A personagem principal de DESPERTAR se chama Lilith. O nome é bastante conhecido por quem costuma ler livros do gênero fantástico. Isso porque ele está ligado a várias lendas e a partes de diversas religiões. Por exemplo, Lilith foi uma deusa na Mesopotâmia e na Babilônia, associada a ventos e tempestades, que seriam portadoras de enfermidades e de morte. Ela aparece como um demônio noturno na crença popular judaica. Na crença islâmica, ela é tratada como a primeira mulher de Adão, antes de Eva, e também é vista como a serpente que convenceu Eva a comer a maçã. Na mitologia Grega, Lilith representa a vida noturna e a rebeldia da mulher sobre o homem. Eu não sei dizer se Butler se inspirou em algumas dessas lendas, mas o que fica claro neste DESPERTAR, é que a Lilith de Butler poderá trazer a vingança e a destruição para seus salvadores. Ou captores.
Na obra de Octavia Butler, Lilith é uma mulher de trinta e dois anos, uma das poucas remanescentes da humanidade, que foi resgatada por seres alienígenas e mantida em animação suspensa por duzentos e cinquenta anos. Nesse período, ela foi desperta algumas vezes, para seus captores poderem estudar seu comportamento e compreenderem como o homem quase destruiu o planeta e todos que nele habitavam. Após esses dois séculos e meio, ela tem um último despertar, onde, finalmente, conhece a raça que a salvou, os Oankali. Seres de aparência horrível, com tentáculos e espinhos espalhados pelo corpo, mas que são pacíficos, são engenheiros biológicos que alteram formas de vida para que sirvam a seus propósitos, e sobrevivem à base do que chamam de permuta genética.
Eles salvaram a Terra ao preservarem e reconstruírem quase toda a fauna e flora, embora com algumas diferenças, deixando o planeta novamente habitável para os seres humanos que eles conseguiram resgatar após a última grande guerra. Mas antes de os devolverem ao planeta, eles querem ter certeza de que conseguirão sobreviver, além de realizarem a tal permuta genética. Acontece que a permuta, aparentemente benéfica, irá alterar geneticamente os descendentes dessas pessoas a um ponto que elas não serão mais humanas, mas uma nova raça. A função de Lilith nisso tudo, é convencer os humanos a colaborarem e ensiná-los a sobreviver nesse ambiente selvagem e sem qualquer traço de tecnologia. Ou seja, começar do zero, como nossos ancestrais, quando não exista nada além de terra e rochas.
Existem muitas questões filosóficas, humanas, sociais e raciais em DESPERTAR. Escrito em 1987, antes da queda do muro de Berlim e do fim da chamada Guerra Fria entre os EUA e a então União Soviética, ele traz parte da paranóia (muita dela com fundamentos) dos americanos. Isso é visto na desconfiança que algumas das pessoas, que eram despertadas, sentiam ao se verem presas em salas estéreis, sem móveis, e com uma justificativa de que aliens as salvaram e que passaram mais de duzentos anos dormindo. O que elas acreditam é que tudo não passa de uma experiência dos soviéticos ou da CIA. Lilith lida com essa situação de forma mais racional e prática, mas ela também passa por essa fase de desconfiança, até que vê pela primeira vez um Oankali.
Entretanto, a desconfiança persiste, uma vez que esses seres negam a maioria das informações que Lilith necessita para conseguir compreender o que eles querem e o que aconteceu enquanto ela dormia. Mais do que isso: ela quer saber o que eles fizeram com ela, e com os outros, durante todo esse tempo. Inclusive, uma outra questão é a forma como os Oankali tratam Lilith, comparável ao estudo que os cientistas humanos realizam com pequenos animais, ou ao tratamento com animais domésticos. Embora tratada com carinho, alimentada, ela é vista como um ser inferior, alguém que precisa ser educado, que precisa aprender a pensar e a se comportar, com uma liberdade limitada e uma vigilância constante.
