Costumamos desconjuntar nossas vidas em marcos. Podem ser diversos momentos pequenos, poucos momentos grandes, mas os utilizamos para diferenciar quem éramos, para quem nos tornamos, como estávamos antes de determinado acontecimento chegar e nos mudar completamente. Por exemplo, um leitor pode relembrar aquele dia em que pegou o primeiro livro que o encantou e o levou para o universo fantástico da leitura como um de seus marcos. Ele pode se ver como uma pessoa antes daquele livro e uma pessoa depois daquele livro. Para uma pessoa que é usuária de drogas, o marco pode ser o dia em que experimentou determinada substância pela primeira vez, e por aí vai. Nós, mesmo que não percebamos, dividimos nossas vidas nesses pequenos fragmentos.

Para Eleanor Oliphant, essa divisória está no dia em que vivenciou um incêndio quando criança. E anos depois, com três décadas de vida e cicatrizes no rosto que literalmente marcaram sua vida, ela não pode dizer que há grandes momentos em sua história além desse. Ela vive sozinha em um apartamento com móveis doados (e não se importa com isso); não tem amigos (e acha que está melhor assim); desconhece o que é tato social (Eleanor acha que fingir qualquer coisa, seja o que for, é uma perda de tempo). Ela não tem nenhuma perspectiva, além de falar com sua mãe toda quarta-feira e tomar vodca na sexta, depois de sair de seu trabalho mediano.

A verdade é: Eleanor não está muito bem. Ela passa dias sem falar e come só coisas rápidas e fáceis de serem preparadas, que fornecem o mínimo para que ela possa sobreviver. Há uma voz má, dentro de sua cabeça, que dá palpites, faz comentários e critica cada movimento de Eleanor, cada escolha, e é uma voz que ela não consegue calar.

E eu, quando abri o livro e fui surpreendida pelo tom da história, também não fiquei muito bem. Esperava, pela sinopse, que a protagonista tivesse um passado traumático e que, com um romance, ela conseguisse superar as dificuldades e deixasse de somatizar as lembranças que lhe faziam mal. Foi um choque ver, com tamanha profundidade e riqueza de detalhes, a mente de Eleanor. Foi espantoso encarar os pensamentos tão dissonantes da personagem, e não foi fácil ler e lidar com os sentimentos excruciantes que a autora explora nas páginas. Levei um tempo considerável para finalizar a leitura, e demorei não porque ela estava chata ou desinteressante: eu só… não podia me apressar. ELEANOR OLIPHANT ESTÁ MUITO BEM me tocou demais, e era impossível correr para próxima página, quando ainda estava digerindo o que lera na anterior.

A narrativa foi o que mais me impressionou, em primeira instância, por ser muito madura e intensa. Gail Honeyman conseguiu unir humor, reflexão e os traços de uma mente traumatizada de forma primorosa. Ela não deixou que o leitor confrontasse apenas pinceladas de uma mente patológica em sofrimento, como muitos autores fazem – ela destrinchou o coração, a cabeça e a alma de Eleanor de um modo quase desconfortável, angustiante, chocando quem está lendo com a vivacidade da protagonista, com quão perfeitamente ela descreveu a carcaça vazia (e tão cheia!) e órgãos sangrando da personagem. A construção de seu passado, a personalidade de Eleanor, o modo com que ela enxerga as coisas e as pessoas… é uma imersão tão grande e tão bem feita, que você simplesmente não pode deixar de sentir, deixar de ser a protagonista enquanto lê.

O enredo é consistente e, quando esboça o passado de Eleanor, dá espaço para o leitor criar suas teorias do que possa ter acontecido. Além disso, os personagens secundários são muito bem feitos, carregados com a ambiguidade de parecerem ser o quê e quem não são – este é um aspecto bem trabalhado na história: as páginas desafiam o leitor a encarar a repercussão de seus julgamentos, e de quão errôneos e acelerados eles são. E o foco de ELEANOR OLIPHANT ESTÁ MUITO BEM está em Eleanor, em suas crises e sentimentos, e não no romance, o que é, sem sombra de dúvida, mais interessante e engrandecedor para as páginas e para o leitor. A fundura psicológica de Eleanor é de cair o queixo, e não fará com que você sinta falta ou até mesmo ambicione um romance tão cedo.

A linha de eventos e de tempo não me decepcionou, tampouco. Algumas de minhas teorias foram comprovadas, outras foram desiludidas, mas todas as dúvidas e lacunas foram esclarecidas, dando um toque excepcional na história e indicando que, por mais concreto e ameaçador que o passado possa ser, nós sempre podemos mudar. É importante, ao analisar o livro, ressaltar como a autora retrata a depressão. Perdi as contas de quantos livros já li que mostram a doença de modo tão finalista, que causam a impressão de que é impossível superá-la, que é impossível melhorar, que a busca por ajuda é vã. São livros que os personagens passam por infinidades de desafios, por milhares de quedas e crises, sem alegrias nos intervalos entre as tristezas, e sempre caminham para a desistência da vida. Com Eleanor é diferente, e graças a Deus por isso. Nós vemos, sim, ela cair e sofrer e encarar obstáculos atrás de obstáculos, vemos Eleanor quase desistir. Contudo, Honeyman mostra que há como recuperar-se, há como renovar-se, falando de depressão ou não.

Com uma edição linda, diagramação excelente e uma capa simples, embora muito significativa (e com fósforos em relevo!), ELEANOR OLIPHANT ESTÁ MUITO BEM não é uma leitura fácil. É um dos poucos livros que favoritei ano passado, distinguindo-se e marcando 2018 com uma mensagem incomum, que poucos livros (infelizmente) conseguem dar ao leitor: os marcos de sua vida, por mais que separem quem você era de quem você é, não te definem. A pessoa que é usuária de narcóticos ou entorpecentes, não é seu vício; o leitor não é seu hábito; e Eleanor não é o incêndio, muito menos as cicatrizes que estão em seu corpo. Ela é mais. Eleanor não é o que aconteceu com ela, e sim o que fez com o que aconteceu com ela.

Este livro, caso você leia, vai te marcar também. Entretanto, o que você vai fazer com as reflexões que ele provocará?


AVALIAÇÃO:


AUTORA: Gail HONEYMAN é formada pelas universidades de Glasgow e Oxford. Eleanor Oliphant está muito bem, seu livro de estreia, foi escrito enquanto ela trabalhava em tempo integral, sendo um dos finalistas do Lucy Cavendish Fiction Prize como obra em desenvolvimento. Ela também foi premiada com o Scottish Book Trust’s Next Chapter Award 2014, selecionada no programa Opening Lines da BBC Radio 4 e finalista do Bridport Prize
TRADUÇÃO: Edmundo BARREIROS
EDITORA: Fábrica 231
PUBLICAÇÃO: 2017
PÁGINAS: 352


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