na infância era que nenhum armário levava a Nárnia. Após trabalhar como jornalista por alguns anos, Maria lançou seu primeiro livro infantil em 2007, em um portal de fantasia. Desde então, publicou mais cinco títulos, todos voltados ao público jovem adulto. Ela recebeu o Finlandia Junior Prize por Maresi e o Swedish YLE Literature Prize. Também ganhou duas vezes o Society of Swedish Literature Prize e foi indicada ao Astrid Lindgren Memorial Award 2017 e à CILIP Carnegie Medal 2017.
TRADUÇAO: Lilia LOMAN e Pasi LOMAN
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇAO: 2019
PÁGINAS: 416


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