Uma terceira questão é sobre a mulher e sua força dentro de uma sociedade majoritariamente machista. Lilith é a escolhida para liderar o despertar de um grupo de humanos, alguns deles homens. Ela recebe informações de cada uma das pessoas que compõem esse grupo, e ela escolhe acordar primeiro algumas mulheres, porque sabe que será mais difícil controlar os homens, será mais difícil convencê-los a serem liderados por uma mulher, além de um medo pela força física deles e do que eles podem fazer. Esse medo é totalmente fundamentado na nossa sociedade atual, e no livro, ele é exemplificado mesmo antes de Lilith receber essa tarefa de liderar e treinar esse grupo. Em uma parte anterior, e uma das mais tensas do livro, ela é apresentada a um homem que foi despertado anos antes dela e que escolheu ficar com os Oankali ao invés de retornar para a Terra. Esse encontro de Lilith com um homem que não via uma mulher há anos, é uma representação perfeita de como a maioria dos machos se sente superior a uma mulher.
Uma quarta questão é sobre a sexualidade e reprodução. Lilith é deixada aos cuidados de um jovem Oankali, Nikanj, que estaria em um período equivalente à puberdade humana. Inicialmente, os dois criam um laço profundo de amizade, onde Lilith chega a desempenhar o papel de educadora sobre os sentimentos humanos. Eles passam dois anos juntos, período em que Lilith aprende mais sobre os Oankali e aprende as técnicas necessárias para sobreviver e ensinar a sobreviver na Terra. Faz parte da permuta genética uma aproximação sexual, mas os Oankali não fazem sexo como os humanos, onde existem toques, carícias, penetração e inseminação. Mais além: eles não possuem um gênero sexual dominante. Então, tem uma parte do livro, onde Nikanj acaba forçando uma relação com Lilith e um terceiro personagem ao mesmo tempo. Esse terceiro personagem se sente atraído pela experiência, mas ele diz não. Não quer participar, embora ele se sinta excitado. A questão levantada é se uma raça que se guia biologicamente, que não conhece emoções na mesma intensidade que nós, ao enxergar o desejo físico de uma pessoa, pode ignorar seu intelecto, sua vontade racional, e a forçar a ter uma relação e isso não ser um estupro?
Como quinta questão, existe a força da liderança e o peso que ela exerce sobre o que é certo e o que é errado. Lilith foi levemente modificada pelos Oankali para conseguir liderar o grupo de pessoas que irão para a Terra. Ela se cura quase que instantaneamente da maioria dos ferimentos, ela é mais forte, ela é mais rápida, ela é mais inteligente e ela pode interagir com a nave, que é um organismo vivo e que pode ser modificado para atender as necessidades dos ocupantes, como a criação de um quarto, uma mesa, ou qualquer outro objeto e comida. Conforme as pessoas descobrem essas habilidades, elas passam a temer Lilith, passam a vê-la como alguém que não é mais como eles, mas mais como um alien. Por isso, Lilith toma decisões que são duras, que são necessárias para que eles aceitem sua liderança, e isso, claro, causa revolta, cria grupos rebeldes e traz, aos poucos, a violência.
Existem outras questões, como o preconceito e a intolerância, não apenas contra os Oankali, mas também destes para com os humanos, e dos humanos para com os humanos. Existe a questão dos Oankali alterarem organismos vivos às suas necessidades, o que isso implica em questão de liberdade e de abuso. Os próprios Oankali já se modificaram tantas vezes, por causa da permuta genética com outras espécies, que sequer podem retornar ao próprio mundo, uma vez que eles não são mais a mesma raça que eram ao começaram a viajar pelo espaço.
DESPERTAR é uma ficção-científica tão complexa, ao mesmo tempo que é tão simples, que levanta questões passíveis de discussão por horas. Os assuntos são incluídos de forma tão orgânica na história, que Butler parece um Oankali a escrever, criando cirurgicamente algo único e completo, com conteúdo suficiente para abranger uma educação ampla sobre o que somos e o que podemos nos tornar, com influência ou não de uma raça alienígena. Mas mais importante do que isso, DESPERTAR demonstra como o ser humano é falho, como é egoísta, como se colocado em um ambiente hostil, ele pode se tornar mais hostil e mortal, como ele é guiado pelo medo e pelo pensamento de que é superior a qualquer outro ser. Uma leitura intensa, profunda, extremamente inteligente e que deixará você com perguntas suficientes para questionar seu próprio modo de vida. E que venha o segundo volume, porque neste, Lilith não ficou satisfeita com a permuta obrigatória, com a necessidade de se transformar em uma raça nova, sem qualquer chance de negativa, e ela promete tornar a vida dos Oankali bem difícil. Igual às lendas.
AVALIAÇÃO:
AUTORA: Octavia E. BUTLER é filha de um engraxate e uma empregada doméstica, a Grande Dama da Ficção Científica nasceu na Califórnia, em 1947. Aos 12 anos, assistiu ao filme “A Garota Diabólica de Marte”, que era tão ruim, mas tão ruim, que mudou completamente sua vida. Octavia decidiu que contaria histórias melhores do que aquela e assim começou sua jornada como escritora. A autora precisou lutar contra a pobreza, a dislexia e o racismo para receber um diploma universitário e foi a primeira mulher negra norte-americana a conquistar o sucesso em uma área da literatura dominada por homens: a ficção científica. Ao longo de sua carreira, foi laureada com o MacArthur Fellowship, Hugo, Nebula e Locus Awards, além de ser indicada mais de 20 vezes à prêmios. Representava em seus livros heroínas negras e explorava temas como raça, empoderamento feminino, divisão de classe, sexualidade e escravidão. Em 2010, quatro anos após sua morte, foi inserida no Hall da Fama da Ficção Científica, em Seattle
TRADUÇÃO: Heci Regina CANDIANI
EDITORA: Morro Branco
PUBLICAÇÃO: 2018
PÁGINAS: 352
COMPRAR: Amazon
Octavia escreve para nos fazer refletir. Seus livros incomodam as vezes não são fáceis de ler. Sempre é preciso mergulhar fundo no livro para assimila-lo da melhor maneira.
Notei na resenha que Lilith amadurece muito durante essa longa jornada e esse contato mais íntimo com esses seres a transforma além de ser uma líder da raça humana e ter que conviver com o ônus desse cargo.
Não li nada da autora, essa resenha também foi a primeira que li sobre esse livro.
Mesmo sendo escrito em 1987 muitas coisas ainda não mudaram como o preconceito da pele, mulher entre outros.
Gostei muito do enredo e como Lilith cresceu como personagem durante o livro questionando os Oankali sobre o que aconteceu com ela, o mundo e os outros seres humanos.
É uma excelente ficção-científica, leia se puder 😉
Tive contato com as letras da autora, lendo Kindred(um dos melhores livros que li ano passado) e pelo que li acima, a autora conseguiu manter o mesmo nível não só em personagens fortes,mas também em enredo diferente e único!
Adorei saber que mesmo sendo um livro que traz essa pegada de alienígenas, traz também isso que a autora aborda com maestria, preconceito e mulheres fortes!
Com certeza, o livro vai para a lista de desejados!!!
Beijo
Carl!
Importante livros que resgatam momentos histórios do século passado e apesar de ser ficção, trazem à luz questionamentos e filosofias próprias da época da ambientação do livro.
E já naquela época trazia a força arrebatadora da mulher.
Gosto da ficção baseada na personagem de Lilith, seja em qual for o preceito.
cheirinhos
Rudy
As lendas de Lilith são muito usadas, talvez mais do que deveria rssss
Parece ser um livro bem denso e cheio de questões. Amo livros que fazem analogias com Lilith (viciada desde que vi evangelion kk)
E nossa, isso de racional x irracional é uma questão muito boa de ser abordada. É muito incrível como isso afeta a sociedade tanto em pequenos quanto em grandes atos. O que leva pessoas a fazer certas coisas para atingir objetivos… E, no fim, o que importa?
Eu realmente queria ter mais animo pra ler ficção científica e distopia, porque os temas essenciais me interessam muito, mas os contextos me dão dificuldade. Ainda pretendo me esforçar mais para ler esse gênero. Dessa autora meamo tem outro que eu tenho vontade de ler, espero um dia poder ler esse.
Distopia até que não sou muito fã, mas amo ficção-científica, e Despertar é pura ficção-científica. Vale a pena pelas questões levantadas, acredite 😉
Caramba, esse livro deve ser incrível! A criatividade e a autonomia que Butler teve sobre o assunto e como ela conseguiu passar isso para o papel me encantou. Achei ótimo a questão do racismo e preconceitos terem sido citados e deixado a obra com um significado ainda mais forte. Adorei!
Sim, o gênero ficção-científica é um dos que mais abre espaço para discussões sobre nosso modo de vida.
Oi Carl,
Lilith…. Só consigo lembrar de “Os instrumentos mortais”, mas sei que é mesmo uma lenda bem comentada na literatura, particularmente até gosto, principalmente como ela é tratada como um demônio, acho bacana a controversa do nome com o que é a pessoa, rs.
Realmente, é um livro bem complexo, e faz tantas críticas de coisas que vivemos, que é fácil moldar a história no mundo real. Acredito que o mais interessante, é ver que, mesmo numa “nova sociedade” certos padrões se repetem, como no caso dos rebeldes, podemos até comparar com o novo governo (só para constar, tem uma rebelde aqui, rs), como pelo menos metade da população não satisfeita.
Senti que a história tem vários lados, político, humano, em um geral mesmo. Quero ler!
Bj
Verdade, em toda sociedade sempre irão existir os contra. E nem sempre os contra estão errados, pelo contrário.
Olá! É incrível que um livro escrito em 1987, ainda hoje, possa nos fazer refletir praticamente sobre os mesmos pontos, a superioridade dos homens, a sede de poder dos humanos, nossa capacidade em gerar conflitos, engraçado como todas as raças parecem evoluir, principalmente as alienígenas (pelo menos no contexto da ficção científica), e nós não, continuamos cometemos os mesmos erros.
Não é? Em termos de preconceito, o homem não evolui!
Eu não me dei muito bem com as leituras do gênero ficção científica, mas sempre gosto das premissas e quero dar novas chances. Não conhecia Despertar, mas adorei a relação com a Terra e os humanos – me lembrou muito The 100. Além disso, adorei as questões filosóficas envolvidas, a força da mulher, a liderança, questões de intolerância. Muito bom!
Tem muito para ser discutido nesse livro, como acontece na maioria das ficções-científicas 😉
Hey, Carl.
Já vi o nome “Lilith” em vários livros, e acho que chama a atenção justamente por esta presente em tantas lendas. :))
Ainda não li esse livro e conhecia superficialmente a história, e é bom saber sobre mais um livro que fala sobre temas importantes mas não de uma forma forçada e blê. Já li histórias que queriam abordar tanta coisa que ficava um negócio confuso.
Espero que continue gostando no próximo livro.
Acho que Lilith é um dos nomes mais usados em histórias de fantasia e terror kkkkkkkkkk
Lendo esse resenha, venho a minha mente que a BUTLER escreveu de forma fictícia coisas que ainda acontecem na atualidade, e que de certa forma o medo das pessoas podem de certa forma as torna primitivas, e como foi citado, pelo que eu pode entender depois de ler a resenhar são que a historia tem vários pontos que podem ser interpretados de formas diferentes mas ao mesmo tempo chegando a uma mesma conclusão , e essa historia aparenta ser uma historia que rende varias teorias para se debater.
Realmente tem muito para se discutir.